dois

'Tis the damn season, write this down

É a maldita temporada, anote isso

I'm stayin' at my parents' house

Eu estou ficando na casa dos meus pais

And the road not taken looks real good now

E a entrada que eu não peguei parece muito boa agora

And it always leads to you in my hometown

E sempre me leva a você na minha cidade natal

— Espera um pouco, você tá dizendo que entrou na concessionária e saiu dirigindo um carro zero, é isso?

Dorotéia batucou os dedos no volante enquanto a amiga falava. Seu celular estava jogado no banco do passageiro com o viva-voz ativado.

— Você faz soar como uma coisa horrível. Eu precisava de um carro. O meu passa mais tempo na oficina do que na rua. Vou me livrar dele quando voltar para o Rio.

— Se livrar dele? De um carro que deve valer mais que uma casa?!

— Não é minha culpa se a porcaria não funciona como devia!

Ana Laura riu do outro lado da linha. Aquele tipo de risada incrédula e ruidosa bem típica dela.

— Sabe, Dory, às vezes eu ainda me surpreendo com o fato da gente continuar amiga.

— Por você ter achado que eu fosse virar uma esnobe irritante ou por ser contra pessoas que compram carros à vista?

— Os dois.

— Bom saber. Vou jogar todos os seus presentes na beira da estrada, então.

— Não se atreva! — O grito de desespero dela fez Dorotéia rir. — Por favor, diz que conseguiu aquele autógrafo da Marina Ruy Barbosa... Você sabe que eu adoro ela!

— Ela assinou uma foto nossa. Tá na mala.

— Eu te amo taaaanto!

Dorotéia revirou os olhos, mas estava sorrindo. Ela se inclinou para o porta-copos e pegou a garrafa térmica cheia de café. Estava dirigindo há horas. Saiu do Rio de Janeiro de madrugada e atravessou a divisa de Minas ao amanhecer. Ela podia até ter pegado um voo para Belo Horizonte, mas dirigiria quase que a mesma quantidade de horas pelo interior do estado até chegar ao sul de Minas.

Ana Laura ligou uma meia hora antes, durante uma parada de Dory em uma lanchonete de beira de estrada. Estava com ela na linha desde então, aproveitando cada segundo da companhia da voz da amiga. Dirigir por quilômetros sozinha e em silêncio até Pinheiro do Sul a tinha deixado pensativa. E Dorotéia era um perigo para si mesma e para a humanidade quando ficava pensativa.

— Dory?

— Oi?

— Você sabe que eu preciso te fazer algumas perguntas, não sabe?

Dorotéia mordeu o lábio inferior enquanto zunia pela rodovia, a paisagem um borrão pela janela.

— Precisa?

— Sim, preciso.

— Não pode esperar eu chegar? Você sabe que é bem melhor fofocar pessoalmente.

— Por incrível que pareça, eu não quero fofocar. Pelo menos não sobre a vida dos outros. Quero falar sobre a sua.

— Ah, minha vida não é tão interessante assim para ser tópico de fofoca...

Há! Conta outra, estrela da Globo!

Dorotéia diminuiu a velocidade quando passou por uma curva.

— O prazo do meu contrato terminou. Até as negociações do ano que vem, eu não sou mais uma atriz da casa.

— Estrela da Netflix, então.

— Eu tô longe de ser uma estrela da Netflix. Foram dois filmes que só aconteceram porque a Globo negociou meu contrato de exclusividade na época.

Dava para sentir a irritação da Ana Laura pela sua respiração forte ao telefone.

— Dorotéia, que merda tá acontecendo com você?

Ela não respondeu. Não tinha resposta para aquilo.

Sorte a sua – ou não – Ana ainda não tinha terminado.

— Dory, eu te amo e tô muito feliz que vou poder te ver nesse fim de ano, mas nós duas sabemos que tem algo errado por trás disso tudo. Por que você tá voltando?

Dorotéia não hesitou. Foi sincera como não era há semanas. Meses. Anos.

— Eu não faço ideia.

Ela tinha deixado Pinheiro do Sul de vez há cinco Natais. Nos primeiros dois anos de carreira, tinha voltado esporadicamente para ver a família. As visitas ficaram menos frequentes com o tempo e ela passou a preferir pagar para que eles fossem visitá-la no outro estado ou bancar viagens ao redor do Brasil para que pudesse passar cada folga do trabalho com as pessoas que amava.

Dorotéia não voltava à cidade da sua infância há muito tempo. Sempre que pensava em dirigir por aquelas estradas familiares, era como se fantasmas se levantassem de túmulos esquecidos para assombrá-la, a lembrando do que tinha feito e não feito, de todas as decisões que tomou.

Quando tinha deixado de se conhecer tanto assim? A ponto de não saber mais o que queria e o que não queria? A ponto de jogar tudo para o alto e entrar num carro decidida a voltar pra casa depois de três anos evitando Pinheiro do Sul e tudo que aquela cidade representava para ela?

— Tudo continua o mesmo aí? — Dorotéia perguntou diante do silêncio da amiga, as palavras custando a sair. Era uma pergunta idiota aquela, ainda mais porque já sabia a resposta pelas inúmeras conversas com os pais e sua própria experiência crescendo em uma cidade pequena.

— Tudo o mesmo. Desde as chuvas intermináveis até a sorveteria da pracinha.

Dorotéia sorriu e colocou um cacho atrás da orelha.

— Aquela sorveteria tem uns cinquenta anos, né?

— Meus avós juram de pé junto que já estava ali antes da cidade ser construída.

Elas riram. Não importava que com a vida corrida mal conseguissem se falar, ou que não se viam há meses desde que Ana Laura fora para Rio de Janeiro pela última vez para comprar roupas para a sua lojinha em Pinheiro do Sul. Sempre que se viam, sempre que arrumavam um tempinho de falar uma com a outra, era como se tempo nenhum tivesse passado e elas ainda fossem aquelas amigas bobas e sonhadoras da escola.

— Vai ser bom te ter de volta, Dory — Ana disse, como se lesse seus pensamentos. — Apesar de que você estar voltando não me surpreendeu tanto quanto o fato de estar voltando sozinha.

— Do que você tá falando?

— Do Caíque Santiago, é óbvio!

Dorotéia murchou no mesmo instante, afundando no banco do motorista.

Caíque. Claro. Bom Ana ter mencionado ele. Dorotéia precisava responder suas mensagens que se acumulavam quase que de hora em hora.

— Amiga, você tem que parar de evitar falar sobre esse gostoso! Quando vai me contar o que tá rolando entre vocês?

— Quando eu chegar — Dory prometeu. — É uma história complicada.

Aliás, tinha zero chance de ela conseguir contar a verdade para Ana por celular sem fazer parecer que havia se transformado por completo em uma estrela fútil dos sites de fofoca.

— Dory, não tem nada de complicado quando o cara mais sexy do momento e seu par romântico na novela está caidinho por você.

— A vida não é feita só de aparências, sabia? Nunca viu A Bela e a Fera, não?

— Então ele é um escroto? Tipo o Gaston?

— Não! Eu... — Dorotéia bufou. Queria bater a cabeça contra o volante. A culpa era sua, no fim das contas. Ela que tinha concordado com Vivian, sua agente, quando ela veio com aquela ideia absurda para cima dela. — Eu te conto tudo depois, juro.

— Vou cobrar, hein?

Naquele momento seu celular emitiu um bip.

— Droga, tá acabando a bateria. Vou estacionar para pegar o carregador portátil na bolsa. Quer almoçar comigo amanhã?

— Perfeito! Onde?

Levando em conta que tinha um total de dois restaurantes em Pinheiro do Sul, não era como se elas tivessem uma grande gama de opções.

— No Seu Antônio? — Dory sugeriu. — Tô com saudades da lasanha dele.

— Combinado. Beijos.

Dorotéia parou no próximo posto de gasolina para abastecer e colocar o celular no carregador. Os frentistas quase tiveram um ataque quando a viram e ela tirou algumas fotos. Uma das moças que trabalhava no posto pediu um autógrafo e implorou por um spoiler do fim da novela.

— Por favor, me diz que o Filipe e a Vitória ficam juntos no final!

Dorotéia abriu um sorriso enigmático.

— Você vai ter que acompanhar a novela para saber — ela disse. Mas, porque a moça era muito simpática e ela boca aberta, a chamou para mais perto e sussurrou no seu ouvido: — Mas pode ficar tranquila. Vai ter umas reviravoltas, mas o final da Vitória é feliz.

A moça praticamente brilhava de alegria.

Quando deixou o posto, Dorotéia percebeu que suas mãos estavam suadas, escorregando do volante. Seu nervosismo parecia aumentar à medida que se aproximava da cidade da sua infância.

Será que seria diferente? Será que as pessoas a tratariam de outra forma quando a vissem?

Ela estava fugindo do Rio de Janeiro por muitos motivos que não conseguia ao certo identificar, mas de algo sabia: ela precisava de um tempo sem câmeras apontadas na sua direção, sem precisar sair para lugares chiques com pessoas chiques e se esforçar para ser uma delas mesmo depois de todo aquele tempo.

Ela não queria ser Dorotéia Castilho, grande atriz do momento, com agente e assessores puxando-a para todos os lados e tendo cada hora do seu dia programada. Ela não queria mais cada fio do seu cabelo e poro do seu rosto tratado como os outros queriam e suas falas sempre roteirizadas, mesmo na vida real.

Ao mesmo tempo, por que aquela urgência de fugir a estava levando justamente para onde tudo tinha começado?

Há muito tempo ela pegou uma estrada pra fora da sua cidade natal. Ela fechara aquela porta, mas, desde o momento em que partiu, vez ou outra se pegava olhando para trás.

Tinha sido aquela incerteza que a mantivera longe. E é melhor não mergulhar no passado quando você não está totalmente curada. É melhor seguir em frente e esquecer tudo o que deixou para trás.

Dorotéia fechou os olhos com força.

Ela não sabia o que aquele Natal reservava para ela. Não fazia ideia. Mas sabia que precisava voltar. Nem que fosse por uma última vez, para ter um vislumbre de como sua vida poderia ter sido.

Para variar, continuo pensando demais.

Ela suspirou e dirigiu por aquelas estradas familiares, se aproximando da sua cidade no meio das colinas, sempre chuvosa, aconchegante e agora toda iluminada com luzes de Natal.

Dorotéia segurou o volante com mais força.

Era aquela maldita época do ano de novo, quando a vida jogava na sua cara tudo o que você vinha fazendo de errado.

Depois de mais quarenta minutos de viagem, Dorotéia estava se aproximando de Pinheiro do Sul quando alguma coisa entrou na frente do carro. Ela freou e o cheiro de borracha queimada subiu pelo asfalto.

Ai meu Deus! Eu matei alguma coisa!

Ela pulou pra fora e foi até a frente do veículo.

— Por favor, que não seja um cachorrinho. Por favor...

E ali estava ele. Uma bolinha de pelos encardida que se parecia muito com um gato branco, mas estava tão magro e imundo que devia ter vindo direto do esgoto.

— Ô, meu Deus. Me perdoa! Eu quase matei você...

O gatinho estava eriçado e assustado, encharcado da chuva que tinha cessado há poucos minutos. Ela correu até o porta-malas e pegou uma blusa velha de uma das suas mochilas. Quando voltou, o bicho estava mais receptivo à presença dela.

— Quer vir pra casa comigo? — ela perguntou de mansinho. — Juro que não tento te assassinar de novo. Pelo menos não de propósito.

O gato miou e foi até ela. Com cuidado, Dorotéia o enrolou na camiseta e tentou secá-lo da melhor forma possível.

— Alguém te abandonou, foi? Você também fugiu da cidade?

O gato não respondeu. Que bom. Dorotéia nunca mais dirigiria por horas seguidas se de repente alucinasse com animais falantes.

Minha mãe vai amar me ver chegando com um gato de rua... Será que ela para de surtar quando eu entregar os sapatos que trouxe pra ela?

Dorotéia estava prestes a voltar para o carro quando algo na beira da estrada chamou sua atenção.

Ela olhou para a árvore ali perto. A copa cheia estava salpicada de gotas d'água, assim como o tronco forte. A lembrança a atingiu com tanta força que ela deu um passo para trás.

Era as férias de julho, oitava série. Os dois tinham 13 anos na época.

Eles tinham decidido andar de bicicleta até a ponte que separava Pinheiro do Sul de uma comunidade vizinha. Tinham se encontrado na praça matriz e já estavam cansados antes de atingirem os limites da cidade.

Dorotéia sorriu para si mesma, o coração apertado.

— Quando a gente chegou aqui, eu disse que não conseguia dar nem mais uma pedalada — ela falou sozinha, acariciando o gato atrás da orelha. — Ele desistiu da ideia de chegar na ponte também e a gente sentou debaixo daquela árvore. Jogamos as bicicletas de qualquer jeito no meio do mato.

Dorotéia olhou para os dois lados da estrada. Quase ninguém passava por ali, e ela só ia levar um minutinho...

Théo tinha um canivete que ganhara do pai no seu último aniversário. Ele costumava andar com ele de vez em quando, porque achava o máximo o objeto ter seu nome gravado na lateral. Então, naquela tarde, enquanto os dois estavam suados e felizes debaixo da árvore, ele falou para ela:

Posso gravar nossos nomes no tronco?

Ela rira da ideia.

Por quê?

Porque eu gosto de você, ué.

É uma coisa bem romântica, Théo. Você é muito romântico, sabia?

Ele tinha corado debaixo do boné. Mesmo naquela época, Dorotéia sabia que não era bom para ele ficar exposto ao sol daquele jeito, mas ele tinha topado andar de bicicleta com ela mesmo assim, só porque aquilo a faria feliz.

Então ele se levantou, sacou o canivete e marcou a árvore com um D. Logo ele descobriu que gravar o nome inteiro no tronco seria difícil demais, então se reduziu às iniciais. Quando terminou, Dorotéia pegou o canivete da mão dele e fez um coração ao redor das letras.

Se fosse para ser romântico, que tivesse um coração então.

Agora ela estava debaixo daquela mesma árvore. Nove anos depois. Uma vida depois.

D + T

Ela sorriu e passou o dedo pelas marcas. Ainda eram profundas. Não desapareciam tão fácil com o tempo. Eram mais fortes do que ela tinha sido.

Apesar do sorriso, havia um nó na sua garganta. Ela mal tinha chegado e aquela cidade já dava testemunhos de tanta coisa...

— Vem, vamos cuidar de você — ela disse para o gatinho e se afastou da árvore depressa.

Mas a memória não sumiu por completo. Quando olhou para a árvore pelo retrovisor do carro, ela quase pôde ver uma menina e um menino de treze anos sentados na grama, rindo um do outro em um dia claro de outono com bicicletas jogadas na beira da estrada.

Eles tinham uma vida inteira pela frente. Tinham um destino que pensavam ser tão certo quanto as iniciais gravadas na árvore.

Dorotéia suspirou.

Se pelo menos ela soubesse...

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