Canto XI: Inferno

É assim que me sinto: com uma corda no pescoço e absinto nas mãos.

Estava tudo na minha  imaginação. Não existe salvação. Não existia Purgatório. Isto que Lia, aquilo que falava, tudo ficção!

— Bem-vindo, bem-vindo! Próxima parada: inferno.

Ouvi o som da minha voz anunciando. Aos poucos, minha vista foi retornando ao normal, ainda que a cabeça doesse. Profundissimamente apático.

O céu tinha um tom de vermelho. A grama era baixa (artificial, constei deprimido, de cores escuras) e as únicas edificações eram gigantescos moinhos que giravam devido ao vendaval silenciosamente perverso.

Mas como estavam caindo aos pedaços! Pichados, com papéis desbotados de várias propagandas sobrepostas, rangiam. Provavelmente eram assombrados.

— Vai ficar aí parado? Vamos, não faça essa cara. Essa foi a sua escolha.

Seguindo a (minha) voz, percebi que vinha de uma pirâmide do tamanho de minha cabeça suspensa do ar. Me encarava com um olhar sorridente de zombaria, assustadoramente real se comparado ao restante do poliedro.

— Acho que não sabe quem eu sou. Jurava que fosse algo óbvio. Quer uma dica? Janeiro de 20xx, meia-noite, uma mão no volante e outra no absinto, dirijo sem direção ou sentido, com uma corda na mala em direção à mata mais próxima. Cada vez piso mais fundo no pedal. Toca por acidente uma música de amor no rádio da Melanie Martinez, que faz eu me lembrar daquela que já amei e tudo fica meio nebuloso. Estudos, trabalho, sonhos de viagens, livros, amigos. Tudo isso parece tão falso, né?

Consigo ver perfeitamente a cena.

— Me sobe aquela tristeza astral sem sentido que conheço tão bem e tenho vontade de me fundir às paredes, sumir pra sempre, pra nunca mais ser visto nem ter que interagir com quem eu conheço ou não. Meus amigos, eles não mais me respondem. Já devem ter me esquecido. Meus olhos lacrimejam, sei que mereço isso. Também, mal conheço eles, nem sei o que conversar com eles. Eu pareço um poste, parado daquele jeito com essa expressão tosca na cara".

"Por que não toma vergonha na cara! Você já não aguentou anos de solidão, de ser esquecido? Ficou mal acostumado? Esse é o seu lugar, de onde você só saiu pra dar uma volta, mas logo foi lançado de volta. Amar é um mito. Já não me sinto capaz disso. Nem as músicas da minha banda favorita me agradam. É isso. De volta pra o começo de tudo! Tudo por nada! E isso nem é o pior. E pensar que já acreditei que poderia ser feliz e dar minha felicidade aos outros. Que cantaria com minha voz mais bonita. Isso fica no passado, no passado..."

"Só chove. Não consigo ver o pôr do Sol que tanto amei na infância. Pela janela que deixa pra trás toda aquela paisagem borrada de bosques e morros da cana-de-açúcar, vejo memórias felizes, mas não me vejo nelas. Aquele é outro cara, não me reconheço nele. Constatar isso me deixou ainda mais sufocado".

Todas as sensações, memórias, começavam a voltar. E me senti dentro daquela história. Repeti, maquinalmente, cada palavra de meu interlocutor.

— "Imagine uma nova história para sua vida e acredite nela". Me lembrei dessa frase de algum lugar e larguei o absinto, o volante, e fechei os olhos. Ir pras festas, falar, rachar o bico com os amigos e conhecer gente era fácil. Os amigos sentem minha falta. O amor da minha vida já existe e nos beijamos no cinema, com pipoca e manteiga. Dançamos nosso forró no São João, sonhamos em nos encontrar no dia seguinte, conversamos o dia inteiro, fantasiando o futuro. Cheiro suas flores rosas. Transmito minha filosofia, tento fazer todos felizes. Sou realizado, uma boa pessoa. Levanto mais peso na academia. Consigo me concentrar quando eu estudo. Escolho as melhores músicas que fazem todos cantarem e gargalharem no karaokê. Sou a alma da festa. Sei flertar, amar todas as coisas. Sou Pessoa.

E sozinho, concluo:

— E decido ficar nesse mundo, abandonando a todos.

Finalmente, tudo fez sentido. Toda aquela busca por quem eu era no Purgatório, durante as estações. Minha cabeça latejava e me sentei na grama, por conta da dor nas costas e, subitamente, no tornozelo. Senti meu rosto se fechar e lacrimejei, logo quando me lembrei quem eu era.

— Agora sabe quem eu sou?

Não lhe falaria normalmente nessa situação, mas a resposta veio antes que eu a impedisse.

— Minha consciência.

— Nossa, demorou! Precisei te lembrar de toda essa idiotice só pra que respondesse uma pergunta! Agora entende o que é o inferno?

— É único pra cada um...

— Foi o que te disseram lá em cima e você não acreditou, seu agnosticozinho! Bem, aproveite a estadia enquanto espera pelo julgamento.

— Então...!

— É brincadeira! De todos, você é quem deveria saber quando sua mente brinca contigo! O julgamento já foi feito e VOCÊ foi o promotor, juiz, advogado de defesa, júri e testemunhas. E dentro da legislação inconsciente, já foi declarado culpado! Agora se me der licença, tenho mais o que fazer. Vou procrastinar, igual você fazia em vida. Até logo.

Lentamente, a consciência se afastou de mim e fiquei desamparado na grama. Agora sim sozinho, como eu bem queria.

Me deitei e por um momento e deixei sentir dor. Simplesmente não conseguia processar o que dizia a consciência, então decidi aos poucos ignorá-la, ainda que com muita dificuldade. Na sua casa, era muito desleixada e ruidosa.

O céu visto de baixo não parecia assim tão horrendo com sua cor de sangue. Ainda tinha uns tons rosados aqui e ali e alaranjados acolá. Tive a impressão de ver o Sol e me lembrei de novo de quando era pequeno e despreocupadamente brincava pelos versos do tempo. Senti saudade do melhor amigo de infância que não falava havia anos. O que aconteceu para nos afastarmos daquele jeito? Ah, é verdade. Me mudei pra longe e foi destruído nosso contato.

Estranhei um pouco meu pensamento. Foi destruído, não destruí. Falava como se eu não tivesse tido culpa nisso.

Os moinhos, tão assustadores, agora pareciam mais calmos. Queriam moer as minhas lágrimas, minha visão de solidão, e fui muito grato a eles por isso. O vento não parecia um invasor, mas um visitante amigável.

Mas não seria assim tão fácil me acalmar. Longe disso.

Sentia tudo escurecer, como tinha de ser no inferno da minha cabeça bagunçada e autocrática. Eu ainda era uma bagunça, querendo ou não.

Nem mesmo sabia dizer se existia escapatória. De certa forma, não escolhi estar ali. Foi Rio Vivo!

— Rio Vivo também é parte de você.

Murmurou ao longe minha consciência. Mas mesmo que eu não lembrasse quem eu era do que gostava ou quem amava, ainda era eu.

— Você não é nada. Não se esqueça disso.

— Eu... não sou nada.

— Você não tem personalidade. Só roubou todas as outras que encontrou no caminho

— Que encontrei...

— Eles já se esqueceram de você, não esquenta. Agora pode aproveitar a estadia. Pelo menos está isento de aluguel este mês! 

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