Canto X: À deriva
De repente, numa mistura caótica, todos os sons estouraram numa grande explosão, que fez zunir meus ouvidos e acabar com o som do palco. Se foi a audiência, os equipamentos, os holofotes. Agora, Rio Vivo era só um jovem comum, ainda que estranhamente vestido.
Vendo essa oportunidade, aproveitei para lhe comunicar o quanto amei o show e lamentei pela sua morte.
— Não foi nada! Tudo por um fã. Fiz a última canção especialmente para o tour do Purgatório!
Seus olhos avermelhados e narinas irritadas diziam muito sobre como tinha morrido. Sorrindo, continuou a falar comigo!
— Eu te ouvi gritar para o céu quando você chegou no topo do Purgatório. E vou te contar. Todos que estão aqui, estão pra sofrer, inclusive eu. Segure minha guitarra um momentinho enquanto acendo esse charuto. Obrigado! Mas você já sabe disso. O que não sabe, é que podemos sim ver o inferno daqui. Dê uma espiada da beirada. Só cuidado para não cair.
Subi ao palco, hesitante, e olhei em cores. Tudo tinha um tom avermelhado, incluindo a minha pele. E lá embaixo... que horror. Ouvia gritos, estalos de chicotes, empalamentos, queimas.
— Então o sofrimento eterno existe mesmo.
— Não mesmo. Isso é o que você vê, mas não o que eu vejo. Lá embaixo, as pessoas vivem calmas como ovelhinhas, surdas a qualquer música e imunes a qualquer reclamação dos pastores. Esse é o inferno pra mim, um mundo de cordeiros sem pensamentos e gostos. Então me diga: o que é o inferno pra você?
Ouvindo a explicação, duvidei dos meus sentidos. Será que aquilo realmente existia, esse verdadeiro submundo de vermelhidão?
— Eu vi punições horríveis, mas não consigo mais confiar no que eu vejo.
— Não tem certeza?
— Não.
— Pois bem, Pessoa. Tome isso e eu posso te mostrar.
Era um comprimido cilíndrico branco com listras azuis.
— Por que você me chamou disso? Eu nem sei meu nome!
— Oxe, porque é isso que você é. Alguém que quer entender sobre si mesmo e procura pela sua verdade sobre o Universo que te cerca. Agora se decide, macho. Toma ou não toma?
Sem dizer uma palavra, engoli o comprimido e inicialmente não senti nada. Já ia reclamar, até que senti meus batimentos se acelerarem e a pressão aumentar, mais um sentimento de euforia, felicidade. Até pedi para Rio Vivo tocar mais uma música, mas quando olhei em seus olhos, vi-o distorcido, turvo, triplicado, girando.
— Já que insiste! Vamos de novo com Beatlemania!
Nisso, as guitarras, baterias e baixos se elevaram caoticamente, interpostas e extremamente altas. Tinham uma qualidade, textura tão únicas. O vermelho me falava, era agressivo, bruto, se mostrava a outro, ousado e transparente. O azul chorava horrores e me abraçava pedindo ajuda. O branco dizia que tudo ficaria bem no final. Laranja, que calor, quanta soberba, se mostrava como um trapalhão! Oh, rosa! Que excitação! Tinha laços, rendas, fios soltos. Cores em gradientes desconhecidos. Curvas sobrenaturais.
Senti vontade de tocá-la, beijá-la, despi-la. Me fundir com ela. Mas antes do beijo, vi a Dragoa, seus olhos vazios, lábios rosados e baixando a vista para vê-la por completo... recuei, assustado. Aquilo era demais para mim, que alucinação bizarra!
Então, os instrumentos foram ficando cada vez mais distantes e o piso começou a tremer, dançar de euforia suada. E senti meu chão sumir, literalmente. Caí no ar, sem poder gritar, comendo a dança das cores que cobria a visão, seus padrões árabes. Rio Vivo também caía comigo, ainda cantava. Que vontade tive de pedir um autógrafo, abraçá-lo!
Mas quando me dei por mim, tudo voltou a ser preto. Voltei ao começo! Era impossível. Aquilo não podia ser o inferno! Não podia, não podia! Sozinho pra sempre!
Gritei para mim mesmo em uma voz que não era minha. Era a do Poeta.
Ah Meu Deus, cadê o Senhor! Era a do Prisioneiro.
Tudo pra nada, nada! Angustiado teimava o Herói.
Mundo mundo vasto mundo. Você tem tudo, mas o que é meu, é o nada. Amargo, disse o Viajante.
Cadê meus livros? Aonde tá o meu amor? Enfim, a Dragoa. Ver sua voz saindo de mim me fez sentir uma tristeza astral. Sentia falta dela.
Até mais, Pessoa! Brincalhão, Rio Vivo saiu de mim. Até da minha própria voz fui roubado!
Sentia uma forte tontura e dor de cabeça enquanto caminhava como um bêbado. Mas nada acontecia. Só preto a todo lado, que gargalhava sombrio, sedutor para que eu descesse ao abismo.
Mais outros cenários vieram. Uma sucessão cada vez mais rápida de climas e lugares aconteceu (inverno, verão, verão, inverno) em tantas ruas, estradas de terra, salas, salões, lixões, rios, florestas, semiáridos e cerrados, mas nada respondia quem eu era.
Estava à deriva, completamente sozinho. Nem eu mesmo me fazia companhia.
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