Canto VIII: Jardins da Razão
A garota (a forma como a via depois dos versos) me encarava com um olhar meio terno, meio de censura, como se dissesse "vá embora! Procure uma saída! Esse lugar não é pra você!" Como se lesse sua mente, respondi à Dragoa:
— Nem aqui é lugar para você. Vou mesmo tentar achar uma saída desses dias sem fim, mas prometo voltar no futuro. Você parece ter sofrido muito em vida e merece um encerramento.
— Você não sabe o que diz! E os outros, vai deixar eles aqui? Pelo que parece, são bilhões de almas penadas!
— Eu não sou o salvador de ninguém, nem de nada. Só quero achar um jeito de sair daqui. E diferente dos outros, você ainda quer ir, não é?
Seu silêncio, olhar resignado, dizia tudo. Novamente passei a vê-la em sua forma anterior, enrolada em si mesma, nos livros e pensamentos.
— Não sei se acredito ou não em você. Se quer minha opinião, acho que está se esforçando pra nada! Se nem mesmo o Herói conseguiu se safar, quem dirá a gente!
— Ele vê as coisas do jeito dele, eu do meu. Então me espere. Vamos juntos ao Paraíso.
— Ou ao Inferno.
Me despedi tocando em suas escamas e recebi seu olhar solitário. Juntos. Não sei o que quis dizer com esta palavra. Eu de um lado, ela do outro, para o mesmo destino? Ou...
Não entendia estes sentimentos, então decidi arquivá-los.
Saindo da sala de leitura, não dei de cara com a livraria, mas uma imensa floresta de araucárias, cheia de serras e planaltos. Fazia um calor intenso e nenhuma nuvem no céu negro podia ser vista. Retornei ao verão, portanto. Mas não com o mesmo entusiasmo de antes.
Enquanto subia cada vez mais alto pelas várias serras, perturbado com o silêncio absoluto, refletia. Conversando com tantos prisioneiros do Purgatório, comecei a duvidar da minha própria sanidade. O quão real eram essas estações, ecossistemas, cidades? Podiam ser alucinações do meu cérebro primitivo, incapaz de acompanhar o cosmos, extraterreno.
Me sentia inquieto por não saber quem era até aquele momento. Sim, era uma Pessoa. Mas o que significava essa palavra? E o que fiz para merecer estar ali? Do que eu gostava, com o que sonhava? Me sentia apenas um caldeirão de sentimentos universais, mas que nenhum se aplicava a mim. Me sentia à parte deles, do clima.
Ofegava um pouco durante a subida, desejoso de que tudo acabasse num instante. Bem queria que todas as coisas fossem imediatas. E que o caminho se abrisse imediatamente para mim, entre o nascer e morrer de estações.
Mas que seja. Se estava ali, era para aguentar o sofrimento. E recuperar o que era meu: a minha Pessoa!
Jardins da razão. Foi a forma que encontrei instintivamente para descrever aquelas bandas. Nos fazem pensar, mesmo com tantas plantas iguais até na beleza. Sem outra companhia, dançava dentro de mim mesmo. E incrivelmente, me senti menos sozinho do que estava com a Dragoa.
Adorei estar em minha companhia pela primeira vez naqueles jardins de cheiros coloridos e ervas vibrantes. Não via cores, mas sentia elas, incrivelmente. E me deitei na grama alta, deixando o vento passar por cima de mim.
— Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.
Entre as plantas, vi o pé de uma cadeira de plástico amarela, de onde vinha aquela voz infeliz, condenada, áspera, fantasmagórica, inválida. Todos esses qualificadores pularam imediatamente no meu julgamento. Me sentando, pude observar aquela figura de uniforme, algemada.
Tinha os cabelos ralos, sem barba e covas profundas nos olhos. Tinha cortes nas bochechas e hematomas. Entre as mãos, segurava um terço, com o qual repetia as orações. Segurava uma arma e uma garrafa de Pitú nas mãos. Reparando em mim, se assustou.
— Misericórdia! Não tinha te visto!
— Nem eu!
— Mas também, olha onde tu decide aparecer! Mal consigo ter UM DIA de paz...!
— Me desculpe, senhor, não foi minha intenção.
O Prisioneiro, subitamente, passou de raiva para medo em sua expressão e abaixou sua arma.
— Ah Meu Deus, perdoai-me! Perdi o controle de novo, moço. Entenda, aqui nesse jardim-floresta ou floresta-jardim se preferir, a cabeça da gente fica meia lascada, sabe? Qualquer coisinha é capaz de te tirar do sério, mais ainda pra um zé ninguém que em eu.
— Não diga isso. O que o senhor fez em vida?
— Não tá na cara?! Fui um imbecil. Um bandido imbecil que só descobriu Deus quando era tarde demais. E desde então vivo meu castigo aqui — muito bem merecido por sinal — orando por perdão sempre que posso. Nem adianta pedir pra minha mulher e filhos. Eu mesmo não perdoaria o Tonho por agiotagem. Eu não tô enganando ninguém fazendo isso, eu sei. Mas quero que o Deus Pai, saiba do meu arrependimento. E que aceito qualquer resolução Dele.
Permaneci em silêncio.
— Pela sua cara, acho que não me entende. Jesus é a única salvação, meu jovem. Entenda isso pro seu bem. O mundo que a gente vive no Purgatório não é o mesmo da vida não. Lá tem boleto, fome ,miséria, assassinato, moleques analfabetos.
— Eu não me lembro de nada disso....
— Lógico que não. A cabeça da gente não sobrevive aos jardins da razão. Pouco a pouco você se perde de você entre tantas reflexões e cenas do paraíso e inferno que pisam na sua vista. Tu vai ver. E o passado vai deixar de importar pra alguma coisa. Vem, senta naquela outra cadeira e tome um gole para admirar o seu apagamento.
Nem hesitei em lhe obedecer. Uma melancolia — daquelas existenciais — veio até mim. Se assim era o mundo, como consegui viver nele? E morrendo assim tão novo, pelo que entendo do meu corpo... e mesmo com as insistências do Prisioneiro, não era capaz de entender Deus.
Até então, Ele nunca apareceu para mim. Nem mesmo no passado. Enquanto minha companhia continuava sua pregação, passei a perceber: era pura e simplesmente fé, crença, que ele tinha. Ambas em absoluto me faltavam. Não sabia exatamente explicar o porquê.
Será que não havia a possibilidade de haver vários Deuses? Ou mesmo nenhum? E como acatar ou descartar cada possibilidade?! Eis o dilema da teologia que provavelmente foi resolvido há séculos, mas que nunca tive conhecimento.
Não questionei o Prisioneiro menos por medo de desagradá-lo que pela minha própria incapacidade de falar. Isso mesmo! Tudo que saía da minha boca eram barulhos ensurdecedores de telefones de gancho! Minha companhia parecia cada vez mais nova, voltavam os cabelos, surgia uma barbicha e vestia camiseta de time e fumava um cigarro, agora com as mãos livres de algemas e armas, ainda com tatuagens no braço.
Vi um mundo de jornais surgir do céu, caindo lentamente. Tinham imagens em preto e branco e manchetes sobre o assassinato de um funcionário público do Banco do Brasil. Então, notícias de um massacre em um presídio.
Me sentia nauseado, amedrontado diante de tudo aquilo. Então esse era o mundo que vivi. Muito distante das viagens, amores, lutas contra dragões que ouvi sobre. Entendi melhor o ponto da Dragoa da livraria.
Viver é mais fácil de olhos fechados.
E caio num transe da mais medonha poesia.
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