Canto VII: Dorian Gray
A avenida se metamorfoseou em art nouveau, visível nos arranha-céus de outros tempos enfeitados de tantas abóbodas, grades, varandas e colunas, numa quantidade que jamais vira até então.
Não era mais tão estranho respirar a cidade, seus cheiros de perfume e fedor dos carros e as feiras e falatório do povo. Me trazia satisfação pensar que, em algum momento da vida, vivenciara aquilo.
Passei por uma praça com estátuas de políticos esquecidos. Vi grafites em viadutos e túneis, passarelas por uma avenida de oito faixas em via única barulhenta. Outra praça com uma flor metálica. Um parque para se deitar, comer chorizo e visitar os animais.
Girei pelo que pareceu uma eternidade por aquela beleza. Nunca mais queria sair dali. Estar sozinho na multidão me fazia esquecer de quem era. Ou de quem eu ainda não sabia que era.
E a chuva, insistente companheira, começou a alagar as ruas e então despertei do sonho. É verdade. Estava no Purgatório, não em vida. Quanto mais ficasse lá, mais demorada seria a busca do autoconhecimento. E talvez me afogasse antes... Se é que isso era possível.
Mas antes de seguir, meus olhos encararam uma fachada estranha de uma loja que ficava no térreo de um prédio de uso misto. Comércio ao térreo, apartamentos acima. Uma livraria. Naquele momento, livros não me atraiam, mas o lugar era tão brilhante, tão cheio, tão aconchegante com seu cheiro forte de café e tortillas que não resisti e entrei.
Nada demais no começo. Apenas as sessões mais populares dos livros de fantasia adolescente e jovem adulto, mais as filas imensas nos caixas para pagar com montanhas de cédulas. Ainda estavam nos tempos de inflação.
Mais à frente, uma entrada. Achava já se tratar da lanchonete, mas fiquei paralisado.
Três andares de livraria. Estantes no térreo, subsolo e dois andares. Todos os gêneros. Todos os humores e autores que deviam ter passado pela terra. E lá em cima, lá na abóboda, pensei ter visto uma cena do próprio Paraíso, mas era só afresco de anjos brincando no céu.
Me senti um pouco desapontado. Estava me sentindo tão perto do topo!
E mais à frente, percebi que aquilo, na verdade, foi um dia um teatro, pois notei a existência dos camarotes e das imensas cortinas que agora estavam fechadas. Devem ter representado Lorca e Tchekhov no passado, mas os livros invadiram e expulsaram de vez as peças e corais.
Descendo as escadas e vagando pelos livros, finalmente fiquei frente a frente com as cortinas que me abraçavam em seu gigantismo. Abrindo-as, encontrei dentro uma espécie de sala de leitura.
Estantes vazias, livros jogados nos tapetes e iluminação de neon faziam aquele ser um espaço seguro, exclusivo. E sentado no sofá espaçoso do centro, vi um dragão chinês enrolado em si mesmo, totalmente imerso no livro que lia. Suas garras passavam cada página com destreza, roçando os bigodes de um corpo imenso, que provavelmente tinha cores vibrantes de todo o espectro visível. Mas, uma pena, somente o via em diferentes tons de preto.
Não sabia o que dizer na situação. Simplesmente fiquei admirando sua magnanimidade. Minha vontade? Agarrar os livros, me sentar junto dele. O julgamento poderia esperar.
— Há quanto tempo está aí?
Me assustei. A voz do dragão era feminina! Não aguda, mas firme, de uma segurança típica dos dragões.
— Acabei de chegar na verdade... Mas acho que já vou indo. Me desculpe pela invasão.
— Antes disso, me deixe perguntar algo: gosta de livros?
— Não gosto nem desgosto, sendo bem sincero.
— COMO NÃO?! VOCÊ ACHA LITERATURA SEM GRAÇA?
A Dragoa (como então percebi) me encarou com os olhos fixos.
— Eu não disse isso. Só não me lembro sobre o que dizem os livros. O que mostram além da capa. Sou mais alguém que anda por aí aceitando o que vier, escutando os sons. E essa é a arte que mais gosto.
— Pois eu não sei o que tem lá fora. Só conheço meus livros! E sinceramente, tô muito bem com isso. Eu já cheguei no Paraíso. São estes livros! Só eu e... os livros. Eu e os livros...
— Entendo... Que livro é esse que você tá lendo?
Um sorriso se abriu nela.
— O Retrato de Dorian Gray. Já ouviu falar? É do Oscar Wilde.
— Tenho uma vaga lembrança, mas não sei não.
— Sério? É agora que você vai sentar do meu lado pra saber desse livro. Você mora em uma caverna, cacete?!
— Purgatório. Mas não sei se tem tanta diferença.
— Então, esse livro também mostra meu ponto do porquê literatura é tão incrível e perfeita. Imagine o século XIX na Inglaterra. Sabe do que eu tô falando?
— Por incrível que pareça, sim.
— Imagine aquela nobreza esnobe, metida a conservadora, mas que por trás dos panos só faltam gritar pro mundo que bateram na esposa e traíram ela por aí. Enfim. Inglaterra era o país mais poderoso do mundo, maior império colonial da história, Era Vitoriana, etc, etc. Então imagine nisso daí o Oscar Wilde, que nos mete um romance gay em 1890! Beleza que era "bem" disfarçado, mas ainda foi bem homoafetivo a relação do Dorian com outros personagens. Daí, o autor foi preso e então se exilou na França! Mas sabe, até o nome do livro tem um quê de... né. Porque o nome "Dorian" foi inspirado nos dórios da Grécia e a cor cinza...
E ela continuou falando por muito tempo sobre o enredo do livro e uma análise própria do machismo e homossexualidade nele presentes. Até prestei atenção no começo, mas uma forte dor de cabeça chegou em mim. E uma vontade extrema de estar sozinho.
Me senti perdido no meio de tantas palavras, informações. Parecia estar em um vale cercado por montanhas de letras. Um falatório que me deixava inquieto sobre não saber o que fazer, responder. Que me sufocava, por não deixar brechas para réplicas. Não sei se era alucinação, mas comecei a ver a Dragoa não como tal, mas uma menina, jovem assim como eu, mas de definições vagas.
Parecia ser alguém que já conheci em algum momento. Tudo nela era familiar, nostálgico. Tudo nela era arte, mesmo seus xingamentos frequentes e piadas desnecessárias com questões sérias. Não me sentia necessariamente feliz de estar ao lado dela. Era algo mais próximo do incômodo, de me sentir estar voando muito longe, desprendido até mesmo do Céu e da Terra, Purgatório ou definições desse tipo. Até nesse plano espiritual eu desejava algo de novo, é incrível.
Me sentia solitário, mesmo perto daquela velha amiga(?). Mas, aos poucos, suas falas foram se transformando em versos que diziam muito sobre quem ela realmente era. Não seus interesses, mas as preocupações de sua alma. E voltei à sala de leitura, consumindo com os ouvidos a voz que aos poucos me soava cada vez mais doce. Sim, era essa a palavra. Ia aos poucos conhecendo ela e ela me conhecendo. Eu ria de suas piadas e enfim contava as minhas. Ela gargalhava. Tocávamos mais um ao outro. Mas naquele momento, não passou muito disso.
Seria isso o que queriam dizer com amor? Talvez não de amantes, mas amigos. Mal a conhecia, mas que estima já tinha por ela. E fiquei a ouvi-la, os arredores ficando cada vez menos nítidos frente sua figura feminina.
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