Canto IX: A Estiagem de Inverno
Como pensar em amor depois disso? Depois de entender o caos social, o poço sem fim do país de onde vim!
Como pensar em poesia, religião? Para quê tudo isso , enquanto existe a fome e a queima das florestas?!
Mais: de que serve fugir do Purgatório, se ele não parece ter fim?
Me sentia pessimista, para dizer o mínimo, sobre as minhas chances. A de todos os outros, na verdade. Viemos pagar pelos nossos pecados arbitrários, definidos por alguém ou algo que não conhecemos. Ou o próprio Universo decidiu nos impor sua chaga.
Enquanto me debatia em pilhas e mais pilhas de pensamentos, percebi que cheguei ao topo do maior dos morros. Saí da prisão sem perceber e subi uma escadaria que serpenteava entre casas espremidas sem endereço.
Na verdade, só havia a ampla chapada onde estava, pois o horizonte ainda era escuro, despido de qualquer paisagem (des)agradável.
Indiretamente desejei a volta do meu inverno, de uma chuva que me lavaria, mas recebi frio e estiagem, que deixou a garganta profundamente seca, irritada. Nem isso me podia ser concedido! Tudo o que quis foi gritar.]
Ecoei um socorro sem som, recebido por ninguém. Me sentei e baixei a cabeça, amplamente exausto pelas minhas caminhadas entre os saberes e as memórias. Então era isso. Cheguei ao topo. Do topo só podia vir uma queda.
Até que ouvi sons de aplauso seguidos de agradecimentos. E então recomeçou o som do show. Acústico. Erguiam-se baterias, saxofones, teclados, sanfonas. Até guitarras! Olhei para frente e vi um palco sem qualquer audiência, onde o vocalista fazia seu show sem sua banda. Mas isso não o incomodava de modo algum.
Estava muito alegre mesmo. Dava gosto ver como dava tudo de si em sua voz, as notas de sua guitarra, suas roupas rasgadas, os olhos profundos e imenso cabelo crespo. De todos que vira até então, era o que se vestia do jeito mais estranho. Rico em joias, mas miserável em roupas e rosto ao mesmo tempo. Não era trovador, nem poeta. Era... diferente.
E então, veio seu solo de guitarra e me senti... vivo! Pela primeira vez, via cores que giravam em círculos e ondas em grandes mandalas ao meu redor! E como eram lindas. Mal podia acreditar que escapava da escuridão! Estava sem qualquer reação, incapaz de sequer esgoelar de felicidade.
As cores, tímidas de início, farejavam até mim aos poucos e então me tocaram com seus focinhos, me deixando acaricia-las, cheira-las, absorvê-las. Me esqueci da minha tristeza interior. Isso era tão...!
Não era poesia por poesia. Era absurdo, inexplicável. Quão lindos podiam ser sons, notas musicais que vinham de um instrumento de cordas, de ritmo, sopro!
E mais uma vez, uma salva de palmas, dessa vez acompanhada por mim, com assovios altos.
Todos os holofotes lá na frente se apagaram. E luzes verdes e azuis apontaram para o centro, onde o músico se banhava de cores, com sombras tampando os olhos e lábios. Erguendo a cabeça, encarei seus olhos negros, tão sinceros que me fizeram chorar.
— Boa noite, Purgatório!
Gritos estridentes e aplausos.
— Este foi nosso cover de "Os Sete Poloneses", da banda Química Cínica, espero que tenham gostado!
— Palmas para Rio Vivo, que ele merece!
— Obrigado, obrigado! Sabe, mesmo que essa vida de gravações e turnês seja bem cansativa, ver o sorriso de vocês me mostra como tudo isso vale a pena. O que seria do músico sem uma audiência tão arretada que nem essa!
Rio Vivo, mais uma vez foi ovacionado. Sorrindo, pediu silêncio aos fãs invisíveis.
— É uma noite linda, né? Bem seca, como é da estação. Acho que nunca contei a vocês essa história, mas quando eu era criança lá no quinto dos infernos do País dos Poetas, eu não prestava atenção nos bichos ou no clima. Não, não, essa vida de "agro é tech" nunca foi pra mim, haha! O que eu me interessava mesmo era o céu, as estrelas, a gente e o São João da minha terrinha. Meu pai, caboclo bruto, vivia teimando pra eu parar de ser avuado e ajudar ele. Mas isso é lá vida para quem sempre quis ir aos palcos desde os tempos da MTV?!
— NÃÃÃO!
— Pois é! Mas mesmo com a chinela comendo, eu continuava pensando música e tocando música. Toda vez que meu vô tocava sanfona ou escutava o rádio, parecia que eu ia pra outro lugar. Uma terra mais rica, verde, onde a gente só fazia dançar, rir e chorar. Sem briga besta, nem coronéis, nem a seca. Só amor. E é isso que sempre quero passar a vocês, minha gente. A cidade é cruel, como eu descobri logo quando saí do interior pro litoral. Ninguém te nota, todo mundo de cara feia e quando notam, só faltam fazer mainha chorar de tanto xingamento! Então combatam todo esse ódio com o amor de vocês! Amem a vocês mesmos e ao outro do seu lado!
Estava completamente vidrado em suas palavras, assim como aquela gente.
— Então, senhoras e senhoras, já que junho já chegou e logo o milho e a canjica vão pras casas da gente, vamos mudar um pouco as coisas! Vamos fazer mais um pouco de rock pra depois ir pra o forró do jeito que sabem que eu faço! São as minhas músicas mais antigas, antes mesmo dos primeiros discos. Mas acho que vão gostar. Aproveitem o resto do show, Rio Vivo por aqui!
Por unanimidade, todos concordaram com gritos altíssimos, elogios, gritos de torcida! Mesmo sem ver uma cabeça, me sentia parte de algo muito maior, uma verdadeira celebração à vida. Me esqueci da morte e de todo o resto. Me levantei e fiquei à frente de Rio Vivo, ouvindo seus ritmos.
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