Canto IV: Mata Cerrada
A escuridão aos poucos foi sendo preenchida por linhas retas de brancura agoniante, que então formaram retângulos, quadrados, trapézios, losangos. Formas geométricas.
Era o auge do verão. Naquelas bandas, nuvens formadas por retângulos sobrepostos pairavam acima pela vegetação diversa. Tão retorcida, indo desde arbustos a médias árvores de poucas folhas e muito, muito espaço aberto. Era a estação de chuvas da mata cerrada.
Sons de araras, bem-te-vis, dezenas de aves num passaredo quase ensurdecedor rodavam meus sentidos e senti náuseas, ainda que não tivesse fome ou sede.
Então, em uma parte quase que totalmente despida de árvores e de qualquer criatura, vi uma propriedade cercada. Propriedade. Até em um lugar como esse as pessoas queriam reclamar um pedaço só seu!
Era um terreno pequeno, como logo percebi. Uma casinha de taipa caindo aos pedaços cercada por uma plantação arruinada, de terra arada, mas há muito tempo sem produzir. O portão de madeira estava entreaberto e lá entrei, caminhando pela passagem de terra despida de grama.
Não tinha porta nem teto a casa. E naquele cubículo encontrei um outro sujeito sentado no chão sem piso, vestido a um modo estranho: chapéu de aba larga, roupas que pareciam ser farrapos típicos de... uma era medieval!
Devia ser um adolescente no máximo, mas já carregava nos olhos o peso de vidas infinitamente maiores que a sua. Vidrado, encarava o reboco das paredes, na casa totalmente desmobiliada, tendo apenas embalagens de presentes não abertas e uma espada enferrujada e danificada nas pontas.
— Com licença, desculpa entrar sem avisar, mas saberia me dizer que lugar é esse?
Arrisquei travar uma conversa com aquela figura saída de novelas de cavalaria. Saindo de ume espécie de névoa da consciência, se voltou para mim.
— Tarde. Que isso, se tá aberto, é porque pode entrar. Se sinta em "casa".
— Obrigado. Mas...
— Tá mesmo falando sério que não sabe onde está? Essa é a sua punição pelo quer que você tenha feito. Na verdade, a primeira parte dela. Só que continua sendo a mais cruel de todas.
— Como?
— Ora, vamos, me faça companhia. Imagine um cafezinho quente posto à mesa. Nem a isso tenho direito aqui!
Obedeci.
— Por punição, até onde eu sei, me refiro a essa espera imprevisível, a ansiedade de saber se você vai arder no fogo infernal por toda a eternidade ou vai ser aceito nos céus e vai aproveitar a companhia dos anjos e descanso sem fim. Mas eis o Purgatório, a espera pelo julgamento dos nossos atos, entende?
— Atos? Mas eu nem fiz nada!
— É porque você não se lembra. Inclusive, como se chama? Não sabe? Pois nenhum de nós sabemos nossos nomes. Só aos poucos fomos nos lembrando do que fizemos. Quer um exemplo?
Fazendo o gesto de tirar o chapéu e tomando uma xícara invisível, prosseguiu numa voz solene, à qual me deixei envolver em silêncio.
— Sempre fui vaidoso, desde menino. E ainda mais quando descobri que era O Escolhido! Nossa, aí que minha vida mudou de vez. Me tornei um herói, o sonho de todas as mocinhas, o motivo do Rei ter o descanso dos justos nos tempos de crise. Mas isso tudo serviu de algo? Ora, veja só onde vim parar. Aqui nessa barraco cor de cinzas.
— Cinzas? Só vejo linhas brancas em tudo, com um fundo preto vazio.
— Entendo. Todos vemos esse lugar de um jeito, caso não saiba. Um poeta que perde o tempo dele na praia me disse que vê tudo em cores de pôr do sol com o aroma de creme de cabelo. Um viajante, diz ver azul. Um agiota condenado, cor de sangue. Uma dragoa, o verde dos livros. Um músico, as cores dos holofotes misturadas.
— Todos eles vivem aqui?
— Onde mais estariam? Perdemos a noção de tempo, parece que estamos aqui desde sempre! E veja bem, caminhei muito por aqui e só conheci essas pessoas até agora. Mas devem ter infinitas mais, de muitos séculos e de vários destinos esperando por um final, um encerramento. E eu sou um deles. E você também é, não se engane. Então espero que se lembre das rezas, porque vai ser uma espera longa...
Me senti como uma casca vazia diante de tanta informação. Era como se de repente as linhas que via começassem a vibrar levemente e meus ouvidos zunissem, minha respiração ofegasse, algo dentro de mim quisesse escapar.
Quis desesperadamente ver como era minha aparência. Se tinha rosto, como eram as roupas, um sinal, um propósito! Não é possível que teria de ficar ali pela eternidade com tantas outras almas!
Aos poucos, a descrença do poeta e do herói foram se incorporando em mim e o verão não pareceu mais tão belo. Era irritante, na verdade. Só aquele calor e uma vontade de esquecer de mim, de que existo. Percebendo meu olhar afundando e minha expressão se fechando, o garoto quis aliviar um pouco o tom.
— Eu sei, é coisa demais pra ouvir de uma vez. Mas é melhor saber de tudo logo. Depois de um tempo, você se acostuma a ficar vagando assim. Mas sabe, o que eu sinto agora não é muito diferente do que eu experienciei em vida, saindo por aí só com meu cavalo e minha espada. Eu também procurava algo, sem nunca achar. Minha história de vida é muito sobre isso. Essa sensação horrível que... nunca... vai embora... Um vazio... que nunca te deixa... Ah, foi mal. Fico meio emocionado quando penso em quem eu poderia ter sido.
— Não, não, entendo perfeitamente.
— Sabe, tanta coisa aconteceu até eu morrer. E olha que nem velho sou, diferente de você, tio.
— Quê?! Tô tão acabado assim?
— É brincadeira. Até que não está mal. Mas ainda assim, tive tanto tempo livre que até consegui fazer poesia. Aprendi um pouco com aquele poeta, não sei se já conheceu ele.
— Vi ele sim.
— Tanto melhor. Queria ser trovador antes de sair por aí salvando cidades e colecionando donzelas, mas nem pra isso servi, há há. Posso te confessar um pouco do que passei?
Assenti. E mais uma vez fui exposto aos versos alheios.
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