Canto II: A Praia

Eu estava quase caindo de exaustão quando vi o primeiro fragmento de luz em tanto tempo, se é que existia esse conceito na pintura negra. Não me sentia um minuto mais velho e sábio, sendo bem sincero.

Na verdade, não era bem luz, mas contornos brancos de uma paisagem que não me era tão estranha. Vi mato, plantas de tronco meio inclinado com riscos em formato de circunferência, longas folhas que saíam para fora da gema apical do caule. Palmeiras!

Então, olhei uma extensa faixa de areia (o confirmei sentindo os grãos nos meus pés nus) e o que parecia ser o mar. Era, de fato, uma praia e sentia o vento e o sol baterem em mim, apesar do horizonte estar claramente vazio. Me desencantei quando percebi se tratar de uma infeliz imitação do litoral.

Mas minhas fantasias de uma praia verdadeira foram interrompidas pela melodia melancólica de uma gaita, que penetrava e rasgava minhas entranhas. Tão desolada, solitária era que deixou meus olhos úmidos. Chorar, mais uma ação esquecida por mim.

Comovido, segui as notas rebeldes que flutuavam no ar em sua fuga da partitura, ainda que soubessem que seriam presas e alcançadas quando perdessem sua intensidade, e dei de cara com um sujeito de cabelos ralos encarando o mar com uma expressão de nada.

Vestia... estranhamente formal! (veloz, completou a consciência). Camisa de botões com gravata, calça e sapatos sociais. Sozinho, só tinha três posses: uma gaita, um caderno e um lápis.

Logo que me viu, me cumprimentou numa voz grave e triste de quem viveu tudo que precisou viver. Como parecia estar ali há muito tempo, fiz questionamentos meio desesperados sobre o que era aquele lugar e tamanha era minha confusão e minha pilha de perguntas que precisei ser interrompido.

Talvez você devesse perguntar quem eu sou antes de mais nada.

Esqueci até das chamadas boas maneiras!

— Me desculpe, senhor. É que simplesmente acordei nesse escuridão sem nem me lembrar de nada. Pensava ser o único aqui!

Ah sim, sim, isso acontece mesmo. Nem de meu nome tenho ciência.

— Ué, então por que insiste que eu pergunte quem você é?!

— É cada uma! Eu sou o que faço, não um nome dado por pais que na minha memória têm o rosto borrado.

— Se você diz... então, o que faz?

— Sou um poeta apaixonado. Vivo da poesia aqui no Purgatório. Isso mesmo, estamos todos mortos.

— O que é estar morto?

— Agora sim você está fazendo as perguntas certas! Vamos, se sente aqui comigo e sinta um pouco da brisa.

Obedeci e fiquei ali, imerso nas palavras do poeta desconhecido. Por vergonha, optei não perguntar o que fazia um poeta. Pelo menos tinha a vaga ideia de sua relação com versos, estrofes e a escolha ou não de rimar, usar de métrica e figuras de linguagem se bem entender.

— Bem, estar morto ou vivo. O purgatório, até onde eu sei, é o estado de espera para a "salvação", seja lá o que signifique para a teologia. Alguém que saiu da vida e está no limbo, cuja alma que ainda não foi totalmente purificada e é preparada para o paraíso. Ou, caso não consiga, vai para o inferno. Então não sei bem o que significa cessar de existir por completo. Desaparecer. Nem sei se acredito em céu ou inferno. Apenas entendo a morte interior, estar apaixonado e não poder fazer nada sobre. É por isso que não quero seguir adiante pelo Purgatório. Não tenho nenhum motivo. E aqui é agradável, não acha?

Nada respondi. Estava hipnotizado pela sua voz reconfortante, ainda que desanimada.

Então, o poeta abriu seu caderno e um mundo quase infinito de poemas surgiu na minha frente.

— Se tem uma coisa sobre a qual posso te ensinar, é o amor. Dele você não pode se esquecer, porque a parte fundamental que constitui o ser humano é justamente aquilo que sentimos. Mas o amor é ainda mais forte que o resto. Pode ser que ele dê sentido para sua vida. Ou seja, o motivo para o fim dela. Você entende o que é beijar e entrar na outra pessoa? Fundir seu Eu com o Eu dela em uma relação? Quero dizer, falo da velha definição de relação, que, por incrível que pareça, já é antiquada para alguns. Não tem nada de mais belo e doloroso na vida.

— Nem sabia que existia uma velha definição, ainda mais uma nova!

— Que pena! É impossível te fazer sentir a dor que sinto, mas quem sabe eu não possa partilhar uma taça com meu sangue. Nele você sente o calor do desejo, fantasias de mais jovem e a mais amarga decepção que te rasga por dentro e por fora. Pode beber. É agridoce.

Aceitei sua proposta, ainda que com receio, e bebi, assentindo que o Poeta não mentiu. Então, me senti enjoado e vi as espirais de poemas do caderno subindo ao céu, como se fossem concretistas.

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