PRÓLOGO - (Goodbye, New York)

A estrada à minha volta parece um borrão verde e amarelo, mesclando-se numa paisagem difusa e veloz, que vai tomando distância uma vez que meu pai avança progressivamente pela estrada. Nós estamos perigosamente perto de nosso destino, o que significa que estamos positivamente longe de casa. De New York. Ou nossa antiga casa, como meu tirano pai não cansa de me lembrar. Eu tento afastar a lembrança da minha mente, mas é quase dolorosa a forma que eu consigo ser capturada pelas luzes ofuscantes da Times Square enquanto vagueio pelas minhas memórias mais doces. Em minha mente, a Times Square explode em cor e vida e eu absorvo tudo, extasiada e envolvida por aquela atmosfera inebriante. Milhares de rostos desconhecidos passeiam à minha volta, e eu sou apenas mais uma no mar de incógnitas. Eu estou cercada por pessoas de todas as formas e variações, circundada por várias formas de encarar o mundo, e, de certa forma, estou imersa no meu próprio mundo. Sem julgamento ou restrições. Eu sorrio para o senhor que está tocando violão com uma sunga patriota e rio abertamente para um grupo de colegas que comemoram a vitória de um jogo, totalmente desligados do mundo girando ao redor deles. De repente, a imagem borra como se houvesse um problema de recepção de sinal. Alguém muda o canal.

Olho pela janela do carro, sendo abruptamente desperta dos meus devaneios obscuros. O céu, lá no alto, exibe uma abóbada estrelada que é difícil de discernir numa cidade grande. Ao contrário dos grandes edifícios apinhados da ilha de Manhattan, tudo o que eu consigo ver é mato e escuridão. Meu desapontamento é quase gritante em contraste com o silêncio agudo que sobrepuja o veículo. Meu pai se mantém fielmente calado à minha esquerda durante todo o trajeto em respeito ao meu breve período de luto. Eu me pergunto se dá para ficar de luto por uma cidade. Mas não é qualquer cidade — é New York, a capital cultural do mundo! E assim, simplesmente, eu sei que é possível.

— Eu sei que não deveria falar nada, mas você está fazendo aquela cara novamente. — meu pai interrompe meus pensamentos saudosos. — Você sabe, essa expressão chorosa que usa quando quer me fazer sentir culpa.

Eu não o respondo. O que uma garota precisa fazer para poder sofrer em paz?! Ele continua me encarando pelo canto do olho, visivelmente torturado pelo meu comportamento e eu preciso respirar — uma, duas, três vezes —para não me lançar contra ele e pedir desculpas pela minha frieza.

Meu pai está quebrado. Falido. Sem dinheiro. Esgotado financeira e emocionalmente. Nós estamos nos mudando porque as condições em New York ficaram muito apertadas para conseguirmos lidar. Meu pai me confidenciou que a situação não é recente. Ele vinha tentando achar uma saída para o problema da sua firma de advocacia e, assim, conseguir manter nossa estabilidade e minha felicidade, que estava em jogo. Mal sabendo que ele estaria sacrificando a própria no percurso. Mas, conforme ele aprendeu, segredos são como um vulcão adormecido esperando pela oportunidade de entrar em erupção e carregar consigo uma trilha de destruição. E, eventualmente, ele acabou explodindo. Bem na minha cara. Assim que a verdade veio à tona, tive que dar adeus ao nosso antigo apartamento, meus amigos e todas as minhas expectativas de vida. Nós empacotamos e atingimos a estrada em tempo recorde, deixando para trás uma vida de lembranças.

Eu não sei quando o choro me pegou. Só sei que um sufoco enorme me nocauteou, deixando-me sem ar. O desespero me consumiu. O próximo estágio da dor veio com uma alternância de soluços e fungadas e, por fim, quando a dor parecia demais para suportar, as lágrimas vieram. Foi um verdadeiro festival de lágrimas e meleca. Não foi um show bonito. Meu pai assistia agoniado enquanto eu me desmanchava em sofrimento, sabendo que ele próprio era o causador da minha miséria. Desde então, ele tem me espiado com seus grandes olhos castanhos, perscrutando na escuridão à procura de alguma indicação de que eu possa quebrar.

Mas eu não vou.

E é com essa perspectiva que eu abro a boca para fazer a perguntar que me aterroriza mais do que o fato de estarmos nos distanciando de New York.

— Para onde estamos indo?

Meu tom é baixo e quase passa despercebido pela sua audição, então eu repito a pergunta com mais força, olhando diretamente em seus olhos. Ele vira brevemente sua face em minha direção, mas eu sei que ele ainda está atento à estrada. Seus cabelos loiros estão mais avulsos que o normal e seus óculos estão ligeiramente tortos, mas, apesar de toda sua contenção por causa da fadiga, meu pai me olha com carinho, realmente aliviado pelas minhas primeiras palavras após horas de absolutamente nada.

— Leavenworth. — ele responde com tristeza. — Nós estamos indo para sua avó.

~ - ~

Eu não me lembro da minha avó. Minhas únicas lembranças dela cabem em pequenos cartões festivos, assinados com uma letra cursiva, repletos de mensagens de carinho. Meu pai e eu quase nunca saímos de Manhattan desde que eu nasci. Ele nunca se sentiu confortável para dizer o porquê, mas eu sempre tive a impressão de que havia algo que ele havia deixado para trás em seu passado. As poucas vezes em que visitamos a cidade eu era muito nova para me lembrar. Mesmo assim, toda vez que penso nela sou atingida pela imagem da avó tradicional, com sua mania por tricô e cabelos platinados, e muitos biscoitos e carinho para oferecer.

Mas os estereótipos não poderiam estar mais errados. Eu estou parada na varanda da casa que meu pai passou metade de sua vida, cometendo erros e vivendo experiências, e a mulher parada à minha frente é jovem — no sentido conotativo da palavra — e cheia de vida. Seus cabelos estão tingidos num tom de vermelho-sangue que, bizarramente, se assenta bem com sua pele alva. Suas vestes são um contraste de cores vibrantes e estampas, o tipo de estilo que não vem acompanhado com uma agulha de tricô. E eu não posso nem comentar sobre seus sapatos — os seus sapatos! Nunca pensei que um louboutin pudesse parecer que foi feito para uma pessoa. Deus, por tudo que é mais justo no universo, eu posso calçar o mesmo número que ela, por favor?

Minha avó não me vê. Meu pai está entre nós, enterrado em seus braços. Ela está absorta demais em recuperar o tempo perdido para me notar. Eu engulo em seco, esperando o momento em que nossos olhos se cruzarão. Eu quase posso sentir a diferença em mim, pois, em algum lugar do meu interior, quando seus olhos verdes se encontram com os meus, tudo muda. Minha avó me vê, realmente me vê, e seus olhos marejam com a emoção. Ela pisca para afastar as lágrimas e empurra meu pai delicadamente. Seus braços se estendem num pedido silencioso e eu não cogito duas vezes antes de me afogar no seu abraço. Apesar de toda a tristeza que pesa em meu coração, estar ali parecia certo.

— Liviana, querida. — ela murmura como uma prece.

— Vovó...

— Ora, pelo amor de Deus! — ela me solta e me encara sorrindo pelos olhos. — Me chame de Marien. Ninguém precisa achar mais razões para me chamar de velha. Eu posso sentir os cabelos brancos crescendo!

Eu rio. É uma risada fluida e parece um som estranho vindo dos meus lábios. Eu havia esquecido a sua pequena aversão à idade.

— Isso é uma risada? — meu pai provoca. — Quase pensei que seria um som extinto durante a viagem.

— Não seja dramático, pai. É só uma risada. Não se empolgue.

Eu posso senti-lo rolar os olhos às minhas custas e a imagem traz um sorriso mínimo aos meus lábios.

— Tudo bem, senhorita Eu-estou-morta-por-dentro. Vamos desempacotar.

Marien tosse.

— Eu não sei se estou louca, mas consigo sentir uma tensão vinda dessa área. — ela sinaliza entre nós. — Farei biscoitos! Biscoitos sempre resolvem uma situação ruim.

E, repetindo essas palavras com entusiasmo e um bater de palmas, ela retira-se para dentro do cômodo. Eu não posso evitar sorrir. Biscoitos. Isso soa mais como um programa de avó. Meu pai tosse desconfortável da soleira da porta. Ele parece sem saber como proceder, enquanto alterna o peso entre ambos os pés com incômodo. Meu coração afunda.

— Pai. — chamo.

Ele se vira. Meu peito dá outra soterrada com o olhar esperançoso que ele me direciona e é preciso todo o meu autocontrole para não me dissolver em seus braços.

— Nós vamos ficar bem. — afirmo com convicção. — Eu e você. Nós vamos ficar bem.

Seus olhos se endurecem com alguma coisa nova — determinação — e ele acena positivamente para mim. O ar está carregado de emoção e nenhum de nós ousa romper esse momento significativo. Nós sustentamos nossos olhares, com a promessa de que amanhã será um dia melhor, e meu pai enlaça um braço sobre meus ombros. O seu toque é quente, aconchegante e familiar.

— Nós vamos, querida. — ele pisca. — Agora vamos trabalhar. Essas caixas não se moverão sozinhas. — estou prestes a me mover, quando ele me puxa novamente com o olhar em pânico. — E se sua avó te der algum biscoito, por tudo o que é mais sagrado, NÃO COMA! Eles são péssimos.

~ - ~

Eu estou no meu quarto, encarando um espaço oco cheio de caixas e nada parece certo, exceto a aguda sensação de que eu estou muito longe de qualquer familiaridade. Meu pai está no andar de baixo, se esbaldando nas especiarias da minha avó, embora eu ache que seja mais por fome do que por saudade da culinária extravagante de Marien. Mal cheguei, mas sua inaptidão na cozinha a precede. A casa é grande e espaçosa e, ao contrário do nosso pequeno apartamento em Manhattan, que transmite individualidade, tudo nela passa conforto. Não chega a ser uma grande fazenda, mas possui um curral, um celeiro e um galinheiro nas remediações da propriedade, o que já é algo adverso para mim. Marien diz que agem apenas para manter a aparência rural, porque ela jamais ousaria sujar seu louboutin em bosta de cavalo, numa realidade onde sairia para colher ovos para o café e ordenharia a vaca às seis da manhã. Ela costuma dizer que a ideia dos pastos e do ambiente campestre a transporta para um dos romances de Jane Austen. Ela diz que não vendeu o terreno apenas porque a ideia de deixar meu pai sem herança a aterroriza, mas sinto que apenas não quer se desapegar do lugar que lhe rendeu tantas lembranças boas.  Então, mantém a atividade na fazenda como uma renda extra, à parte do seu emprego, vendendo o leite e os ovos para o mercado local. Eu tenho quase certeza que os cavalos só estão ali para alimentar uma fantasia de uma carreira no hipismo — não acho que seja realmente uma possibilidade, mas Marien parece ser imprevisível e gosta de manter as possibilidades em aberto.

Eu estou andando até uma caixa, retirando meus pertences. Os movimentos são tão mecânicos que parecem robóticos. Eu reviro os objetos com uma cautela moderada, em busca da única coisa que sossegará minha mente inquieta. Eu tateio até encontrar a superfície de capa dura do meu caderno de rascunhos — não, não é um "diário" — e aproveito para retirá-lo. Eu o abro e transcorro meus dedos pelas páginas gordurosas, ocasionalmente manchadas de café durante minhas pausas no Starbucks. As palavras saltam para fora, sentimentos embaralhados e confusos que tem a estranha necessidade de se manifestarem para o mundo. Eu absorvo algumas frases enquanto passo através das páginas até encontrar uma folha limpa e imaculada, totalmente inocente dos meus desastres alimentícios e mãos sujas.

— Você tem um diário? Que fofo!

A voz me pega de surpresa e eu deixo o caderno cair com um baque surdo, enquanto me viro abismada para encarar minha avó... Quero dizer, Marien.

— Você não bate na porta? Jesus, que susto. — disparo. — E não é um diário!

Não consigo disfarçar meu tom ofendido. Marien se contorce pra dar uma conferida no meu caderno e eu o escondo com meu corpo. Não é que tenha um relato pessoal sobre garotos ou algo do tipo, eu só sou bastante rígida sobre meus textos particulares — eles são extremamente confidenciais para compartilhar com alguém. Principalmente se esse alguém for minha avó.

— Parece um diário para mim. — ela franze as sobrancelhas e dá de ombros com descaso.

— Bem, não é.

Deixe-me afirmar: não tenho nenhum preconceito contra diários. Não os acho infantis ou coisa do gênero, só para esclarecer.  O problema é que existe uma pequena diferença quando se trata de diários e cadernos particulares — sim, eu sei que soa como se fosse a mesma coisa, mas há um fator diferenciador. O que os diferencia é o momento crucial da compra e a razão para estar se comprando. Quando se compra um diário, seu objetivo é única e puramente discorrer sobre a sua vida, sobre como você é fracassada romanticamente, sobre o carinha que você almeja platonicamente e como tudo à sua volta parece conspirar contra você e contra o seu romance inexistente. Já um caderno particular — de novo, eu sei que soa como se fosse a mesma coisa — está ali simplesmente para você derramar qualquer assunto possível, variando de textos água com açúcar até crônicas, poesias, parágrafos dissecando sua alma e suas ideias mais profundas, entre outros aspectos. E aí está a razão para ser tão confidencial: você não ia querer sua avó fazendo uma lobotomia nos seus pensamentos e sentimentos mais escondidos.

— Ok, ok. — ela ergue os braços em rendição. — Vim aqui para convidá-la para um passeio na cidade amanhã. E eu não trabalho com um não.

— Para onde iremos? — pergunto. Alguma chance de ser na loja onde ela comprou esses sapatos?

— Você verá.

Ela anuncia teatralmente antes de se retirar. Mas, no meio do caminho, como se houvesse mudado de ideia, ela se vira e declara:

— Escreva algo bonito sobre mim no seu diário.

Escrever sobre sua avó geralmente não é um material estilo best-seller, mas a ideia me faz sorrir. Porque, pela primeira vez em toda minha vida, eu realmente tenho essa possibilidade.

~ - ~

Algumas verdades sobre mim: Meu nome é Liviana Harper, e o meu sobrenome é provavelmente a única coisa normal que alguém poderia relacionar ao meu respeito. Todos me chamam de Live, ou o modelo curto e direto Liv, o que eu acho interessante porque me lembra de viver. Realmente viver. Em um mundo onde é difícil acertar e onde todos estão tentando fazer seus corações se encaixarem como uma luva, eu sou fã dos pequenos momentos. E das grandes oportunidades. Mas eis no que eu acredito: felicidade não é uma condição vitalícia, não é uma constante e não é uma incógnita que resolve todas as equações. Quem sabe? Você pode ser feliz no seu trabalho de meio período, vivendo em sua casa de cercas brancas com sua esposa loira bronzeada. Talvez seu colega de trabalho, com o mesmo programa de vida, ache que sua vida poderia ter tido um salto maior.  Talvez, daqui a 30 anos, você se canse dessa vida e se afogue na própria miséria. Tudo é uma questão de perspectivas e possibilidades. A verdade mais crua é que felicidade é um estado de espírito com loops maiores que montanhas russas. Você só precisa saber agarrar o momento em que sua vida está prestes a dar o giro de 360º. Então, com meus 17 anos e na última etapa da minha vida adolescente, eu fiquei bastante experiente em encontrar essas pequenas brechas que a vida é capaz de nos ofertar no quesito felicidade. Talvez eu esteja numa fase onde cometer erros é mais prazeroso do que pensar nos "e se". Então eu tenho dois piercings na orelha, um cabelo loiro com as pontas tingidas de turquesa e uma infinidade de reclamações paternas. Os corações quebrados do mundo continuam batendo, unhas quebradas continuam crescendo e a vida é muito curta para não arriscar. O futuro daqui pra frente é incerto. Talvez eu me forme em escrita criativa, alugue um apartamento e viva a vida afogada em palavras. Talvez eu me assente num emprego bem quisto e me torne uma médica que vá combater o câncer e fazer alguma diferença no mundo. Eu tenho um grande número de variáveis, mas o único ponto claro e extremamente distinto nessa escuridão de dúvidas pro amanhã é New York. Eu me vejo claramente passeando pelas lojas da quinta avenida, sendo iluminada pela Times Square e me reinventando pelo resto dos meus dias. É possível que me mudar para Leavenworth foi um desvio dos meus planos, mas eu não vou competir com a dor de perder a cidade dos meus sonhos. Leavenworth não é perda. Não é derrota. Leavenworth é oportunidade. Leavenworth é a chance de conhecer minha avó...

Eu rabisco a última palavra com uma força desnecessária, como se a pressão do grafite contra o papel pudesse sossegar minha mente e me fazer crer nessas palavras incentivadoras, fazendo o lápis quebrar em frustração ao meu descontrole emocional. Descontar minha raiva no papel não parece mais uma boa ideia, mas essa é a única forma que conheço de extravasar: derramando minhas angústias em palavras. Palavras são meu Santo Graal.

Eu respiro fundo, lançando-me entre as caixas recém-abertas. Não ouso desempacotar ainda. Sei que assim que o fizer tudo se tornará real. Não estou acostumada com a sensação esmagadora de ter todo o meu mundo despedaçado. Os dias dourados acabaram. Então aqui estou eu, uma fantasiadora cidadã, ainda convencida que não existe nada como o idealismo. E eu estou sonhando com a vida que eu tive. Eu estou sofrendo a febre da incredulidade. Eu afasto todos esses pensamentos para um lugar remoto do meu subconsciente, enterrando-os com um golpe certeiro e preciso. Eu não posso me permitir pensar nessas coisas. Não posso viver a vida no retrocesso. A vida só tem uma direção: pra frente. Talvez eu esteja sobrecarregando toda essa questão de mudança. Talvez, em algum universo alternativo, eu possa sobreviver ao campo.  

Então, repito pra mim mesma: Leavenworth é a chance de uma vida inteira. E assim eu empurro para o fundo da minha mente uma imagem em preto e branco do horizonte de Manhattan. 


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