Capítulo 6 - Take a break
"The best treatment is to take a break of everything"
(My So Has Got Depression)
Sabe aquele momento, aquele fatídico e marcante momento, onde você é assaltada pela fugaz ansiedade de limpar sua mente? Afrouxar as amarras que te prendem selada àquelas circunstâncias, quebrar e desbancar todos os pensamentos que explodem na sua cabeça como borrões rápidos e difíceis de captar? A sensação é tão rápida e urgente que torna-se muito difícil de você se aferrar a ela, para evitar se afogar no mar de preocupações que regem seu cotidiano, mas é algo nítido, cheio de contorno e forma, e você sabe que precisa alcançar aquilo e atravessar o muro, só para se deparar do outro lado, assegurada numa ilha de marasmo. É como se você flutuasse. O peso dos seus problemas parecem perder a densidade e tornam-se insignificantes em relação ao sustento dos seus ombros cansados. Você encontra uma brecha, um pequeno loop para simplesmente se deixar levar. Todo mundo já foi pego nesse buraco negro do vazio existencial. Todo mundo já quis se desprender do próprio corpo, embaçar a vista para as crises e filtrar as informações recebidas, para que a única perturbação do meio intrínseco que é a sua cabeça fosse o desapego. Desligar-se, literal e metaforicamente falando.
Eu estava no meio de uma dessas realizações cósmicas. É como se ali, de carona no carro de Anne, comprimida no espaço escasso do carro, todos os últimos acontecimentos me atingissem com um baque surdo. Reprovação, falência, mudança, adaptação, escola nova, saudades de casa. Cenas desconexas passeavam pela minha mente num flash ininterrupto, vozes aleatórias e acusatórias me atingindo com suas palavras rasantes e difusas. Eu me sentia tonta.
Quanto mais rápida é a subida, mais efetiva é a queda. Quanto mais rápida é a subida, mais efetiva é a queda. Quanto mais rápida é a subida, mais efetiva é a-
- O que foi? Você está verde. - Anne fala olhando de soslaio, enquanto verte o volante para estacionar na calçada de um edifício desgastado. - Péssimo dia?
- Péssima década. Onde aperta o botão de reset? - resmungo, apertando o indicador contra a testa enrugada. Estou totalmente cansada. O ensino médio consegue sugar toda a disposição que ainda resta na minha pobre alma deteriorada. Dramático, eu sei. Mas tente lidar com uma Madison, extremamente competitiva e disposta a explodir coisas para te incriminar e te fazer ser expulsa das aulas, aí você receberá uma boa dose da negatividade do universo. Quem sabe teremos a oportunidade de dividir o fardo de reter todo o azar do mundo no dedo mindinho.
- Tente morar com o anticristo. - Anne murmura com rouquidão.
- Ela sempre é assim? - rebato indignada.
- O que? Madison? Estou falando do Danny. Lá vem ele! - ela levanta o pescoço para observar o garotinho franzino e cheio de sardas saltitar seu caminho para o carro, voltando-se para mim em seguida: - Mas Madison também é um bom rascunho do satanás.
- Como você a aguenta? Ela mal me conhece e já declarou ódio gratuito à mim! - cruzo os braços, forçando um sorriso gélido ao encarar Danny bater a porta traseira pelo retrovisor. - Oi, Danny.
- Ela é complicada. Não consegue ser posta em segundo plano. - Anne passa a marcha e engata o carro. - Eu costumo ficar fora do seu mundo e ela me deixa em paz. Era mais fácil com a Ellie aqui. - eu franzo o cenho, então ela explica: - Nós somos melhores amigas, mas ela teve que se mudar no verão passado. Então tudo o que me resta é ser vítima das tramoias do Danny e lidar com os surtos da Madison. Greg aparece às vezes para me salvar de perder a cabeça.
O garoto permanece calado, encarando-nos pelo espelho, os olhos brilhando num significado mudo. Sua expressão me assusta, porque é aquele tipo indecifrável que te deixa inapta para adivinhar as possíveis reações interpretadas pelo menear das sobrancelhas e o curvar dos lábios.
- Liv te disse oi, Danny. - Anne fala pausadamente.
- Ohayou gozaimasu! - ele me sauda com um sorriso zombeteiro.
Eu olho pra Anne com uma pergunta exposta na cara e ela faz o favor de rir. Mas que ritual satânico saiu da boca desse menino?
- O que? - eu pergunto bobamente. - Você tá me xingando? Ohayo e essas coisas todas pra você também!
- Ele tá com mania de falar japonês agora. Acha que é fluente porque assiste esses desenhos dos olhinhos iguais. Ele só disse bom dia. - ela bate no volante com raiva. - Para com essas babaquices de otaku!
- Eu já disse que é ANIME! - Danny berra finalmente, cruzando os braços numa birra.
- Anime é só um nome chique pra chamar os DESENHOS JAPONENES! - Anne rebate.
- Bakayarou. - Danny lança um muxoxo.
Anne derrapa o carro ao pisar no freio, virando-se de forma predatória para Danny, que se encolhe com a visão endiabrada da irmã.
- Do que diabos você me chamou? - Anne questiona com uma ameaça velada no tom manso, mas Danny parece captar a mensagem subliminar de violência, porque limita-se a abaixar o rosto, deixando os cabelos cor-de-fogo cobrirem-lhe a face.
- Nada. Eu só disse "tanto faz". - ele defende-se, mas há uma insinuação de mentira na sua voz.
Nós seguimos o caminho com mais algumas implicações e frases em japonês, o que deixa Anne completamente irritada durante o trajeto. É como se Danny conseguisse extrair o pior dela.
- Já chega, Danny. Se você não vier acompanhado por legenda, eu sugiro que arrume outro dialeto para me importunar. - Anne reclama, contornando a pista para parar no acostamento. Ela puxa o freio de mão e aguarda garoto sair do carro para soltar um suspiro resignado. Danny abre a porta e pula para fora do veículo com entusiasmo, como se tivesse feito a proesa do dia. Então, ela encosta a testa contra a buzina momentaneamente, deixando os cachos cobrirem a irritação que tenta esconder.
Ficamos em silêncio por ínfimos minutos, apreciando a reflexão sobre a figura exótica de Danny. Eu não consigo evitar um sorriso ao lembrar de suas palavras complicadas e da satisfação em seu rosto. O momento parece ser estendido pela calidez da brisa que trespassa pela janela, acariciando-nos com seu contato, o que nos deixa cada vez mais imersas em pensamentos. Não há necessidade de comunicação, ambas sabemos e entendemos o fardo que é lidar com o garoto menor, e a falta de discursos traduzem o conforto da situação. Mas, como se jogassem um balde de água fria para nos despertar do nosso momento introspectivo, o rosto arteiro de Danny surge na minha janela, pendurando-se pelo vidro semi-aberto.
- BANZAAAAAAAAI! - ele grita, tirando-nos do nosso torpor, fazendo com que ambas pulassem dos seus respectivos assentos com um grito de alarde. Anne dá um berro apavorado, como se imaginasse diversos cenários tensos onde estaríamos à mercê de um ladrão, e eu cubro minha face para tentar conter o grito estrangulado que tenta escapar dos meus lábios. - Esqueci de dizer tchau! Tchau, Anne! Tchau, Liv!
Anne aperta o volante com os nós brancos e eu me controlo para não rir, mas é inevitável. Assim que nossos olhares se cruzam, o riso parece ganhar vida em nossas gargantas e, quando menos esperamos, logo estamos à beira de um ataque histérico.
- Ai, ai. Esse garoto não tem juízo. - Anne cessa a crise de riso e tenta engolfar o máximo de ar que consegue com uma tragada. Ela solta um suspiro longo, como se tentasse perder a vermelhidão característica, e junta seus indicadores com os polegares. Ela inspira forte. - Om Mani Padme Hum. Om Mani Padme Hum. Om...
- O que você está fazendo? - interrompo sua linha de raciocínio, vendo-a abrir o olho direito para me inspecionar.
- Recitando mantras budistas para recobrar a paciência. - ela responde, fechando o olho novamente para me ignorar em perfeito conforto. - Om Mani Padme Hum. Om Mani Padme H...
- Eu também quero! - salto do banco para cruzar minhas pernas numa desconfortável posição de lótus, imitando seus gestos, enquanto fecho os olhos e candencio minha respiração. - Mani Pade Om o quê?
Anne se empertiga no banco do motorista, me encarando inquieta.
- Por favor, pare de assassinar os mantras. Vamos, eu te ajudo. - ela copia minha posição e, em seguida, vira o corpo na minha direção. - Existe mantra para diferentes situações. O que o seu espírito precisa?
- Esvaziar a mente. Tem algum pra esvaziar a mente? - questiono, sem notar o brilho sugestivo que passeia nos seus olhos azuis.
- É claro! - seus lábios curvam-se num sorriso milaborante e ela os morde levemente, como se estivesse matutando sobre algo. Provavelmente está consultando seu banco de dados budista. - Ok, repita comigo. - ela endireita a posição e eu a imito. Anne faz um gesto para indicar que eu feche os olhos, fechando o semblante numa expressão concentrada. - Sat Patim Dehi Parameshwara.
- Sat Patins... O que? - espio por um olho com a cara de confusão. Ela ri pelo nariz e recobra a seriedade.
- Devargar. Sat. Patim. Dehi. Parameshwara. - ela fala pausadamente e eu repito, enrolando a língua na última palavra. - Sat Patim Dehi Parameshwara!
- Sat Patim Dehi Parameshwara! - eu entoo novamente, com mais convicção dessa vez. Anne segura um riso. - Me sinto até mais vazia.
Anne não se controla e cai na gargalhada. Eu a ignoro e volto a repetir o mantra.
- Mas o que diabos eu estou dizendo? - pergunto com curiosidade.
Anne pausa o riso para respirar com fôlegos sôfregos, tentando recobrar a constância da sua respiração. Ela enxuga uma lágrima traíra, que desce pela face pálida num trajeto moroso, e tosse audivelmente para reconquistar a seriedade no seu tom. Só quando se sente recomposta é que ela diz:
- Sat Patim Dehi Parameshwara. - ela cita, antes de explicar o significado. Então completa: - Ou, traduzindo: "Por favor, conceda-me um companheiro de verdade que encarne os perfeitos atributos masculinos".
Eu deixo meu queixo cair em choque, mas minha reação de incredulidade é logo substituída por uma risada frenética.
- Não acredito, Anne! - solto uma gargalhada alta, que ecoa pelo espaço pequeno do carro, e Anne me acompanha sem um pingo de culpa na face.
- Valeu a pena! - ela confessa, pousando a mão na barriga para se controlar.
- Mas eu falei sério quando disse que precisava esvaziar a mente.
- Não se preocupe, a Fogueira é hoje à noite. Teremos oportunidade o suficiente para esquecer os problemas e nos divertirmos. - ela responde, dando partida no carro. - Só precisaremos sobreviver ao resto do dia.
《¤》
Tudo tem uma certa fragilidade. Ouvi essa frase em certo lugar, e ela me acompanhou através dos anos como uma linha constante e imutável. A história é frágil - mesmo ela possui nuances de ambiguidade e abre espaços para subjetivar circunstâncias. Vários profissionais passam seus dias vendo suas teses serem refutadas, assistindo suas visões de mundo sendo metamorfoseadas em novos conceitos, que são igualmente frágeis e suscetíveis a análises futuras, tentando enxergar o cenário maior. O cotidiano é frágil, a individualidade é frágil, as reações de diversas pessoas sobre diversos cenários são, irrevogavelmente, pontos de vista frágeis. Há sempre a possibilidade de algo maior romper um paradigma. Há sempre a chance de alguém, um indivíduo qualquer em uma situação qualquer, chegar em você e trincar toda a sua perspectiva de vida. Basta apenas um toque, um sopro de uma insinuação, mas se há nesse ato a intensidade adequada, existe a vertente de que aquilo pode desestruturar seus alicerces. Mesmo a realidade do seu dia-a-dia possui uma base frágil e facilmente corrompível. Tudo tem a capacidade de ruir, mas a possibilidade de ser inteiro. Essa frase me perseguiu pelo resto do dia, alimentando minha paranoia desenfreada a respeito de tudo o que estava acontecendo. Por que eu continuava me empurrando para baixo, lamentando o passado, me prendendo a uma ideia de algo que jamais seria o mesmo? Minha realidade havia se trincado e se quebrado ao meu redor, com a delicadeza e sutileza do inesperado, mas a base já havia se reestruturado, embora a fragilidade do momento ainda assombre meus dias. Eu poderia continuar seguindo minha rotina, com a ânsia pelo próximo desastre, premeditando o fatídico dia em que tudo se dissolveria a cacos e amaldiçoando os desvios que me trouxeram até aquele momento, ou poderia optar por seguir esse novo caminho, andando a passos calmos, engolindo os tropeços e aguardando o instante em que minha vida entraria numa encruzilhada com meus sonhos e desejos. Em ambas as opções, o tempo não cessa à minha espera, ele apenas escorre languidamente seu trajeto pelas linhas da vida. Em ambas as opções, o gosto amargo da derrota me atinge. Mas mesmo a minha teimosia é frágil - eu não posso ficar me segurando ao nada para sempre. Então, me digam, por que não? Por que não dar uma chance ao desconhecido? Por que não tomar uma folga dos meus pensamentos saudosos e simplesmente relaxar? Leaveneworth é o agora, e o agora é o que está acontecendo.
- Me diga o porquê de estarmos fazendo isso exatamente? - Anne resmunga, parando para fazer peso enquanto eu a empurro pelo caminho estreito. Seus cabelos vermelhos refluem em ondas pelas costas, cobrindo parcialmente as costas do vestido que usa a contragosto. Seus braços estão cruzados contra o peito, enfatizando o desgosto dela por eu estar obrigando-a a me acompanhar.
- Você não disse que a Fogueira nos daria oportunidade para aproveitarmos o tempo? - eu reviro os olhos, espalmando minhas mãos contra sua omoplata para insistir seu corpo para frente.
- Mas não é você que odeia tudo isso aqui? - ela ri, ainda fazendo peso. Creio que parte da sua implicância se deva mais pelo desejo de arrancar uma confissão minha do que por se recusar a ir. Eu solto seu corpo, fazendo-a pender para trás. Ela se desequilibra momentaneamente e solta uma exclamação. Eu a viro de frente para mim, segurando seus ombros sem paciência.
- Tudo bem. Eu quero ir. A ideia não me parece tão desagradável assim. - solto um suspiro resignado. - Não vai ter violão e música country, né?
- Isso eu não posso prometer. - Anne ri, ficando ao meu lado para roubar meu braço. - Mas definitivamente será agradável.
Nós andamos juntas pelo caminho turvo e ziguezagueado, sincronizando os passos para agilizar a caminhada. Durante o percurso, Anne me conta sobre o local onde a Fogueira é realizada anualmente, um pequeno bosque à leste da escola, num terreno amplo onde há algumas copas de árvores e um lago. Aparentemente, todo ano a polícia local - yay, família! - faz vista grossa para impedir que acidentes aconteçam, mas, desde que não haja nenhuma calamidade, a festa se prorroga até o amanhecer sem nenhuma intervenção drástica.
O bosque é denso e escuro, há um silêncio sepulcral que predomina o ambiente e se estende ao nosso redor, energizado pelos sons ocasionais de animais silvestres. A mata parece nos engolir para dentro, fechando o caminho na nossa retaguarda. Anne está tão próxima que sinto sua respiração entrecortada contra meu ombro e o palpitar incessante do seu peito, o que me deixa cheia de nervos. É assim que acontece nos filmes, penso, é nessa hora que o cara do machado surge por entre as árvores e corta a garota indefesa ao meio. Há um farfalhar de folhas na nossa lateral, o que me obriga a virar na direção do barulho, alarmada pela imagem do assassino frenético que assalta minha mente, mas um vulto rápido sai pelos arbustos e me silencia com um grito eufórico:
- FESTA DA FOGUEEEEEEEIRA! - um garoto encorpado saltita pelo solo erodido, empunhando um engradado de cerveja erguido sobre a cabeça. Atrás dele, uma fileira de rapazes se junta a sua celebração num coro de testosterona, correndo pelo bosque até o local onde uma luz longíqua e bruxuleante se faz notar.
- Meu Deus, eu pensei que iria protagonizar uma morte de filme de terror. - eu coloco a mão no meu peito, como num pedido mudo para cessar o retumbar pulsante do meu coração, que insiste em bater forte contra as minhas costelas. - Meu coração está dançando macarena no meu peito.
- Quanto a morte, eu não sei. Mas o time de futebol bêbado é, sem dúvidas, um terror. - Anne sorri para o escuro e me puxa até a luz.
Nossas vozes são abafadas pelo barulho crescente da multidão de estudantes, vozes desconexas que se mesclam e tentam sobressair umas às outras, ocasionando uma discordância de ruídos. O espaço escasso está abarrotado de pessoas, algumas unidas em rodas, outras interagindo entre si sem as restrições dos rótulos. A maioria possui copos de plástico firmes nas mãos, o conteúdo vazio ou pela metade, à caminho de pegar mais alguma dose no grande barril de metal que está localizado ao lado dos rapazes do time do futebol. A grande fogueira está montada na beira do lago, crepitando duramente contra o frio da noite, aquecendo os corpos dormentes pelo álcool. Alguns sem noção ainda jogam algumas garrafas contra o fogaréu vivo, obrigando-o a acender em resposta com energia. Há música tocando em algum lugar, um ritmo calmo e descontraído que é esquecido pelas vozes eufóricas e pelo dedilhar de um violão qualquer, que entoa algumas músicas country como hinos da noite.
- Country. - faço uma careta pra Anne, que ri com um dar de ombros. - Vamos pegar uma bebida! Hoje eu quero esquecer tudo e me divertir.
Anne me puxa até os barris, pegando dois copos para depositar o líquido âmbar, empurrando um em minha direção. Eu viro o copo com uma tragada, engolindo a cerveja gelada, que desce esfriando a minha garganta. Solto um gritinho empolgado, totalmente energizada pelo ato. Estar ali, descontraída e aberta à diversão, lembra-me os meus dias desocupados, onde a minha única preocupação era me deixar levar pelo momento. Eu puxo a torneira e derramo mais um pouco no copo, aproveitando para encher a taça que Anne havia terminado.
- Calma aí, garotas. Tem que sobrar bebida para o resto. - ouço uma voz nos alertar com uma falsa autoridade, o que faz Anne se embolar com o copo momentaneamente, quase derramando tudo desastrosamente.
Nós viramos em sincronia para encarar Greg, que inclina o corpo na nossa direção, tornando evidente o brilho de deboche que passeia pelas íris verdes dos seus olhos. Sua expressão tem um ar inebriado, como se ele estivesse perdido em pensamentos, e as mechas loiras, que caem em cascata acima dos seus olhos, tornam seu olhar vago. Ele parece estar meio ludibriado pelo álcool, o que me obriga a erguer as sobrancelhas em ironia.
- Se acabar, podemos espremer o álcool pra fora de você. - Anne resmunga ao seu lado, recebendo um franzir confuso do Greg, que unta as sobrancelhas como se fizesse esforço para entender a raiva da amiga, mas se perdesse numa bruma de álcool. Ele anda meio grogue até seu lado, espalmando a mão destra na sua cara, o que a fez dar um tapa para afastá-lo. - Tire essa mão fedorenta da minha cara.
- Ah, Lise, fique fria. Eu estou bem. - ele coloca os braços ao redor do seu ombro, puxando-a para si, o que desarma a expressão enfurecida dela.
Eu me afasto discretamento dos dois, pegando meu copo para preencher com mais iguarias, enquanto passeio meu olhar pelas rodas fechadas, pensando nas possibilidades em aberto. Tomo alguns goles, pesando o que fazer, mas meus pés tomam seu próprio rumo ao se encaminhar para a roda mais afastada, onde algumas canções são entoadas energicamente. Alguns casais dançam no compasso da música, sacudindo os braços e saltitando em sincronia, enquanto um rapaz dedilha a melodia no violão velho, pendendo o instrumento na coxa de forma contemplativa. Eu o observo por alguns instantes, focada na intensidade em que ele passa os dedos pelas cordas, quase como uma reverência, enquanto tomo mais um gole de coragem líquida. Assim que o álcool ferve no meu sangue, caminho e sento no tronco ao seu lado, observando a forma rápida que seus dedos dançam pelo violão, provocando a música agitada que contagia as pessoas ao seu redor. Assim que ele finaliza a canção, seus olhos abrem languidamente e me examinam com preguiça, pousando as orbes escuras no meu rosto impassível. Eu dou um sorriso enviesado apreciativo e ele retribui o gesto com um crispar suave dos lábios.
- Você toca bem. E eu odeio country, então esse é um elogio forte. - eu pisco meus cílios espessos pelo rímel e tomo outro gole, atenta aos movimentos do seu corpo.
- Você acha? Obrigado. - seu sorriso se estende num flerte mudo e eu me obrigo a sorrir de volta. Que mal haveria naquele gesto? - Você não gosta de country?
Ele tem um tom ofendido, como se fosse um absurdo alguém não se limitar a ouvir seu estilo de música favorito, o que me faz revirar os olhos mentalmente. Mas ele é bonito, o cabelo cor de chocolate e os olhos da mesma coloração, o nariz um pouco grande, mas ainda assim afilado, e o maxilar proeminente são fortes características que chamam minha atenção, mesmo que se contorçam em incredulidade quando discordo dos seus gostos musicais.
- Não curto muito. - admito, ainda presa nos seus olhos enigmáticos.
- Dance comigo. - ele pede, mas eu reviro o nariz com desgosto.
- Quem sabe outra hora. - dou um sorriso misterioso e me ergo, determinada a encher outro copo, dando as costas para o seu grupo.
Eu passo o resto da noite como uma nômade, vagando de grupo em grupo em busca de álcool e uma aventura. Ainda tenho a oportunidade de jogar ping pong apostando doses - no qual perco vergonhosamente algumas partidas -, de dançar com estranhos - muito embora se resuma a pisar numa quantidade excessiva de pés - e aceitar desafios diversos, como tentar disputar algumas competições coletivas, onde tenho que passar uma maçã por várias partes do meu corpo sem derrubar, até me cansar da brincadeira, que não dura o bastante por causa da minha falta de habilidade em manter a fruta na altura dos seios.
Logo depois minha cruzada por diversão, procuro Anne com os olhos rápidos e a encontro aos risos com Greg, que está com as mãos vazias, mas minha atenção se dissipa ao encontrar um pequeno grupo amontoado soltando exclamações aleatórias. Alguns rapazes do time golpeiam o ar com os punhos em haste, gritando animadamente jargões de encorajamento para algo dentro da roda recém-formada. Eu acotovelo meu caminho até o centro do espaço, comprimida contra os corpos fortes e atléticos que exalam uma miscelânea viril de álcool e suor, o que me deixa ligeiramente enojada, obrigando-me a tapar o nariz em pânico.
Deixe-me apresentá-los a uma invenção, contemporânea e inovadora, para acabar com seus problemas com odores: Desodorante, pessoal! Desodorante!
Assim que consigo uma brecha para visualizar, minha boca cai escancarada. Madison está de cabeça para baixo no engradado, erguida por dois jogadores enquanto suga a bomba de cerveja com avidez, a blusa folgada caindo para dar um vislumbre do seu sutiã, o que a obriga a erguer-se novamente para aprumar o corpo. Ela solta um grito de êxtase e pula balançando a cabeça, tentando afastar a tontura para longe, erguendo os dois punhos no ar em comemoração.
- Mas foi muito rápido. - eu reclamo, o que se faz ouvir pela multidão de rapazes ao meu lado, que cochicham entre si.
- A novata aqui quer tentar! - um me empurra para frente, quase me fazendo cair, mas eu me equilibro e me locomovo até o barril, encarando-o com dúvida.
Madison me dá um sorriso afetado pelo álcool, totalmente alheia a minha presença, e se afasta para dar espaço.
- Boa sorte. - ela me examina de cima a baixo. - Meninos, ela disse que não precisa de ajuda para subir!
E, soltando esse veneno, ela se retira com uma garrafa nas mãos. Os rapazes dão alguns soquinhos amistosos e me estimulam a subir, o que me anima. Madison não me intimida com o seu descaso. Assim que me posiciono de frente para o depósito, eu pressiono ambas as mãos nas duas extremidades, firmando meu aperto para não cair. Eu faço pressão, empurrando meu peso contra a estrutura sólida, jogando todo o meu corpo no gesto. Ergo uma perna a princípio, para me adaptar à posição, e levanto a outra com cuidado para não despencar da bananeira desleixada. Tento manter o equilíbrio enquanto caço a bombinha para chupar o líquido. A primeira tragada me deixa tonta, devido ao esforço de me manter de cabeça pra baixo, mas engulo uma boa quantidade antes de me soltar, alimentada pelas palmas eufóricas. Pulo para o chão, levemente corada e um pouco atordoada, com os pensamentos nublados pela ingestão do álcool.
- Isso foi irado! - ouço alguém falar na minha retaguarda, mas tudo o que vejo são borrões. Está tudo girando.
Por que Anne está com raiva de mim? Meus passos parecem muito demorados, como se o tempo desacelerasse ao meu comando, e eu solto algumas risadas histéricas enquanto caminho lentamente até Anne, que me encara com a cara irritada. Ela me manda esperar no meu canto, mas há duas dela. Por que há duas de Anne apontando para mim?
- Fique aqui, vou chamar alguém. - as duas Annes falam de forma autoritária.
Mas eu não a obedeço. Por que eu obedeceria duas Annes? Uma já é mandona o suficiente. Contradizendo seus comandos, eu ando pela festa, tropeçando no terreno desgastado. Por que há tantas pedras no meu caminho? Eu visualizo a roda de country, com as pessoas dançando e se entretendo com álcool. Eu deveria dançar! Country é tão bom! Por que eu nunca percebi isso antes?
Eu caminho até o grupo de pessoas, tentando imitar a coreografia improvisada. Meus braços se agitam no ar e eu dou alguns pulinhos, batendo palmas e requebrando a cintura. Sinto uma mão me puxar pela cintura, fazendo-me bater contra algo sólido, e, assim que me viro, deparo-me com os olhos amendoados do garoto do violão. Suas íris brilham de forma maliciosa e seu sorriso se estende assim que seu tronco se move de forma provocante contra o meu, que gira em resposta. Nós nos movemos juntos ao som da música, guiando as cinturas em sincronias, um mexendo com o outro. Seu corpo tem uma necessidade esfomeada de atrito pelo meu, o que explica o contato exagerado em cada movimento. Há um toque abusivo em seus passos, passando os dedos ágeis pelo meu pescoço, minha vértebra, meu quadril, minha bunda. Seu agarre é rígido, como se ele fizesse muito esforço para me prender na névoa que é a sua presença. Um pouco cansado daquela dança predatória, ele me puxa na direção de um amontoado de engradados, afastado das demais pessoas, e inclina-se mais uma vez em minha direção. É nessa hora que eu percebo que há algo de errado, porque meu cérebro capta a informação de forma muito lenta, como se houvesse uma névoa difusa difícil de atravessar. Seus lábios ainda estão curvados num sorriso e ele os abre para abocanhar meus lábios numa captura voraz, prendendo-me a mercê da sua língua exploradora. Eu me remexo desconfortável, os membros pesados dificilmente captando o alarme que grita na minha mente. O que eu estou fazendo? Eu pisco, ligeiramente acordada de um transe, tentando com muito afinco trespassar o nevoeiro do álcool no meu organismo. Eu tento me afastar dele, mas seu aperto é ferrenho e ele me pressiona contra a árvore com fome, impossibilitando que meus braços recém-despertos consigam afastá-lo firmemente.
- Me solte. - eu murmuro contra seus lábios, empurrando seu peito com muito esforço. Ele se joga novamente contra meus lábios, calando meus protestos.
Eu penso em gritar, mas ele abafaria meus sons. Minha mente acorda com a adrenalina, deixando tudo mais nítido, dando forma e contorno para a situação. Com um reflexo rápido, tateio em busca de apoio, qualquer coisa, até que meus dedos se firmam numa garrafa vazia do engradado. Eu puxo o objeto com força, batendo-o contra a cabeça do sujeito, fazendo-a se espatifar na mesma proporção que ele solta um choro abafado.
- Liv! - alguém me chama, e eu solto um grito para dizer que estou aqui. Gonzalez e James correm na minha direção, revelados entre os arbustos espaçados, e eu me lanço contra eles com desespero, deixando James surpreso pelo meu ataque.
- Você está bem? - ele solta um pequeno "wow" quando me acolhe no seu abraço, envolvendo minha cintura com seus braços fortes e familiares. Minha cabeça se inclina levemente para encarar o negrume dos seus olhos, sendo derrubada pela intensidade da preocupação em suas feições. Seu maxilar está rígido, como se ele fizesse esforço para se controlar, e seus lábios descrevem uma linha fina e ameaçadora. Seus cabelos molhados estão despenteados, e há algumas gotas de suor descendo pelas suas costeletas, deixando-me com uma sensação de que ele teve que correr muito à minha procura. Eu solto um fôlego preso contra seu peito, inalando seu cheiro em busca de alguma indicação de que aquilo é real. Ele cheira a hortelã, pasta de dente e conforto. Eu acordo do meu transe e noto que ele me dirigiu uma pergunta, então me limito a acenar, sem ter certeza de que sou capaz de verbalizar alguma frase coerente no momento.
- Que pasa, ninã? - Gonzalez fala com um tom sombrio, subjugando o garoto com os braços pra trás, forçando seu aperto, o que faz o menino soltar um rugido de dor e se debater contra o agarre do policial. - Vamos pra delegacia. Ah, Marien não vai ficar nada feliz. Pero nada miesmo.
Eu descobri minha fragilidade naquela noite, quando a inocência da liberdade foi corrompida pela maldade do mundo.
《¤》
A delegacia está tão fria quanto meu interior. A única chama que lambe minhas veias é devido aos resquícios de álcool no meu organismo, que deixa-me hipersensível ao mundo ao meu redor. Os xingamentos em espanhol de Gonzalez, meu próprio batucar contra a bancada do carro, o choro copioso do garoto preso. É um estardalhaço de ruídos. James está ao meu lado, segurando a minha mão com firmeza. Pergunto-me se é para me confortar ou para evitar que seu punho atinja o maxilar do garoto preso no banco traseiro, que me destina um olhar destilando ódio. Assim que descemos do veículo, encontramos Marien parada na entrada, os braços cruzados contra os seios e a expressão enfezada. Ela encaminha-se na nossa direção com a posição ereta e o peito estufado, e eu preciso fazer esforço para encará-la dentro dos olhos claros e límpidos. Sua expressão é rígida e exigente. Ela não quer que eu abaixe a guarda. Seus passos candeciados só cessam quando ela para ao lado de Gonzalez, próximo ao rapaz cujo nome desconheço. Preciso pressionar minhas unhas contra minha pele para evitar que a raiva caminhe como um combustível pelo meu interior, o que torna bastante difícil de respirar. James parece perceber que meu corpo está tremendo, porque ele deposita sua mão contra meus ombros. Seu toque é como um bálsamo, lavando os problemas para longe e garantindo a constância das minhas emoções.
- E então? Foi esse pivete metido a compositor? - Marien espreme os olhos, daquele mesmo modo que alguém faz quando quer extrair os desejos mais profanos de alguém. Então, como se estalasse uma corda estirada rigidamente, ela estapeia a cara do menino, que grita em ultraje. - Gonzalez, leve ele pra cela. Já recebi algumas denúncias que batem com a descrição do sujeito. Aparentemente, ele não frequenta a escola. Algumas cidades vizinhas tiveram perturbações por causa dele.
- Vamos lá, mi amigo. - Gonzalez puxa ele por um ângulo estranho, sem evitar a brusquidão. - Irei colocá-lo numa cela especial com um carinha transferido. Ele adora rapazes como você.
Os dois retiram-se pelo corredor estreito, deixando-nos a sós. Marien balança a cabeça e me enlaça pela cintura, puxando-me até o escritório. Ela me pede o relato completo da noite e eu não omito nenhuma parte, deixando tudo em panos limpos. Seu sorriso se estende assim que escuta o estrago que eu fiz na cabeça do sujeito:
- Uma garrafada? Essa é a minha garota! Na próxima, tente um chute nas bolas a ponto de despirocá-lo! - ela beija minha testa num tom dócil, como se não soubesse abordar direito a situação. Eu apenas dou de ombros, cansada pela noite.
Ela me dá alguns avisos de que precisa resolver uma papelada antes de ir para casa, mas que ainda teremos uma conversa séria, e eu apenas aceno com a cabeça, cubrindo-me com uma manta que ela me forneceu. James está do outro lado do recinto, sentado em sua mesa, quase imerso numa quantidade abusiva de casos, mas seus olhos não desprendem dos meus por um momento sequer. Há uma força avassaladora que nos conecta, através daquele magnetismo proporcionado pelas suas íris cor-de-ébano, impelindo-me em sua direção. Seu rosto tem uma expressão vaga e quase apreciativa, com um sorriso dançando pelos lábios finos e úmidos. Sua jaqueta está jogada contra os papéis, mais uma coisa para agravar a bagunça que é sua vida, e há algo difícil de captar no brilho dos seus olhos. James Carter apoia os cotovelos contra a mesa e me encara intensamente do outro lado da sala, segurando o queixo com as mãos de forma reflexiva.
- Então você bebeu diretamente do barril? - ele pergunta e eu franzo o cenho. Mas entendo o que ele quer fazer. Ele quer me distrair dos meus próprios pensamentos e eu aceito o gesto. Não quero parar para pensar no que poderia ter acontecido sob diferentes circunstâncias. - Estou impressionado, bonita. Não sabia que tinha essa rebeldia escondida em algum lugar. Minto, eu sabia. Ainda tenho marcas para provar.
Ele pisca na minha direção e eu sinto meu rosto esquentar.
- Digamos que eu fui desafiada. - torço o nariz de forma altiva.
- Você sempre encara seus desafios tão a sério? - ele me encara com mais afinco, como se exigisse uma resposta que pudesse saciar suas ideias absurdas, o que me provoca um sorriso lateral.
- Quando se trata de desafios, eu sou irredutível.
- Bom saber. Tomarei notas para eventos futuros. - ele dá o seu famoso sorriso enviesado e pisca novamente para mim.
- Senhor Carter, você planeja algum desafio sórdido contra mim? Sinto desapontar, mas não aposto partes do meu corpo. - eu retruco, retirando a manta que cobre meus ombros.
- Senhorita Harper, você tem uma mente muito profana. - ele apoia a mão no peito com uma expressão ultrajada e eu solto uma risada pelo nariz.
- Sabe, você não é tão ruim assim. - eu sussurro, mais para mim mesma do que para qualquer outra pessoa.
- O que? Eu sou ótimo. - James finge descrença.
- Ah, e lá está ele de novo. - eu rolo os olhos.
James pega uma bolinha de papel amassada e arremessa contra meu rosto, mas eu desvio prontamente, o que acaba afetando Gonzalez, que cruza a soleira da porta bem a tempo de ser atingido.
- Dios mio, Carter. - Gonzalez reclama. - O que eu falei sobre ser seu alvo humano? Não. Nunca. Jamais. - ele gesticula os braços negativamente. - Pratique com objetos inanimados.
- Você me disse a mesma coisa quando estávamos passando pela puberdade. - James responde, jogando outra bola contra a testa do parceiro, o que faz todos nós cairmos na gargalhada.
- Venha aqui, princesa. - Gonzalez me chama com um aceno, indicando um espaço afastado do escritório, isento de documentos e pastas. Eu sigo no seu encalço em silêncio, sem saber do que se trata.
- Você vai mostrar para ela nosso canto sagrado? - James comenta com diversão. - Desculpe, bonita, mas uma vez que você sabe o segredo, precisa se provar digna.
- O que? Eu não quero entrar no seu covil de perversão! - eu paro de frente a uma porta disfarçada, encarando os dois com curiosidade.
- Cala-te, princesa. Apenas veja. - Gonzalez aponta com a cabeça, indicando que eu abra. Olho de relance para James, mas ele apenas coloca as mãos nos bolsos da calça e me lança um dar de ombros indiferente.
Eu suspiro profundamente antes de girar o trinco e entrar no âmbito, esperando achar todo tipo de depravação. Nunca dá para saber o que se esperar de James Carter. Mas, assim que entro, minhas narinas são atingidas por um cheiro almiscarado de perfume masculino, acordando-me para visualizar o quarto nitidamente. Não há nada de extraordinário no ambiente. No máximo, parece apenas uma sala de descanso. Há algumas cadeiras de massagem espalhadas, todas apontando para a enorme tevê de plasma que ocupa o centro do cômodo, com alguns dvd's espalhados pela pequena estante de mogno - não ouso inspecionar os conteúdos da capa com intuito de preservar minha inocência. No canto do espaço, há uma pequena cesta de basquete e um tabuleiro de dardos, com algumas setas espalhadas nos alvos.
- O que tem nisso tudo? - pergunto sem entender.
- O que tem nisso tudo? O que tem nisso tudo? - Gonzalez se empolga, fazendo James rir. - Vou te dizer, princesa. O que tem de especial nisso tudo é a possibilidade de que, após um dia longo e estressante de trabalho, nós podemos simplesmente nos refugiar nesse quartinho para receber uma massagem dessas cadeiras enquanto vemos um filme em alta resolução.
Eu apenas ergo as sobrancelhas sem entender. James ri mais uma vez.
- Vocês não tem isso em casa?
- Ah, bonita, o que meu amigo espanhol está falhamente querendo dizer é que, mesmo se tivermos um dia duro, teremos sempre esse santuário de paz a nossa espera. - ele dá uns tapinhas nos ombros do amigo. - E é um passo enorme estarmos dividindo-o com você. Você está com uma cara de quem precisa esquecer as coisas.
- Sim, vamos. Ligue-me essa cadeira de massagem no máximo. - eu me jogo contra uma qualquer, afundando contra a poltrona.
- Calminha aí. Você precisa ser digna. - James relembra.
- Ora, por favor, vocês vão me fazer erguer um martelo? - eu rolo os olhos, mas James apenas balança a cabeça e aponta para o quadro de dados.
- Eu vou ter que acertar aquilo? Está bem. Se eu acertar a cabeça de alguém a culpa é unicamente sua. - reclamo, me encaminhando para pegar as flechas pontiagudas fincadas no quadro.
- Vamos nos manter aqui, por via das dúvidas. - Gonzalez aponta para trás com uma expressão de pavor. - Bueno, estamos aguardando.
Eu encaro o quadro circular, medindo minhas possibilidades.
- Não me apressem. - sibilo.
Eu pego o punhado nas minhas mãos, testando um contra meu indicador e meu polegar, inclinando o lance para visualizar melhor. Fecho um dos olhos para ver se consigo ter uma noção mais ampla e, sem preâmbulos, lanço o primeiro dado contra o tabuleiro. A flecha trespassa o ar e atinge a parede sólida, a escassos milímetros do alvo, caindo morosamente contra o chão polido. Eu solto um palavrão, enquanto James e Gonzalez urram em vitória.
- Quer que eu te ensine? - James ameaça se aproximar com o sorriso malicioso nos lábios, mas eu lanço um dardo contra ele, fazendo-o desviar com o pavor descrito nos olhos escuros.
- Não se aproxime de mim, sr. Libido! - eu grito, voltando-me para o quadro para me concentrar.
Eu meço outra flecha contra os dedos finos, tentando equilibrá-la num ponto que tenha um ângulo adequado. Faço o mesmo esquema outra vez, antes de tentar lançar uma última seta com a sensação de desistência. A última, a esperança da poltrona massagista, corta o ar vertiginosamente, atingindo os círculos próximos do centro com certa firmeza. Eu absorvo o ato com a cara embasbacada, mas me recupero para soltar um grito de triunfo, que mescla-se com as lamúrias dos rapazes.
- E é assim que se faz! - eu curvo meu tronco numa reverência classuda, que faz ambos rirem em deboche.
- Como é que dizem mesmo? La tercera es la vencida. - Gonzalez ri, fazendo pouco caso.
- Zombem o quanto quiserem, mas eu sou digna dessa confortável poltrona. - eu me jogo na cadeira sem me ater a pormenores, mas, assim que pouso em conforto contra a estrutura acolchoada, gritos confusos ressoam do lado de fora.
Nós três nos entreolhamos, ruminando as situações que poderiam ocasionar o tumulto, mas não damos vazão às nossas suspeitas. Gonzalez lidera o caminho até lá fora, enveredando pelos corredores em busca da algazarra que se desenrola no exterior do prédio, e James e eu seguimos no seu encalço. A recepção da delegacia encontra-se vazia; mesmo o porteiro está incluso no que quer que esteja rolando do outro lado das portas. Nós atravessamos a soleira e paramos juntos, ombro com ombro, enquanto encaramos uma multidão dispersa fazendo platéia para um trio de pessoas no coração da confusão. O recepcionista do turno noturno está tentando apaziguar a situação, mexendo os braços de forma conciliadora, mas a pessoa a sua frente continua gritando disparates ao relento. Papai está ao seu lado, tentando acalmar o sujeito da mesma forma que está se controlando para não rir, mas, assim que me vê, ele larga o controle de tudo e se direciona para mim, vindo me atacar com um abraço preocupado.
- Eu estou bem. - eu murmuro afundada no seu peito. - Você sabe que eu sempre fico bem. O que está acontecendo?
- Ele enlouqueceu. - papai ri abafadamente contra meus cabelos loiros.
James trava ao meu lado, endurecendo a postura.
- Ah, tio. - ele solta um suspiro cansado, passando as mãos pela cara. - De novo não.
Gonzalez ri alto à minha esquerda, totalmente concentrado com o desenrolar da cena. Eu pulo ao lado do meu pai, para averiguar do que se trata, e meus olhos se arregalam com a constatação da figura bêbada de Harold empunhando um violão velho, lançando xingamentos contra a fachada do edifício.
- Marien, Marien, apareça! - ele fala de forma grogue, tropeçando nas palavras da mesma forma que se embola com os próprios pés. - Marien, meu coração por ti clama!
- Por favor, Harold, volte para casa. Você está péssimo. - o porteiro tenta colocar algum juízo na cabeça do homem bêbado, mas Harold lança o indicador contra os lábios do outro homem para silenciá-lo.
- Marien, por que você faz isso comigo? - ele grita a plenos pulmões, jogando o violão para cima numa espécie de manifestação inconformada.
James se aproxima lentamente, a expressão mortalmente séria.
- Tio, já chega. Você sabe que isso só piorará sua situação, como nas últimas três vezes. - James adverte com um tom plano. Harold cambaleia em sua direção, apontando o dedo em haste contra o peito do sobrinho.
- Saia da minha frente. Eu sou um homem com uma motivação. E um homem motivado nunca desiste do que quer. - Harold exclama, igualmente sério para um bêbado.
- Mas que cabaré é esse na minha delegacia? - Marien exclama atrás de nós, fazendo-nos saltar com a surpresa. Papai ainda se espreme ao meu lado para evitar que ela veja algo, mas ela nos empurra com raiva para abrir passagem. - Saiam da minha frente. Posso saber o que está acontecendo?
Seus olhos passeiam pela roda de pessoas com exigência, demandando uma resposta coerente, mas eles cessam a busca assim que pousam no contorno de Harold, que se ilumina em sua direção. Seu rosto exibe uma máscara de choque que é logo substituída pela consternação pela palhaçada que é tudo aquilo.
- Harold, o que pensa que está fazendo? - ela questiona acidamente e adiciona com raiva: - De novo!
- Eu vim... - ele se embaralha nas palavras, como finalmente se desse conta do absurdo que estava para cometer e perdesse a coragem, mas seus olhos se erguem com um brilho único ao responder: - Conquistar sua mão.
- A única coisa que você vai conquistar é uma prisão, caso não saia daqui o mais rápido possível! - Marien debocha, mas silencia a voz como se quisesse ver até onde aquilo ia dar.
James volta para ocupar a posição de antes, entretido pelo aspecto cômico de tudo aquilo, e Harold encara aquilo como um convite para continuar sua perfomance. Ele para a poucos metros de Marien, afastado das demais pessoas, mas sua voz ainda reverba pela rua lotada de espectadores. Ele não se deixa intimidar pelo público: é como se a bruma de álcool que o envolve restringisse aquele momento a apenas Marien e ele. Dá para notar pela forma contemplativa que ele a encara, como se o mundo fosse resumido a apenas eles dois. Seria cômico se não fosse trágido. Marien parece ignorar toda essa reverência, limitando-se a lançá-lo um olhar de descaso, mas eu posso ver seus dedos tremerem ocasionalmente, mostrando o quanto ela está afetada por todo aquele circo. Harold ignora a rajada de ódio que Marien joga em sua direção, focado em aprumar o violão no peito e começar a dedilhar a sua versão bêbada, incoerente e atrevida de uma serenata:
"Oh Marie-eeeeeen, oh Marie-eeeeen
You act like you're a know-it-all
Watch your step or your might fall
Stumbling into the abyss that is the real world
Deceived by the false floor that is your self-esteem
Be careful with your precious loubotin
One misstep can mean the end
Of the incredible wall that you keep around you
Is that a glance of a spark in your eyes?
Betraying that I'm right on track?
I used to think that you're self-assure
But with just I glimmer I know for sure
That you're just scared as anyone else
That anyone could see the true
That it's hidden deep inside of you
Masked by rudeness and arrogance
Even if you try to hide
I can dig you deep inside
You're so in love with me
As much I'm madly in love with you"
(Oh Marie-eeeeeen, oh Marie-eeeeen! Você age como fosse uma sabe-tudo. Cuidado com seus passos ou você pode cair, tropeçando no abismo que é o mundo real, enganada pelo piso falso que é a sua auto-estima. Tenha cuidado com seu precioso loubotin, um passo em falso pode significar o fim da incrível muralha que você mantém ao seu redor. Isso por acaso é um vestígio de faísca nos seus olhos, delatando que estou no caminho certo? Eu costumava pensar que você era segura de si mesma, mas, só com um vislumbre, eu tenho certeza que você está com medo, como qualquer outra pessoa, que qualquer um poderia ver a verdade que está escondida dentro de você, mascarada pela grosseria e arrogância. Mesmo se você tentar esconder, eu posso cavar profundamente dentro de você... Que você está tão apaixonada por mim, como eu estou loucamente apaixonado por você.)
Sua voz é rouca e desafinada, mas a intenção de sua declaração se mantém firme enquanto ele dedilha fervorosamente o violão, encarando-a com um sorriso irônico e inebriado nos lábios. Marien ainda assiste as rimas desconexas embaralharem sua mente por alguns minutos, mas sua tremedeira chega a ser tão aparente que ela se retira para dentro da delegacia. Harold fica sem saber o que fazer por alguns minutos, encarando aturdido o vão da porta onde ela entrou, arrastando uma tempestade de frieza ao seu redor. Poucos minutos se passaram, onde o silêncio esmagador pareceu quebrar todos os ossos do homem, até Marien retornar com um objeto cilíndrico e vermelho nas mãos. Ela para bem de frente para ele, com um sorriso assassino nos lábios carmesins, e aponta o extintor de incêndio na sua cara, despejando o líquido esbranquiçado nele, que pula com o choque.
A multidão solta um suspiro de horror uníssono, que se quebra com algumas risadas. James assobia ao meu lado, balançando a cabeça.
- Ele poderia ter ido dormir sem essa. - ele ri e se dirige até o tio, apoiando-o para acompanhá-lo até em casa para se enterrar na própria humilhação.
Marien repuxa os lábios com desgosto, ainda segurando o extintor, que continua pingando.
- Arrogante e grossa! - ela resmunga. - Da onde ele tirou isso?!
- Olha, eu não faço ideia... - eu finjo uma cara de desentendida, rindo mentalmente.
Por alguma razão, sinto que essa cidade tem muitas histórias para me contar.
《¤》
Será que ao tentarmos fugir de nós mesmos, não estamos apenas procurando, em outras coisas, respostas que não conseguimos verbalizar em voz alta? Quando é que a encruzilhada entre o desapego e a irreverência consegue convergir num caminho único para a autodestruição? Às vezes, quando estamos imersos em inseguranças, qualquer coisa pode se confundir com um bote salva-vidas, mesmo que mascarado numa solução vertiginosa de prazer. Nós estamos tão interessados em livrar-nos do sufoco, esquecer o presente, desprender-nos da carne, que qualquer reação fugaz que nos dissocie da nossa realidade é bem-vinda. Muitas vezes, porém, mergulhamos tão fundo nessa irrealidade que acabamos perdendo a noção da profundidade e, quando tentamos retornar à superfície, o oxigênio parece simplesmente insuficiente. Nós acabamos morrendo afogados em nós mesmos. Eu me afoguei naquela noite. Meus pulmões ainda estão cheios de água.
Todo mundo já se afogou alguma vez na vida. Seja tomando aquele porre estressante para sanar os corações partidos, seja enterrando-se em outros corpos para preencher algum vazio existencial, seja tomando férias para desopilar da carga enfadonha do trabalho... Há muitas maneiras pessoais de se afogar. Vez ou outra, enquanto você agarra-se com avidez à sua boia, os braços se cansam, você pode escorregar e nadar desesperadamente em busca do chão, mas nem a boia consegue te sustentar pra sempre.
Me entregar de cabeça a algo, com o simples intuito de isolar-me do mundo à minha volta, provou-se um caminho carregado de espinhos e inclinações perigosas.
Desligar-se de si mesmo não significa desligar o mundo ao seu redor. O tempo corre insopitável, a vida pulsa com vibrações periódicas e a única coisa em repouso é você, mas o sistema não é isolado. Há uma contínua ação de forças externas atuando no seu meio. É apenas uma questão de tempo até que alguma quebre seu estado de equilíbrio. E, eventualmente, alguém fez isso comigo, me provando que me fechar não impediria que as pessoas forçassem seu caminho até mim.
Harold decidiu apontar na estrada da dormência, entorpecendo a própria mente para ver se conseguia nublar suas preocupações, mas a única coisa que aconteceu foi a vazão dos seus sentimentos, que escorreram para fora da sua boca despreocupada. Será que desconectar-se da própria mente realmente te dá o poder de ignorar as emoções que te incomodam? Harold apenas aproximou-se da sua própria vulnerabilidade, enquanto eu ignorei todos os fatos que me levaram até aquele momento. Mas aquilo não significa que eu parei de sentir. Eu sentia. Tudo. Vividamente. Mas era simplesmente uma névoa muito difícil de atravessar.
Só que entre sentir com a mente limpa, que dá capacidade dos pensamentos se enraizarem com afinco, e sentir com um nevoeiro de ideias, a bruma do álcool é uma velha amiga.
Algumas vezes só precisamos tirar um tempo para nós mesmos, ou usar esse tempo como desculpa para lidar com algo que temos muito medo de fazer sob circunstâncias normais. O que acontece entre esses intervalos são variáveis que não podemos calcular, tampouco podemos nos culpar por algo que não tem algum discurso de previsibilidade.
Algumas coisas acontecem para o bem, outras para o mal. E nós somos levados com a maresia.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top