Capítulo 4 - O Dia Dos Fundadores. PARTE 2

Galinhas, carneiros, porcos, cabras. É o caos.

Eu ainda estou parada, atolada na lama, tentando entender o que aconteceu. Danny está parado na porta do curral, os dedos gordinhos segurando um pintinho firmemente, enquanto ele enconsta-se contra a portinhola aberta. A vaca ao meu lado é o único animal que adquiriu ao marasmo. O restante, numa corrida fugaz, espalha-se pelo festival como uma proliferação de germes: rápida e efetivamente. Eu quero gritar, sair correndo, mas meus pés assumiram uma função chumbosa que torna difícil meus movimentos. Está tudo acontecendo muito rápido. O mar de pessoas se abre na lateral, dando espaço para rua se expandir numa tropa de soldados milimetricamente fantasiados, incorporando seus papéis de época, marchando em um retumbar uníssono e ensaiado. Eles abrem duas fileiras, dividindo-se entre si, e passam a pisar firmemente, espalhando uma onda pela multidão, que acompanha os passos ritmizados com palmas e uivos. Então, como se não bastasse, grandes balões de ar enfeitam a circunferência da praça, representando os falecidos fundadores. Toda a atmosfera é intrisecamente elaborada para dar ao espectador a sensação de vertigem, retrocesso, como se tivessem se transportado para aquela época remota e equidistante, e a cidade sabe incorporar essa viagem no tempo com maestria, seja pelas vestes ou pela arquitetura da festa. A passeata abre passagem para os carros aleagóricos passarem, trazendo consigo uma barrotada de estudantes caracterizados, acenando e interpretando os mesmos personagens visionários que fizeram história na cidade.

Mas, como se houvessem queimado o script, os animais invadem o desfile, esbarrando nos soldados, que ficam atordoados com a interrupção, semeando a confusão. Eu saio do meu estado de torpor e corro em disparada, tentando trazer de volta o maior número de animais possíveis.

Anne me encontra enquanto eu inspiro fundo na tentativa de enfrentar um bode feroz.

- O que porra está acontecendo?

- Danny. - eu inspiro fundo, balançando os braços como quem diz "xô!" pro animal. Ele permanece estático. - Ele abriu a porta do curral!

Anne ri da minha tentativa de afastar o bicho e diz que vai me ajudar antes de ir atrás de Danny. Então, com a maior naturalidade do mundo, ela espanta o bode. Eu pisco os olhos, mas não tenho tempo para isso. Saio correndo, empurrando porcos, cabras, tudo como uma louca frenética. Pego um pedaço de pano, sacudindo no rosto de uma cabra, que parece me avaliar como se eu fosse idiota. Provavelmente eu sou. Corro contra o tempo, reunindo o máximo de animais possíveis juntamente com Anne. Meu maior desafio são as galinhas. Seus bicos afiados, suas espressões de deboche e seu cacarejar contínuo me fazem fraquejar por um momento. No fim, apenas acabo correndo delas, instigando-as a voltar para o curral. Termino isso pingando suor, quase acabada pela correria que sou obrigada a enfrentar, jurando que tudo estava acabado; que o tormento havia cessado e que eu poderia respirar novamente, com meu álcool e gel resgatado e a moral intacta. Eu deveria morder minha língua!

Meu cérebro parece entrar em curto-circuito enquanto observo o desenrolar da cena. Assim que os demais carros alegóricos passam pela multidão e explodem num misto de confetes, euforia e aplausos, o carro do prefeito aproxima-se para finalizar o desfile. Ele está em pé, apoiado numa barra de ferro, sinalizando para a população positivamente de forma mecânica; ao seu lado, uma jovem garota, de cabelos loiros e expressões predatórias, acena em sincronia, imitando seus gestos com o tronco rígido, o maxilar cerrado e o queixo altivo. Seu porte elegante é acentuado pelas madeixas douradas, que descem em cascata pelas costas, e seu vestido fino de tafetá. Parece da realeza: fria e inacessível. Logo à frente, num degrau abaixo, Marien sorri com uma expressão endiabrada, agitando os braços sem a menor classe. Ela está rindo, totalmente entregue ao momento, e seu sorriso repuxado desperta uma reação nas pessoas, que gritam entusiasmadas. Mas quando tudo está saindo como o planejado é que as coisas desandam. Sabe aqueles filmes com adolescentes azaradas, cheias de infortúnios atacando suas vidas sem graça? Esses que retratam quando as garotas viveram todos seus dias como incógnitas, mas, assim que atingiram o radar social, o destino resolveu vomitar na cara delas? Mas que nada disso tem problema, afinal o carinha que elas gostam acaba achando simplesmente encantador garotas caindo em lixeiras e tropeçando pelos corredores? É claro que na nossa perspectiva não há garotas insignificantes que atingem o estrelato, uma série de desastres, garotos bonitos reparando em suas belezas defloradas e o final épico onde elas superam a natureza catastrófica que regia suas vidas. Não. Há apenas o destino sacana, que procura todas as brechas prováveis para ferrar com a minha cara. Não, eu nunca fui esse ímã de problemas, esse arrastão de temperamento forte ou esse poço de azar. Mas a vida resolveu transformar a minha sorte de eventos, como se fosse uma tábua virada ao avesso. Assim, simplesmente: girou a mesa e deixou a nova onda de sorte rolar. Eu deveria ter mantido as expectativas em alerta, mas é claro que me surpreendo quando o porco parrudo atravessa a rua e se espreguiça no centro do desfile, totalmente indiferente ao que está acontecendo. Eu simplesmente travo. Não processo. Minha mente evapora.

Como retirar um porco gordo que não quer se mover? Processo as informações. 505 error not found.
Mas logo visualizo os inúmeros cenários sanguinolentos, onde há bacon e costela de porco espalhados em cada recanto da rua, e, estremecendo de nojo, obrigo-me a atravessar a rua e empurrar a montanha de banha para fora da passagem. Tento não focar na lama que se mistura com meus dedos insistentes, ao tentar empurrar o porco, focando apenas em fazê-lo se mover. Seria pedir demais que as forças externas intervissem ao meu favor e fizessem esse animal parar de procrastinação? É claro que seria.

Todo mundo parece sintonizado à minha tentativa de salvar o pobre porco, mas, como se o destino os alertasse para me deixarem sofrer na merda, nenhum se mexe em auxílio. O carro está próximo, apesar de ser lento, e eu despejo um olhar de puro pânico para Marien, que capta meu desespero e começa a se jogar em cima do prefeito, se abanando e pedindo socorro como se realmente passasse mal. Eu não posso evitar o riso que me escapa. Ela joga os braços para cima dele, cobrindo os olhos sofregamente, e posso quase ouvi-la murmurar uma série de "oh!" afetados. Minha avó é uma figura.

- Vamos, porra! - gemo, trincando os dentes para fazer força. - Eu vou te transformar em bacon se você não se mexer!

O porco me ignora novamente, como se eu fosse um inseto desinteressante. Eu me viro de novo e quase grito ao perceber que o carro está perigosamente perto. Enquanto cogito se deveria correr e deixar o porco morrer ou ficar e bancar a mártir, um impacto forte me joga para trás, empurrando meu corpo contra a outra extremidade da calçada. Eu assisto, imprensada pela estrutura pesada da pessoa, o porco se locomover distraidamente para longe do alcance do carro, que erra há escassos milimetros do animal. Eu solto uma maldição irritada, o que faz a pessoa rir baixinho da minha insensatez. Eu paro, como se cogitasse agradecer à pessoa que se aventurou a me salvar, e encaro duas enormes crateras negras me perfurando com intensidade. E é assim que me torno mortalmente consciente de sua presença: seu corpo robusto me pressionando contra o asfalto quente com um atrito firme, seus braços rígidos me firmando no lugar, seu peso pressionando minhas costelas, seu hálito de menta contra a minha bochecha corada... E seus olhos. Suas íris cor-de-ébano que me atacam perguntas para as quais não tenho respostas. Suas sobrancelhas estão franzidas em concentração, aprofundando seu cenho, e há a ameaça de um sorriso superior dançando nos seus lábios.

- Seus métodos são muito ortodoxos. - ele zomba. Há um leve brilho de divertimento no seu olhar sombrio. - Mas acho que foi seu grito de espanto que conseguiu afugentar o bicho.

Então, James Carter abre a fileira de dentes simétricos e esbranquiçados, provocando uma reação controversa na minha garganta. Fico sem reação por alguns minutos, apenas aproveitando o latejar de seus músculos contra meu corpo, o soprar de seu hálito contra meu ouvido e o retumbar de seu coração contra o meu. A realidade me estapeia na cara, com um golpe certeiro e rápido, fazendo-me despertar das sensações inebriantes que me engolfam. Eu me sacudo para longe do seu alcance, debatendo-me embaixo do seu aperto duro, mas é inútil. James Carter está agarrado a mim com uma pressão férrea.

- Me solte, Carter. - sibilo irritada. - Sai. De. Cima. De. Mim. Idiota.

- Ei, bonita, isso lá é jeito de tratar seu salvador? - ele pondera por um momento; como se sentisse ofendido, mas há um tremelique no seu sorriso arrogante. - Estou começando a acreditar na minha teoria de louca suicida.

- Eu não precisava que você me salvasse! - rebato, estapeando seu peito. - O carro estava quase parando de tão lento!

- Esse é o seu lado da história. - ele pisca.

- Francamente, acho que você só queria uma desculpa para ter seu corpo pressionado contra o meu... - provoco.

Ele pisca, levemente atordoado, e então se dá conta das minhas palavras. Ele solta um riso estridente e nasalado, totalmente chocado pela minha audácia, e balança a cabeça negativamente, girando para o lado e me libertando.

- Você bem que gostaria, princesa. - ele murmura, balançando uma chave entre os dedos enquanto se ergue e sai caminhando. - Você bem que gostaria.

Eu tento falhamente esboçar alguma resposta para afastar o gostinho de vitória de seus lábios, mas sou interrompida por um freio brusco que faz pneus rangerem ao meu lado.

- Mas que porra é isso? - o prefeito grita, ajustando as vestes enquanto se recompõe. - Quem soltou o porco no festival?

- Deve ter sido ela, papai. - a menina ao seu lado diz com desprezo. - Era a única desesperada o suficiente para querer tirá-lo de lá.

Ela me dá uma olhadela menosprezante e, minuciosamente avaliando meu estado decrépito, perpassa seus olhos claros entre James e eu, fazendo uma careta de desgosto. Parece que comeu algo estragado.

- Você pode explicar isso, James? - sua voz irritante chama, pedindo uma explicação.

James dá de ombros.

- Não te devo nada, Maddie. - ele resmunga, irritado pela petulância dela. - Estava apenas cumprindo meu dever de oficial ao salvar uma civil.

Eu engasgo com o riso. Que ironia! Não ouso mencionar que o mesmo oficial ameaçou a vida dessa mesma civil há pouco menos de um dia.

- Liv, o que aconteceu? - Marien questiona, já sem os espasmos loucos dos desmaios forçados. - Eu não te deixei cuidando do curral? O que houve?

- Eu, bem... Sabe como é...

- Liv é defensora dos animais. Não aguentou ver o pobre porco correndo o risco de... - ele desenha uma linha na garganta e me acotovela pelas costas.

- Sim. - tusso. - Não consigo nem ouvir a palavra que já fico abalada!

- Que bobagem. - Maddie rola os olhos.

- Tem certeza que foi isso que aconteceu? Como ele escapou do curral? - o prefeito investiga desconfiado.

Estou a ponto de ter uma síncope, totalmente apavorada por estar sendo enviada à guilhotina, quando a multidão se abre novamente para dar espaço a uma Anne irritada, carregando o pequeno Danny pelas orelhas, marchando furiosamente em nossa direção.

- Conte a verdade, Danny! - ela berra histérica.

Marien a interrompe com um olhar assassino.

- Não precisa dizer! - ela parte pra cima de Danny com o dedo hasteado. - Quantas vezes te disse pra não aprontar nada hoje? Estou pensando em guardar um lugar especial para você na delegacia, pra ver se assim toma jeito!

- Não, papai!!!!! - Danny chora, correndo para abraçar o prefeito. Eu olho para Marien sem entender, recebendo um dar de ombros. - Eu n-não vou f-fazer m-mais! Da última vez que eu fui pra delegacia, tive que engraxar os sapatos do James!

- Isso é verdade, James? - o prefeito insiste e James apenas sorri debochado.

- Com princípios meramente educativos, é claro. - ele esclarece.

- É claro. - o prefeito concorda com um rolar de olhos, num ato muito parecido com o da sua filha, e sorri envergonhado. - Desculpe pela confusão que meu filho armou, Liv.

Eu me limito a sorrir em concordância, temendo que essa possa ser a primeira de muitas confusões.

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A sensação de liberdade que meu corpo emite ao livrar-se daquele vestido é inexplicável, mas sinto como se meus poros dessem um suspiro coletivo ao serem banhados pela água límpida do chuveiro, que lava, para longe da minha mente, os problemas desencadeados na primeira parcela do dia, como se arrastasse alguns detritos pelo córrego. Minha consciência fashion parece deflorar ao incinerar mentalmente o vestido esfarrapado! Confesso que tenho uma satisfação pecaminosa ao substituí-lo por um floral delicado para a noite. Marien e papai estão formalmente trajados para a ocasião, com as roupas asseadas e os sorrisos hasteados nas faces empolgadas. Faz tempo que não vejo o vislumbre desse sorriso em seus lábios; é como se ele houvesse se tornado efusivo, com o tempo e as circunstâncias, e tivesse acabado se perdendo na efemeridade dos momentos. Mas sua felicidade é contagiante, e acabo percebendo que meu sorriso torna-se reflexo da animação dos dois. Não sei quão intenso é o efeito de Leavenworth em sua empolgação, mas papai acaba perdendo a tensão de seus ombros aos poucos, livrando-se de toda bagagem que tinha que carregar sozinho antigamente. É como se aqui, aconchegado pela familiaridade de suas raízes, ele pudesse repousar os problemas no armário escuro de seu antigo quarto. E eu sei que não compartilho dessa sua sensação de lar e conforto, que muito desse cenário que me cerca ainda é desconhecido e inexplorado e que, às vezes, o sentimento de queda é mais forte do que o do tato, mas, quando consigo pegar essas vertigens de felicidade incorruptível, esses seus lances de clareza e entusiasmo, me arrisco a pensar que um dia o meu sorriso ouse ser tão verdadeiro quanto o deles e que meus pés consigam se firmar no fim do abismo. Um dia, eu penso.

Incrivelmente, Leavenworth parece extrair isso das pessoas: essa comoção de que algo pode ser tão poderoso e tão tangível a ponto de romper as barreiras e atravessar camadas de indiferença, problemas e crises, apenas para assegurar uma segurança tão sólida que chega a ser intransponível. É isso que percebo nos rostos ao meu redor, pautados pelo entusiasmo, enquanto trafego pelo jardim da grande construção que é a casa do prefeito: há ali sentimento, ferocidade, desejo. Todos celebram a fundação de Leavenworth. Todos ali presentes fazem parte intrisecamente da história da cidade, a escrita e a que ainda será retratada: as terras aradas que semeiam cor, os corações batendo no compasso da música, o sangue jovem e antigo que simboliza, através de gerações prorrogadas, um legado de amor, confiança e simpatia. E mesmo que eu tente me manter inatingível, sinto que aquilo me embala bem mais do que quero admitir.

Há uma quantidade considerável de corpos vagueando pelas redondezas da mansão do prefeito, alguns imersos na sintonia contagiante que é a energia do local, outros apenas entregues aos caprichos da data. O grande casarão de carvalho ergue-se imponente diante de tantas pessoas, iluminado ocasionalmente com algumas iluminárias adornativas, para realçar a beleza da estrutura sólida, e se sobrepõe ao ambiente com sua construção ostentosa e fachada em tons pastéis. Há um tom clássico em seu modelo, ainda preservado pela ação dos anos, mas os toques modernos são facilmente delatáveis aos olhos.

- Bonito, não? - Marien murmura ao meu lado, notando que estou observando a casa majestosa. - Se me perguntarem, é grande demais para abrigar a família. Seus grandes corredores, apesar de expressarem conforto, me dão a ideia de solidão. Thomas Fields vivia sozinho com sua filha única até uns anos atrás, quando casou com a mãe de Anne e teve o pequeno Danny. Acho que a casa espaçosa só faz deixar o menino mais louco, perdido numa vastidão de cômodos sem fim, sem qualquer interação com alguém da sua idade.

- Aham, deve ser por isso seu péssimo comportamento. - zombo, embora sei que a dor de estar sozinho é capaz de abater Danny e derrubá-lo com uma força inigualável. - Ter uma casa enorme e cheia de conforto.

- Eu não acho que o problema seja exatamente a casa... - Marien adiciona com um sopro, entrando na propriedade e me deixando para trás com uma interrogação.

No vasto jardim arbustivo que ladeia o casarão, há várias mesas assimétricas, dispostas de forma desordenada, abarrotada de pessoas. A cacofonia ali presente é algo evidenciado pelos grupos de pessoas aglomeradas para iniciar discussões amenas. Há algumas carroças de algodão doce, pipoca, churros, crepe e outras iguarias pela extremidade da propriedade, onde existe um pequeno parque montado para as crianças se distraírem, e, afastado da movimentação da população, há um pequeno posto de madeira, onde os fogos de artifício aguardam para serem lançados no mais tardar.

Eu caminho pelas pessoas desconhecidas com a leve sensação de invasão, como se, de certa forma, eu estivesse transpondo uma barreira de intimidade que não me diz respeito. Me sinto estranha e deslocada, parada em meio a demonstrações de afeto e familiaridade, não conseguindo afastar o pensamento de estar presenciando algo muito pessoal. E ali está aquele terrível pressentimento: a ideia que as pessoas à minha volta não me reconhecem, me discriminam, derramam questionamentos a meu respeito, cruzam os braços com minha proximidade e entortam os lábios ao meu som. Me sinto estranha no meu próprio corpo, como se não conseguisse me acostumar a esse novo molde que sou obrigada a ser, como se eu transbordasse de mim mesma, vazasse insegurança, perdesse alguma parte essencial de mim que não sabia que tinha até ser obrigada a alcançá-la. A pequena parte que se importa. Aquela que só quer se encaixar, assentar no molde, endurecer o interior e se firmar intimamente. Acho que estou flutuando num mar de preocupações e dilemas, e o mar ao meu redor está me puxando cada vez mais fundo, como se eu perdesse a resistência que tenho para me manter emersa e acabasse afundando aos poucos, gradativamente, em busca de oxigênio e respostas.

- Uma pipoca por seus pensamentos. - ouço a voz doce e exigente chamar. Não sei como me viro, mas há aquela sensação de que é comigo que estão falando. É como se aquela voz jogasse uma pequena boia ao meu resgate e me impedisse de morrer afogada naquele instante. A sensação não passou; ainda estou flutuando. Só estou mais segura do que antes. - Quem diria que você conseguisse manter essa expressão reflexiva. Pensando na morte da bezerra? Ou na fuga da bezerra?

Viro-me para encarar os cachos alaranjados de Anne projetando-se de acordo com a força do vento. Seus olhos verdes e sagazes me examinam e eu quase me sinto transparente, como se ela pudesse adivinhar a solidão que me aflinge e desfazer as camadas mais escondidas da minha alma. Poético, eu sei. Sua cara parece ponderar por um ínfimo minuto a respeito do meu comportamento, absorvendo o máximo que suas íris caçadoras são capazes de encontrar no rastro da minha expressão, e, então, ela me entrega um pacote cheio de pipoca amanteigada com uma expressão resoluta. Não sei se é uma oferta, mas eu tomo das suas mãos com convicção. Ela exibe um sorriso arteiro em resposta, franzindo os lábios em aprovação, e seus olhos parecem queimar com significado. A brisa suave acariacia seu rosto e afasta seus cachos, e eles parecem queimar como fogo, em contraste com a luz quente, crepitando de acordo com que o vento os movimenta.

- E então? Uma pipoca por seus pensamentos!

- Como sou barata! - sorrio com humor.

- Ei, suas palavras, não as minhas. - Anne adiciona com as mãos erguidas em rendição.

- Eu estava apenas pensando em como Leavenworth é diferente. - omito, resolvendo dar-lhe uma resposta. - E nas coisas que a cidade me faz sentir.

Anne assobia alto.

- Foi longe, princesa. - ela movimenta-se na minha frente, me guiando pela multidão. - Vamos tentar não levar nossos pensamentos para o lado sentimental. Você fica com uma expressão muito sombria quando o faz.

- Você já teve um sonho, Anne? - pergunto, desviando do assunto.

Ela parece ser pega de surpresa, o que a faz parar de supetão pelo trajeto. Seus olhos vagueiam pela quantidade de gente, perdendo-se num grupo mais a frente. Eu não conecto o momento com a pergunta, mas acho que deixei algo passar durante aquela equação de segundos em que Anne parecia absorta demais com o desenrolar do tempo. Ela vira-se novamente em minha direção, mas seu sorriso agora tem uma conotação triste.

- Claro que tenho. - ela responde com sinceridade. - Quem não tem sonhos? Sonhos são o combustível de ilusão que nos alimentam para enfrentar a realidade. É como se fosse uma visão fragmentada do futuro que poderia existir e da realidade, do que temos que trabalhar para tornar nossos sonhos reais. Você sonha, Liv? Com o que você sonha?

- Eu sonho em viver a vida. De verdade. - comento, ainda avaliando sua face perdida. - Acordar e ter a sensação de estar fazendo a coisa certa. De que tudo que me direcionou até aquele dia valeu a pena. De ter fome do mundo e poder saciá-la. De derramar minhas palavras pro mundo ler. De escrever, fazer a diferença. Parar de viver na utopia, sabe?

- Eu sei. Mas, muitas vezes, a utopia é a única coisa que mantém alguns firmes.

- Qual o seu sonho, Anne? - questiono com a curiosidade clara na fala.

- Alguns são muito óbvios, posso vê-los com toda a perspectiva. Outros são muito embaçados para que eu possa compreender. Quero dizer... - ela pensa por um momento. - Acho que esse é meu maior sonho. Conseguir enxergar as coisas com nitidez. Saber o que eu quero para poder alcançá-lo.

Seu olhar torna a bater no mesmo ponto, quase de forma automática. Acho que ela sabe o que quer, mas não consegue projetar a sua coragem para correr em busca. É como se seus dedos estivessem a escassos milímetros de apanhar sua vontade, mas, no último momento da prorrogação, ela tropeçasse no próprio medo e tudo evadisse para longe.

- O que eu falei sobre não entrarmos no lado emocional? - ela resmunga, se afastando novamente. Temendo o que quer que se agitasse em seu interior.

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Caminhamos sem rumo aparente, apenas vagando entre as pessoas, rindo de cenas ocasionais e debochando da empolgação contagiante que trespassa a atmosfera do ambiente. Anne é divertida e possui uma boca cheia de espasmos, que sempre se agita quando alguém próximo fala algo errado ou a provoca. Ela tem uma calma serena, que me envolve e me embala nos momentos mais críticos, o que chega a ser engraçado, porque, quando a situação chacoalha negativamente, ela mesma é a primeira a perder os eixos. Percebo, com extrema facilidade, que seus lábios tendem a se repuxar com mais frequência quando Greg está na equação. É como se ele exercesse um poder sobre ela, que ele mesmo não parece perceber, deixando-a irritadiça e volátil. O que acaba deixando minha noite relativamente mais divertida, tendo que aturar os puxões de orelha entre ambos, porque, embora Anne solte o pequeno demônio em seu interior, seus gritos parecem atravessar a pequena barreira de serenidade que Greg projeta ao seu redor. É como se ela fosse um incêndio irrefreado, quando ele era um fósforo lambendo languidamente sua chama opaca. Ela, tempestade. Ele, garoa.

Nós estamos entretidas na cena exótica em que Greg exala polidez para umas senhoras de idade, balançando os cachos dourados e piscando os cílios espessos com um flerte velado, enquanto elas coram simultaneamente numa reação quase ensaiada. Anne está fazendo esforço para não rir das insinuações das mulheres, murmurando uma piadinha sobre o charme inabalável do garoto de ouro da cidade, mas seu descaramento é algo notável. Não posso evitar o riso desenfreado pelo momento. Greg tem um encanto inocente que é preservado pela sua falta de malícia; é como se, lá no fundo, ele não conseguisse enxergar a dimensão da repercussão que seus olhos claros e o menear das suas sobrancelhas causavam nas pessoas. Mas era evidente: bastava piscar suas pestanas que várias já estavam rendidas à sua personalidade inebriante e seu olhar expressivo. As pobres mulheres não eram uma exceção, claro.

- Ele parece um maldito modelo da Abercrombie. - Anne pragueja ao meu lado, ainda rendida às risadas. - Só que hétero. E com um tanquinho menos photoshopado.

Eu olho pra ela, com o riso preso nos lábios, com a expressão vencida pela incredulidade. Ela limita-se a dar de ombros, como quem diz "mas é verdade!", e eu balanço a cabeça com diversão. Estamos cogitando se deveríamos ou não salvá-lo do ataque da menopausa quando um som de explosão nos assombra. É um barulho abafado, mas ainda assim causa uma sensação de estardalhaço.

- Vem da cozinha. - eu constato.

- Deveríamos dar uma olhada. - Anne acena. - Minha mãe surtaria caso algo desse errado.

Nós seguimos juntas até o cômodo afastado, escutando uma série de barulhos estalados enquanto mantemos nosso ritmo até a cozinha. Anne parece ficar nervosa pelos sons progressivamente mais altos e chamativos. Como um coro de fundo para agravar a nossa extensa criatividade, conseguimos captar gritinhos de pavor e surpresa. É esse momento que ela escolhe para se desesperar do meu lado, beliscando meu braço como um apoio para firmar a realidade da situação. Ela começa a soltar uns palavrões - murmurados no momento da pressão - e confabular teorias conspiratórias absurdas que me fazem soltar uma risada ocasional.

- Mas o que diabos está acontecendo? - ela continua a repetir a questão com curiosidade.

Nossos lábios, cheios de hipóteses hiperbolizadas, morrem assim que cruzamos a soleira da porta. O tempo parece se desfazer para absorvermos com precisão cada detalhe da cena ridícula que se desenrola: ouvimos o baque da porta por trás dos nossos corpos chocados, mas o barulho é prontamente silenciado por um tilintar de panelas, que explodem, sem aviso prévio, derramando o conteúdo nas pessoas desavisadas que estavam próximas do ocorrido. É como se fosse meticulosamente elaborado para preservar a sincronia do ato; assim que uma panela pipoca num jorro de creme de frango, as demais seguem o compasso e explodem simultaneamente. Alguns ajudantes correm em disparada para fugir do ataque certeiro do creme, mas é inevitável a forma que a pasta cremosa traga suas vestes. É fácil reconhecer o chefe entre as demais pessoas, que alternam uma carreira entre limpar o líquido viscoso dos utensílios e fugir das panelas instáveis. Ele é um homem baixinho e rechonchudo, com uma pele alva marcada por nuances avermelhados que delatam o quanto ele está se esforçando para conter a erupção de seu temperamento. Seus lábios estão franzidos numa linha fina e dura, fazendo-o segurar o grito preso de frustração na garganta. Seu bigode preto está ensebado com o creme, e ele parece estar tentando arduamente ignorar esse fato, temendo a ameaça nítida de que o pequeno fio de paciência que lhe resta, que se estende rígido para sustentar sua serenidade, possa se arrebentar.

- O que aconteceu aqui, Miller? - Anne questiona com um grito agudo. Seu autocontrole já foi para o brejo. Ela se movimenta em círculos, massageando as têmporas enquanto entoa uma melodia baixa. - Vá para seu lugar sereno, Annelise. Pense em praias, neve, chuva, coelhinhos. Om Muni Muni. Om Muni Muni.

- O que você está fazendo, Anne? - pergunto com uma risada presa.

- Me conectando com o meu estado de paz inabalável. - Anne responde, perdida em seus mantras. - Om Mani Padme Hum... - ela continua, dando um suspiro alto, e encara Miller do outro lado do cômodo. - Certo. Nada pode me atingir. Agora me diga o que diabos aconteceu!

- Eu não sei! - o homem grita aturdido. - Estava indo tudo bem, até as panelas começarem a apresentar uma perfomance de possessão!

- E as panelas simplesmente resolveram explodir?

Anne parece estar a beira de quebrar tudo o que tem pela frente, mas é interrompida por outra explosão relativamente menor. Dessa vez, uma pequena bomba rola pelos pés do chefe, fazendo-o saltar pela surpresa, e acaba explodindo nos seus sapatos de camurça, chamuscando as pontas dos dedos. Michael solta um gemido de dor e salta desengonçadamente, alternando o peso entre um pé queimado e o outro. Consigo capturar um borrão vermelho escapar vertiginosamente pela porta dos fundos, mas, antes que eu possa esboçar algo, Miller grita ultrajado:

- Isso é o fim do poço! - ele berra. - Eu não vou ficar aqui me sujeitando a ter minhas panelas explodidas e enfrentar bombinhas infantis!

Anne parece perder toda a coloração existente em sua face quente, como se o próprio sangue fugisse da oportunidade de lidar com o chefe revoltado, mas, como se desse conta que a celebração desandaria sem o jantar beneficiente, ela recupera a compostura e tosse desconfortavelmente, digerindo as palavras adequadas para abordar o sujeito.

- Miller, você não pode fazer isso! - ela começa, me olhando de soslaio como se quisesse pedir socorro. - Lembre-se que todos contamos com o seu jantar para a festa ser encerrada apropriadamente!

- É, Miller. - eu cogito a abordagem e sorrio maliciosamente. - Sua comida é tradição dos Dias dos Fundadores! Você não vai querer quebrar uma tradição, não é?

- E desapontar todos da cidade! - Anne completa, abrindo um sorriso semelhante ao meu. - O prefeito ficaria muito desapontado ao saber que você falhou com os cidadãos...

- Bem, olhando por esse lado, eu não poderia fazer essa desfeita... - ele comenta em confusão, mas logo pisca e sacode a cabeça. - Mas, Anne, eu não posso tolerar esse tipo de brincadeira! Perderia todo meu crédito como um chefe sério!

- Ninguém precisa saber! - eu insisto. - E tenho certeza que o prefeito o recompensaria pelas... complicações.

- Recompensaria? - Anne repete, sem captar o raciocínio, obrigando-me a acotovelar sua costela em repreensão. - Quero dizer, ele faria muito mais! Ele reconheceria seu trabalho em respeito da cidade!

- Vendo por esse lado...

Não foi muito difícil manipular suas reclamações e contornar sua teimosia, mas nós conseguimos. Puxo Anne para fora, deixando Miller livre para retomar seus afazeres e reverter a situação alimentícia crítica que nos encontrávamos. Ela ainda tem um sorriso arteiro nos lábios, com a expressão sagaz congelada no semblante maroto, o que acaba deixando-a extremamente parecida com Danny, tirando todo ar diabólico que circunda o garoto menor. O que me faz lembrar...

- Anne, acho que vi o Danny saindo da cozinha durante a confusão. - informo com a cara neutra, aguardando uma reação da ruiva.

Tomando como referência todas as experiências que vivi, durante aquele dia, quanto às reações de Anne em relação ao irmão caçula, chega a ser normal a cara de paisagem que ela faz enquanto assimila a informação. E então lá está a resposta típica de suas feições com a menção de Danny: seus lábios repuxam um sorriso sarcástico - quase como se ela soubesse em seu íntimo que ele era a resposta para todos os problemas -, seus olhos oscilam num brilho de raiva repentino e seu punho se fecha com determinação. Anne tenta falhamente não ranger os dentes, mas consigo ouvir o atrito pela força com que ela morde o nada. Ela não tenta esconder o quão irritada aquela notícia a deixou.

- Não acredito! Aquele pestinha! - Ela golpeia o punho fechado contra a parede. - Ele me disse que ia se comportar! E agora?

- Vou atrás da minha avó e do seu pai para contar o que aconteceu. Eles precisam achar uma forma de enrolar até o Miller terminar o jantar. - falo num tom profissional, toda convertida à praticidade. - Ache o Greg, arranque-o das garras daquelas velhas sedentas e encontrem o Danny! Ele deve estar aprontando até agora!

- Porra, quem deu essas bombinhas pra ele? Por acaso ele arranca o patrocínio para suas malandragens no mercado negro para gênios do mal? - Anne resmunga com histeria. - O que eu vou fazer, Liv?!

- Vá para o seu lugar sereno, Annelise. - eu respondo, rindo às suas custas enquanto me viro e sigo em busca da minha avó.

Marien parece fumaça, é tão inconstante e fugaz que torna difícil a missão de encontrá-la no meio do mar de rostos borrados como incógnitas. Não há um rastro do prefeito, tampouco. Estou quase me rendendo à derrota, cansada de rodar sem rumo pela propriedade, em busca de migalhas de informação a respeito do paradeiro de ambos, quando a resposta me derruba com a intensidade de dois pares de olhos me perscrutando através da multidão. Se antes me sinto acalentada pela presença de desconhecidos e a possibilidade de me manter na surdina, a sensação de ocupar a ribalta dos holofotes não me escapa. É como se todos os poros do meu corpo fossem aquecidos pela intensidade daqueles olhares, tornando-me novamente perceptível às retinas caçadoras e à explosão de vida ao meu redor. Se antes me sentia abafada pelo meu próprio casulo de independência e desapego, agora sou engolfada pelo calor da empatia da população e do vibrar animado de seus corpos e vozes.

- Olha, a pastora. - James sorri de forma provocante em minha direção, dando-me um aceno discreto enquanto não hesita em se aproximar. Eu trago o ar fortemente, rezando para todos os santos de Anne para que eu possa sobreviver ao seu olhar sugestivo sem ameaçar estapeá-lo. Santo Antônio dos Ovários Intactos, Nossa Senhora Padroeira das Almas Desesperadas, Santo Agostinho da Paciência Inabalável, ou seja lá qual for, me ajudem! Eu estou perdida. - E aí, bonita? Como vão os esporos?

- Olá, Gonzalez. - eu me limito a ignorá-lo, virando-me em direção ao moreno que me avalia com diversão. - Você viu a minha avó?

- Hola, Liv. - Gonzalez me cumprimenta com seu sorriso enviesado. Seu sotaque é engraçado, é como se ele engolisse as palavras; de certa forma, aquilo soa como se ele dissesse abafadamente "hô-la-li". - Desculpe, princesa, estou de mãos atadas nessa história.

- Nossa, bonita, me sinto tocado. Pensei que havíamos passado da fase em que você reprime seu amor por mim. Onde está sua gratidão desesperada, sua humildade tocante? Afinal, eu salvei sua vida. - ele pisca, incitando uma careta minha de desgosto. Assim que vê minha reação, ele inclina-se em minha direção para sussurrar: - Incontáveis vezes.

- Não seja idiota. Foi só uma! - eu rebato, empurrando-o para longe. - E eu poderia ter saído andando! O carro estava há, tipo, 10 km/h! Você que quis manter o complexo de falso herói...

- E funcionou, não foi? - seus lábios estreitam o sorriso rasgado, acompanhando a malícia no seu tom de voz.

Eu rolo meus olhos, cansada de suas insinuações.

- Vocês a viram ou não?

- Se você fosse um pouco mais delicada, eu poderia... - ele começa, mas eu o interrompo.

- Sim ou não, Carter? - questiono categoricamente.

- Primeiramente, se você tentasse o termo "galante", "herói" ou até mesmo "soberano detentor de todo o saber"... - ele franze o cenho ao ver minha irritação nítida. - Não? Nem ao menos um "por favor, Carter"? - eu ergo minha sobrancelha e ele tosse audivelmente. - Acho que não há muito o que eu possa fazer por você, não é?

- Por favor. - eu testo o gosto da palavra nos meus lábios com o sentimento de derrota. - Não estou nem um pouco afim de embarcar nessa demonstração de vocês de "Dupla Implacável", apenas me digam onde ela está.

- Doeu? Não foi tão difícil assim, não é? - ele zomba.

- Só moralmente, Carter. - eu cruzo os braços com raiva.

- Ela está no primeiro andar com o prefeito. - ele responde, ainda com a oscilação de humor em sua voz aveludada.

Eu dou as costas para os dois, ignorando suas gracinhas e me direcionando à escadaria.

Eu me encaminho morosamente pelo corredor do primeiro andar, arrastando as passadas numa tentativa de adiar o inevitável, enquanto me vejo inebriada pelo aspecto luxuoso dos cômodos adjacentes que trespasso. Sei que parece loucura me sentir assim, mas não quero presenciar a expressão de desespero evidente no rosto de Marien assim que ela descobrir mais uma das armadilhas de Daniel. Temo que ela seja capaz de sair, empunhando o scarpin vermelho pela casa, preparada para arrastar Danny pelas orelhas. Mas se há alguém que é equiparável à toda a energia elétrica de Marien, esse alguém é Daniel Fields. Com toda a sua genialidade macabra e seu arsenal de tramóias, Danny é o pesadelo lívido da consciência policial e justiceira de Marien, que tenta a todo custo manter o garoto arteiro nos eixos. Não preciso mencionar que essa é uma missão que se entrega irrevogavelmente ao gostinho azedo da falha. Danny é como se fosse sua nêmesis. Embora sejam duas forças totalmente distintas, que constantemente entram em atrito pelos ideais contraditórios - Marien por seu senso do certo, Danny pela sua inclinação à catástrofe -, ambos são tão diferentes que chegam a ser iguais. Mesmo que neguem, ambos possuem um gênio forte que acaba intensificando a guerra constante entre os dois. Sorrio com o pensamento; dois polos iguais tendem a repelir um ao outro.

Assim que alcanço a sala, onde ela se escondia para debater algumas amenidades com o prefeito, bato na porta de mogno num retumbar periódico. Algumas vozes chacoalham abafadamente do outro lado, assentindo de forma distorcida para a minha entrada, e eu giro a maçaneta metálica para adentrar no recinto. Marien está parada próxima a um balcão de granito, onde o prefeito mira com um olhar vago alguns escritos, totalmente ladeado por papéis de importância desconhecida, e agita-se atenta à minha entrada. Tom Fields empoleira-se na cadeira de couro, despertado pela minha aparição súbita, e parece quase se perder na papelada indiferente que o circunda e parece engoli-lo por completo. Num gesto estático, ele balança a mão em minha direção languidamente, com o semblante pesado pelo cansaço e o olhar quase desfalecido. Marien empertiga-se em sua posição, ajeitando o vestido liso e inclinando-se na perna canhota. Sua face está travando uma batalha entre as expressões de impaciência e curiosidade, mas ela cede ao primeiro instinto quando balança a mão destra apressadamente para me instigar a falar.

- O que foi, Liv? - ela questiona sem preâmbulos.

Agora que estou parada na sua frente, penso no que eu deveria reportar. Seria melhor amenizar a situação ou contar tudo de uma vez?

- Danny explodiu a cozinha. - digo, mas logo me amaldiçôo pelo uso das palavras. - Quero dizer, explodir é uma palavra forte. Ele soltou algumas bombinhas, que explodiram em algumas panelas aleatórias, mas nada muito grave. Só precisaremos cancelar o creme de frango.

- O que? - Thomas solta um gritinho agudo. - Ele fez o que? Mas que porra!

- E explodiu o pé do chefe. Anne teve que implorar muito para ele não fugir da cozinha e jogar tudo para o alto. - continuo, mas dessa vez estou sorrindo.

- Esse garoto é um gênio do mal! - Marien conspira, mas logo repara o erro e se desculpa diante do prefeito. Ele ignora, talvez ruminando mentalmente o quanto ela estava certa a respeito do seu filho. - Com várias bombinhas e uma ótima oportunidade! Aposto que não plantou as bombas apenas na cozinha, deve ter planejado uma noite explosiva para todos os convidados.

- Quando eu penso que a vida está finalmente se normalizando, meu filho aparece pra provar que normalidade não é um luxo que estamos permitidos a desfrutar. - ele resmunga, esfregando o cenho franzido. - Vigiem o garoto. Do modo que o conheço, provavelmente ainda veremos alguma surpresa desagradável até o fim da noite.

《¤》

Danny não deu sinal de vida durante aquele curto período de tempo, mas suas artes reinaram e ganharam repercussão à medida que a noite prosseguia. Ele não só explodiu a cozinha, como soltou algumas bombinhas fedorentas nos banheiros, explodiu três das suas armas no pula-pula infantil e causou o maior estardalhaço ao deixar alguns explosivos no ponche. Houve uma explosão do líquido rosa e nenhuma testemunha saiu impune. Enquanto isso, seus rastros eram vagas impressões, sem nenhuma prova concreta que nos auxiliasse a achar o pequeno endiabrado. Sua presença era como fumaça: inconstante, imprecisa e irrastreável. Greg, James, Gonzalez, Anne, Marien e até mesmo Maddie se juntaram na odisseia para encontrar o baixinho. Suas buscas, porém, provaram-se infrutíferas. Eu já estava começando a me questionar não onde ele estava, mas sim o que ele faria a seguir. Sabe-se lá que planos hediondos rondam a cabecinha daquele aspirante à maldade.

Por um momento, recobrada das preocupações, deixo-me observar o cenário que se desenvolve ao meu redor, cruzando os braços contra os seios numa tentativa amargurada de me resguardar do frio que me embala. O céu, no alto, exibe uma abóbada estrelada atípica às minhas noites comuns de aventuras por New York. Lá até as estrelas são impessoais. Aqui, enquanto observo parada e envolta pelo manto celestial, as estrelas parecem beijar a terra. Não sei quanto tempo ele fica ali me observando, mas sinto alguém se aproximar do meu lado sorrateiramente. Com o canto do olho, assisto Harold contemplar com cumplicidade a mesma pintura viva que fica piscando em meu campo de visão e que tanto me fascina.

- As pessoas tendem a se apaixonar nesse festival, Liv. - ele murmura num tom vago, como se estivesse inebriado pelas sensações que o cercavam durante aquele ínfimo momento de reflexão.

- Bem, acho que você está errado. Estou totalmente imune à esse efeito.

Harold ri baixinho; sua risada reverbera pelo espaço, rouca e cheia de segredo, arrastando-se como uma repreensão divertida. Há um certo brilho no seu olhar, algo que torna-se bastante difícil de assimilar através da sua expressão taciturna de quem guarda muitas respostas.

- Não falo desse tipo de amor, embora essa data tenha ficado registrada em muitas histórias de casais. - ele balança a cabeça com cumplicidade. - Há tantas formas de se apaixonar, simples e verdadeiramente. Ter aquela sensação limpa e clara de que, embora todas as coisas estejam rumando ao fracasso, há aquele único ponto que alicerça sua vida e sana suas preocupações. Aquele gostinho de certeza. De ter algo certo num monte de coisa errada. Você pode estar me olhando e pensando: Nossa, cala a boca. Esse bode velho vem pra cima de mim com um discurso totalmente incoerente enquanto tudo o que eu quero é tomar uma soda e ver os fogos. Quanta asneira, quem precisa dessa coisa de se apaixonar? Mas, ei, não estou dizendo que você vai sair por esse salão e tropeçar no amor da sua vida. Afinal, nem todo tipo de amor envolve se apaixonar perdidamente por alguém. Pra falar a verdade, todo o propósito dessa celebração não é sair por aí com a população fantasiada no maior estilo vintage... Fazemos o que fazemos por amor. E assim, por causa dessa energia, acabamos convertendo novos corações ao longo dos anos. Aos poucos, várias pessoas acabam se apaixonando pela cidade. A única coisa que eu digo é que, aqui dentro, sei que você sairá por essa porta e sentirá um click. Não do tipo de click de que você, de repente, descobre a resposta para todos os seus problemas ou o tipo de click, como uma epifania, onde você descobre que o que você estava procurando sempre esteve embaixo do seu nariz! Há, não! Embora eu esteja esperando por esse click, também. Estou falando do click, aquele lá, aquele que acontece quando menos se espera e mexe com todos os nossos conceitos: aquele tipo de click que você sente quando tudo está prestes a mudar.

- Você anda muito romântico, Harold. - brinco, tentando demonstrar com meu humor que suas palavras não me impactaram como ele gostaria. Mas, de certa forma, sinto-as trespassar por mim e ricochetear em meus pensamentos. - O que a Marien tem a dizer sobre essas suas divagações poéticas?

- Marien não aprecia minha veia artística. - ele me confessa com um ar de falsa decepção e eu sorrio minimamente. - Inclusive, não parece apreciar muita coisa minha.

- Minha avó é uma pessoa difícil. Genética e essas coisas.

Ele ri.

- Vocês estão procurando o Danny, não é?

Afirmo com um aceno, ainda admirada pela vista.

- Você o viu?

- Digamos que um certo borrão vermelho passou por debaixo da minha mesa, se escondeu e saiu correndo até a cabana dos fogos.

- A cabana dos fogos?! - entoo alarmada, correndo os olhos pela propriedade. Lá no canto mais afastado, como se estivesse sendo ignorada em perfeito repouso, a estrutura desgastada de madeira chama minha atenção.

Harold percebe minha agitação, pois não faz nenhum comentário ao me ver correndo desesperada pelos jardins em direção a cabana. Eu retiro meus saltos aos tropeços, amaldiçoando o trabalho que Danny Fields exerce na minha vida corriqueira. Não faz nem um dia, mas já quero pedir devolução: A criança veio com defeito!

Ai meu Deus! E se ele explodir a cabana e se machucar?

Eu apresso o passo, visivelmente consternada, e esbarro numa estrutura sólida. James Carter coloca os braços nos meus ombros para me apoiar, descendo a mão pela minha nuca para erguer meu rosto em sua direção. Ele sente o pânico refletido em meus olhos verdes, pois comprime os lábios numa fina linha e preocupada.

- O que houve? - ele pergunta, vasculhando minha expressão com uma cautela tocante. - Fale comigo, Liv.

- O Danny está na cabana dos fogos! James, e se ele explodir algo lá? - eu quase choro, e ele arroxa seu aperto nos meus ombros para me passar segurança. Ele fecha seus olhos rapidamente, como se pensasse nas possibilidades, e os abre com resolução, xingando baixinho. Ele me puxa pelo braço e saímos em disparada até a estrutura de madeira
.
Quando chegamos lá, há apenas o silêncio sepulcral que é abafado pelos sons empolgados da festa que se desenrola nas proximidades. Nós caminhamos até a porta e batemos antes de entrar de supetão.

- Danny? Saia de onde estiver! Aqui é perigoso! - James vocifera. - Saia logo daí ou farei você engraxar todos os meus sapatos!

- Achamos ele! - Anne grita do lado de fora. - Podem sair!

Nós nos entreolhamos antes de sair, mortalmente aliviados pelo fim da busca, mas, antes de atingirmos a soleira da porta, consigo escutar um barulho inconfundível. O cheiro repentino de pólvora confirma minhas suspeitas e alerta os sentidos de James, fazendo-o me puxar vertiginosamente para fora do casebre sem teto, jogando-nos de qualquer jeito contra a grama fofa e úmida do jardim. Nossos corpos chocam-se contra o chão macio, sujando-nos com a areia molhada. Eu pisco em choque até vislumbrar a primeira explosão. A bombinha explode dentro da cabana, provavelmente próxima aos fogos, porque, uma vez que o barulho estrala em aviso, a casa explode num show de luzes inesperadas.

Greg e Anne estavam com Danny, segurando-o pelo braço, e encaram a cena com as expressões embasbacadas.

- Acho que podemos adicionar isso como mais uma vez, das inúmeras, em que eu salvei sua vida. - ele murmura próximo ao meu ouvido. - Não se acostume muito. Você vai acabar criando muita mordomia.

- Obrigada. - encontro voz para dizer.

James e eu estamos muito próximos, totalmente aturdidos; seja pela queda, pela proximidade ou pela queima de fogos. A multidão congestionada não parece ciente do que acabou de acontecer, porque desencadeiam uma série de vivas e exclamações, comemorando o dia e a festividade, celebrando a vida, as famílias e as oportunidades. Por um momento, esqueço tudo. Minha mente se apaga, reseta, torna-se branca. Não há mais New York, sonhos colocados em espera, falência, confusões, porcos soltos, bombas explosivas, crianças rebeldes. Há apenas aquele momento, que espreguiça-se infinitamente na minha visão, cada sequência de cores bem candenciadas, cada flash capturado pelas minhas retinas famintas, cada transformação de pirotecnia gravada em minha memória. Estamos os cinco ali, absorvendo admirados a paisagem e a atmosfera aconchegante, sem pensar nas consequências, nos problemas ou poréns. E é ali que eu entendo o que Harold disse, porque é esse o momento do click. Vem tão lentamente que não percebo até que se proste diante de mim. É nesse momento que sinto a leve transição. A transição de que a vida não anda pra trás, que aquilo é o adiante e que nada, jamais, a partir daquele crepitar dos fogos, vai voltar a ser como era antes.

Click.

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