Capítulo 3 - O Dia dos Fundadores. PARTE 1

O sol nasce no oriente, iluminando o quarto, com uma variação de laranja e amarelo, através das frestas da janela. Ainda é cedo. O astro incandescente se espreguiça no horizonte, esperando alcançar o máximo do dia e ocupar seu espaço no topo do céu azul. O galo está terminando seu último carcarejo, para finalizar seu trabalho diário, e os pássaros compõem um coral ao fundo, deixando o começo do dia incrivelmente barulhento e inconveniente. No primeiro piso, dá para ouvir-se claramente o bater de panelas e talheres. Eu bufo, enrolada nos lençóis dos pés a cabeça, como uma múmia impregnada de suor - descobri que morrer de calor é mais eficiente do que ser comida por muriçocas -, totalmente irritada por ser forçada a aguentar esse fuso horário interiorano onde as pessoas acordam às seis da manhã. Meu humor matinal não é dos melhores e ainda é intensificado pela experiência de cão que eu tive que aguentar no dia anterior. Vamos concordar que passar o dia presa com James Carter, com várias tentativas de homicídio envolvidas no processo, não despertou meu melhor lado rural. Quando chegou o poente, Marien invadiu a prisão e nos soltou com uma crise de risos, dizendo que esperava que eu não levasse tudo tão a sério. Aparentemente, seu senso de humor podia aguentar uma tarde toda de validade. Uma tarde longa, hostil e cansativa. A pior parte foi relatar o ocorrido, com o toque ideal de drama, ao meu pai, que nem sequer piscou durante todo o processo. Um grito ensandecido, como "VOCÊ PRENDEU A MINHA FILHA COM UM CARA QUE A ATROPELOU?", ou pelo menos o melhor olhar indignado é pedir demais? Sua única reação foi um "como eu nunca pensei nisso?", o que apenas me deixou mais irritada durante a janta. Conclusão final: A falta de empatia corre como gelo nas veias de Marien e Henry Harper.

Eu levanto com a dignidade que ainda me resta, envolvendo meu corpo com o lençol, como se fosse um manto. Não ouso me olhar no espelho; eu sei que meu cabelo deve estar espalhado em sete direções diferentes, com fios loiros e azuis misturados numa grande desordem capilar, e meus olhos devem ter bolsas violáceas abaixo da região ocular, ressaltando meu desgaste emocional pelos últimos acontecimentos. Calço minhas pantufas do Mickey, ajeito minha camisola de bolinha e desço as escadas com uma cara de quem está caminhando pra um enterro (o que não deixa de ser verdade, já que tudo de bom que restava em mim morreu ao ser torturada, por horas e horas, com as provocações do homem mais insolente da cidade).

O cheiro de ovos e panquecas preenche minhas narinas, com um sentimento de fome devastadora, assim que adentro a cozinha. Marien - ou pelo menos eu acho que é ela - está disposta na boca do fogão, remexendo a gema enquanto espera a panqueca estar pronta, alternando sua atenção entre duas bocas do fogão. Ela parece ter saído do período colonial. Está trajando um vestido azul feito em seda com uma variedade de babados, que tem início nos cotovelos e no final da saia. A parte de cima se resume em um corpete, coberto com um espartilho, e a saia, feita com camadas de tecido drapeado, revela, com um ligeiro corte no tecido, uma segunda saia mais leve. Seu cabelo ruivo está preso num coque rarefeito pela escassa quantidade de fios. Ela parece elegante e desconfortável.

- O que você está vestindo? - pergunto com o tom estranho.

- A fantasia para a o Dia dos Fundadores de hoje. - ela responde sem se virar. Mexe mais um pouco na frigideira e despeja o conteúdo no prato mais próximo. Assim que termina, desliga o fogão e vira-se em minha direção. Está segurando um pano de prato, mas, assim que me vê, joga-o para o alto com um grito de susto. - O que diabos aconteceu com você?

- Acabei de acordar. - respondo, tocando meu cabelo sem entender seu susto.

- Parece que um trator passou por cima de você!

- É assim que eu me sinto. - digo enfaticamente, pegando uma porção de ovos com uma colherada. - Nem todo mundo acorda parecendo a Angelina Jolie.

Eu sento-me à mesa de jantar, cobrindo minha cabeça com o lençol numa espécie de capuz desajeitado, encolhendo-me com o meu brilho ranzinza matinal.

- Bom dia! - meu pai cantarola da soleira da porta, ainda de pijama. Pelo menos eu não sou a única desleixada a essa hora da manhã. - Que dia lindo!

Eu tampo meus ouvidos com desgosto.

- Por favor, poupem-me da dose gratuita de felicidade tão cedo do dia. - espremo meu rosto com as mãos. - Palavras positivas e empolgadas só são permitidas a partir do meio dia.

Ele passa por mim e esfrega o topo da minha cabeça por cima do pano.

- Bom dia para você também, senhorita mórbida. - ele diz com um contentamento irritante. - É impressão minha ou os pássaros estão cantando mais alto hoje?

- Pelo amor de Deus, Henry, desembuche logo. - vovó reclama, ameaçando-o com uma colher de pau. - Toda essa sua falsa excitação está me causando arrepios.

- Vocês duas acordaram pelo avesso? - ele pergunta, abocanhando uma panqueca. - Por favor, acalmem-se para as novidades. Uma pausa dramática. - ele anuncia, parando de falar momentaneamente, deixando claro que aquela pausa era necessária para o efeito desejado. Rolo os olhos. Papai só volta a falar quando Marien ameaça bater a notícia para fora dele com a colher de pau. - Vocês são tão estraga-prazer. - reclama, ajeitando sua postura de forma arrogante. - Adivinhem quem foi contratado pela firma de advocacia da cidade?

- Michael Davis? - Marien lança no ar de forma pensativa. - George Stevenson? Rebecca Parker?

- Você só está soltando nomes aleatórios, vovó. - rio baixinho. Meu pai não merece a família que tem. - Parabéns, papai! - parabenizo-o, erguendo-me sobre as pontas dos pés para dar um beijo em sua face orgulhosa.

- Nem tanto. Essas pessoas existem de verdade. - vovó confabula, virando-se para dar um abraço apertado nele. - Quando soube da notícia?

- Agora mesmo! - papai narra. - Ligaram-me para dar o recado há poucos minutos. Aparentemente a firma ficou encantada com as minhas credenciais e viram que só havia uma pessoa para o cargo.

Meu Deus, que ser humano com compaixão ousaria ligar para alguém a essa hora da manhã? As pessoas dessa cidade não tem nenhum senso do espaço tempo. Com esse pensamento, enrolo-me no meu lençol mais uma vez, amaldiçoando a vida rural e suas regalias.

- Agora você está sendo exagerado. - Marien fala com ironia. - Você dificilmente pode chamar aquilo de firma. Só existem dois sócios, e o caso mais apimentado que vocês podem chegar a pegar deve ser uma briga pela custódia de um cachorro. As coisas aqui em Leavenworth são muito sossegadas.

Eu caio na gargalhada.

- Obrigada pelo apoio, mãe. - papai reclama com um muxoxo. - Sempre bom saber que você vai estar presente para rir da minha cara quando eu precisar.

- Disponha, querido! - ela dá umas tapinhas em seus ombros de forma conciliadora. Em seguida, bate palmas e nos olha com expectativa. Papai e eu nos entreolhamos desconfiados. Eu enrolada num monte de panos, ele com a boca a meio passo de uma garfada de ovos.

- O que? - perguntamos em uníssono.

- Suas fantasias estão em seus quartos! - ela proclama empolgada, dando um giro pelo cômodo com seu vestido pomposo. - Aprontem-se para o festival do Dia dos Fundadores!

- Mas agora? O festival só começa daqui a duas horas. - papai reclama.

- Não estou muito empolgada para sair por aí me equilibrando num aro de metal. - adiciono.

- Vamos colocar as coisas em perspectiva: nós vamos incorporar o dia que a cidade foi fundada, então eu acho bom que vocês estejam prontos daqui à uma hora, sentindo-se como se tivessem acabado de chegar do século XIX para cá. - Marien cerra os olhos e nos encara com uma expressão assustadora. - Estamos entendidos? - nós damos um aceno tenso com a cabeça. - Ótimo! E você, dona Liviana... - vovó aponta o dedo na minha cara. - Esconda essas mechas azuis! Não existia tinta pra cabelo em 1800.

~ - ~

(N.A.: link do vestido = http://content.internetvideoarchive.com/content/photos/8447/918148_007_1.jpg).

Uma hora depois, após várias severas ameaças, encontro-me rente ao espelho ajustando o vestido. O tecido é de chita, com mangas três quartos, com um espartilho desgastado prendendo a anágua por cima do pano. A roupa tem uma cor marrom desbotada e há alguns botões pretos no busto, dando uma diferenciada da imagem de pobreza acentuada que o traje transmite. Para complementar a aparência de "garota camponesa que não tem onde cair morta" há um grande chapéu de palha com um laço preso ao queixo, onde escondo meus fios azuis rebeldes. Eu encaro meu reflexo com desgosto. Estou quase cogitando me esconder novamente por baixo das cobertas quentes da minha cama quando papai grita meu nome do primeiro andar. Isso é humilhação pública, pura e unicamente. Sem mais outra espiada no espelho sobre o ombro, desço as escadas a contragosto, pisando fortemente contra o assoalho de madeira. Meu pai e Marien me aguardam no batente da escada com as expressões impacientes. Ela finalizou seu coque clássico e colocou um chapéu de palha elegante para completar seu visual de duquesa neomoderna. Eu olho para ela com conformidade, dando uma olhada cabisbaixa para meu vestido carcomido pelas traças. Como o universo é justo! Papai está levemente mais informal, com sua calça de linho e o casaco sem forro. Sobre essa vestimenta casual, há um colete de algodão, enquanto em sua cabeça descansa uma pequena boina leve e fina. Ambos me encaram abismados, as expressões nitidamente assombradas com o meu visual "light". Em seguida, como se não pudessem engolir o riso que se formava em suas gargantas, desatam a chorar de tanto rir, embolando-se um contra o outro em busca de apoio, para tentarem sustentarem-se em pé, enquanto procuram o ar que falta em seus pulmões. Que show de comédia gratuito eu sou!

- Lord Henry, lady Marien. - faço uma reverência classuda, recusando-me a subir lá para cima para retirar todo esse pano calorento que agoura minha alma e minha dignidade. Engulo os xingamentos que minha língua se contorce para soltar e dou um sorriso falso. - É sempre gratificante ser útil para o vosso entretenimento.

- E que entretenimento, viu! - vovó solta uma gargalhada espalhafatosa e eu faço uma careta.

- Não sei como você entrou nessa coisa pré-histórica sem imaginar a quantidade de fungos que pode existir na composição desse vestido. - Papai comentou.

- Obrigada. - digo paranoica. - Se eu não pensei antes, minha mente se abriu com inúmeras possibilidades agora.

Eu me arrepio um pouco, alcançando o álcool e gel no bolso traseiro do short que uso por baixo de quilos e quilos de pano e metal.

- Vamos, nossa carruagem nos aguarda! - Marien diz de modo teatral.

É claro que por "carruagem" ela quis dizer Bernie e por "aguardar" ela quis dizer "esperar que você lute com o aro do vestido para conseguir enfiar-se dentro do espaço mínimo do veículo, sem rasgar o tecido ou cair de cabeça no freio de mão".

~ - ~

Devo dar os créditos à Leavenworth: a cidade soube capturar o ar neoclassicista do festival. A enorme praça central havia sido completamente alterada do dia para a noite. O aspecto romancista fazia presença nos enfeites e atavios que adornavam a rua com certa tendência medieval. A maior parte das aparências era consolidada pelos trajes de época que os moradores usavam, incorporando com alma o tempo remoto de dois séculos atrás, e as pequenas barracas simbólicas serviam para entreter os turistas com brincadeiras e aperitivos diversos. Mesmo o cheiro é algo intrínseco: uma mistura de palha e diversas comidas mescladas. O céu está repleto com balões festivos e a cacofonia presente reflete a empolgação local pela celebração. Eu observo enquanto algumas crianças entusiasmadas correm ao meu redor em perseguição a alguns balões fujões. Olho com diversão para meu pai ao perceber que essa é apenas uma minúscula parte do local que sedeia a comemoração.

- O que devemos fazer primeiro? - Marien murmura empolgada, não conseguindo se controlar. - Que comidas provaremos? O que devemos ver?

- Eu prefiro me esconder nesse traje de pastora e sentar num local onde ninguém me veja. - respondo dando de ombros.

Ela puxa o pano do seu vestido e conduz os passos até uma barraca qualquer, tentando equilibrar-se em seu vestido. Eu olho para meu pai interrogativamente e, com um bufo desistente, sigo-a de mansinho.

- Não seja tão dramática, Liv. - papai pronuncia ao colocar as mãos nos meus ombros em sinal de apoio. - Não deixe de aproveitar o festival só porque sua roupa não está tão... Organizada como você gostaria.

- Fácil falar quando não é você que está parecendo a garota dos estábulos. - retruco, cruzando os braços com uma atitude birrenta. Ele me olha com os olhos oscilando num sorriso presunçoso e eu levanto o dedo indicador num aviso mudo de "nem ouse".

Ele ergue os braços em sinal de paz, fazendo pouco caso da minha situação.

- Só estava querendo dizer que o Dia dos Fundadores pode ser bem mais legal do que você imagina. - ele me confidencia, inclinando-se em minha direção com a mão cobrindo a boca.

- Os dois camponeses irão parar de lamentar a tragédia que são suas roupas e irão me acompanhar? - Marien anuncia num tom de arrogância. Isso tudo porque ela parece uma duquesa shakespeariana...

Ela lidera o caminho até uma tenda de madeira, com apenas um moedor de cana-de-açúcar, e inclina-se sobre a estrutura desgastada à procura do atendente. Levanta-se sobressaltada quando um Harold em trajes de época salta da bancada, com os braços carregados de cana, assustando-a de supetão.

- Ai meu Deus, seu velho abusado! - Marien grita, cobrindo o coração com as mãos, como se tentasse assegurar que ele não saísse do seu lugar por causa do susto. - Você está tentando me matar?

Harold ajeita o chapéu de linho nos cabelos grisalhos e dá um sorriso que enruga o canto dos olhos escuros.

- Milady Harper. - ele cumprimenta num tom polido e debochador. - Em que posso ser-lhe útil?

- Você sendo útil? Pouco provável... - ela alfineta com uma risada, ajeitando o chapéu de palha com superioridade. - Mas pode começar servindo-me dois copos de cana, por favor. - ela vira-se para meu pai e pergunta com um tom doce: - Henry, querido, você quer um?

- Você já não pediu dois? - questiono com o tom desconfiado.

- Sim, para mim, é claro. - ela responde como se aquilo fosse natural. - Se ele quiser, ele que peça um.

- Meus Deus, mamãe, são apenas nove horas da manhã. - papai a repreende, mas logo adiciona com um sorriso culpado: - Um para mim também, Harold.

- Muito bom ver você de novo, garoto. - Harold acena com um sorriso relaxado. - E você, pequena?

Ele vira-se em minha direção e me analisa com os olhos caçadores.

- Não, obrigada. - respondo. - Não tenho estômago pra essas coisas tão cedo da manhã.

- Você tem os olhos da sua avó. - ele avalia com uma gargalhada, apontando com o dedo em minha direção. - Mas, graças a Deus, não herdou a imprudência.

Marien retira o chapéu de palha e o encara com o semblante mortalmente irritado, mas posso ver, pelas suas maçãs rosadas, que ela está levemente corada. Ela o ataca com o chapéu, atingindo-o algumas vezes, antes de se dar por satisfeita, e o fuzila com os olhos.

- O que você quer dizer com isso, seu velho gagá? - pergunta acidamente.

Talvez eu tenha herdado o temperamento, também, adiciono mentalmente.

- Quero dizer que já sei de onde ela puxou a beleza. - ele diz perigosamente sério, com a expressão dura e imparcial.

- O q... Quer dizer... Hã... - Marien pisca momentaneamente afetada, constrangida pelo seu embaraço. - Quanto tempo leva pra moer essas canas, hein? - ela lança a pergunta, limpando um filete de suor no rosto, enquanto se apoia no batente da calçada, abanando a face quente pela vergonha.

Harold ri silenciosamente, balançando a cabeça com a cena de Marien deslocada, limpando as mãos num pedaço de pano sujo e depositando algumas toras de cana na máquina. Em seguida, olha em direção ao meu pai e inclina-se sobre a madeira.

- E então, Henry? - puxa o assunto. - O que veio fazer nesse fim de mundo? Passar uma temporada, visitar a família e aproveitar o Dia dos Fundadores, ou está aqui para estender raízes? - ele passa o pano pela bancada, para limpar alguns vestígios de cana e, então, encara meu pai profundamente. - Você sempre foi fã do Dia dos Fundadores, desde que me lembro.

- Sabe como dizem... Você pode deixar Leavenworth, mas Leavenworth nunca te deixa. - papai comenta divertido, esquivando-se do tópico do Dia dos Fundadores. Olho para ele com curiosidade. - Estou aqui para ficar, Harold. Suponho que você já tenha conhecido minha filha Liviana. - ele me empurra para frente e eu tropeço no aro de metal, quase caindo por cima da barraca, mas ele me sustenta e eu sorrio com uma cara estranha para o sujeito.

- Apenas de vista. - Harold sorri para mim. - A famosa neta de Marien Harper! Nunca pensei que viveria para ver esse momento! Não deixe esses dois te influenciarem para se juntar às suas loucuras, Liv. - ele aponta para minha avó e meu pai, que balançam a cabeça ingenuamente.

- Fale mais baixo, Harold. Não gosto da palavra com A. - vovó reclama do meu lado, amaldiçoando sua idade. Passa as mãos pelo coque clássico, como se sentisse os fios brancos ressaltando. Eu rolo meus olhos.

- Acho que estou salva desse perigo, Harold. - respondo com intimidade, apontando com o polegar para os dois.

Ele pisca para mim e vira-se para a máquina, que ainda estava moendo a estrutura da cana, pegando três copos grandes e enchendo-os com o líquido translúcido gerado. Caminha lentamente em nossa direção, entregando relutantemente os copos à Marien, com a expressão carregada de emoções. Papai tosse desconfortável e Marien abaixa os olhos constrangida.

- Espero que goste de Leavenworth, Liv. - ele adiciona, ainda sorrindo com o rosto enrugado pelo gesto.

Eu dou um pequeno dar de ombros e sigo Marien, que havia fugido dos seus sorrisos galanteadores como quem foge de um incêndio.

- Harold é um doce, não é? - faço questão de provocá-la assim que a alcanço. É difícil andar apressadamente com esse grande aro de metal me tragando, mas Marien parece deslizar pela calçada com nenhum empecilho.

- Um verdadeiro doce. - ela engole todo conteúdo da cana de uma vez, limpando o líquido que escorre pelos seus lábios. - Uma pena que tenho diabetes.

Papai dá uma gargalhada assim que ouve a última parte, logo que nos alcança, e me dá um olhar significativo para deixar essa história de lado.

- Então, o que faremos agora? - ele pergunta. - Há muito tempo para matar antes do desfile e do baile à noite...

- Baile? - pergunto. - Por que sempre sou a última a saber das coisas?

- O baile que a prefeitura dá à noite para a queima de fogos, querida. - Marien bate na testa. - Desculpe, sempre esqueço que você é uma total amadora quando se trata de Leavenworth.

- Eu vou ter que ir para um baile parecendo uma garota que limpa merda de cavalo? - tento deixar a histeria de lado, mas falho.

- Claro que não. - Marien diz horrorizada. - Nós podemos vestir roupas dessa época para o baile, fique tranquila.

- Ah, isso deixa minha alma descansar em paz. - ironizo, mas volto ao assunto principal em questão. - Certo, e o que faremos até lá?

- Bom... Se vocês não se zangarem... Quero dizer... - Marien cruza os dedos e fecha os olhos, dando pequenos saltinhos nervosos. Papai e eu nos entreolhamos; um hábito que virou frequente na presença de Marien Harper.

- O que foi que você fez dessa vez? - papai esfrega a face, com cansaço das ideias mirabolantes da ruiva lunática.

- Eu os inscrevi para ajudarem com o festival... - ela diz, entreabrindo os olhos lentamente para avaliar nossas reações. Papai e eu nos mantemos muito sóbrios, sem qualquer manifestação nas expressões lívidas.

- Que tipo de ajuda? - pergunto com delicadeza, cerrando os olhos com suspeita.

- Como eu estarei preocupada com a segurança da festa, bem... - ela tosse para manter seu tom uniforme. - Pensei que vocês poderiam ser úteis.

- Apenas diga o que teremos que fazer. - papai bufa.

- Bom, Henry, como você está familiarizado com os cavalos da fazenda, sugeri que coordenasse o passeio de cavalos. - ela diz num tom gentil e isento de culpa. Papai joga os ombros em resposta, como quem diz que esperava que fosse algo pior. Mas nem tudo está seguro... Ela vira-se para mim, já aliviada pela aprovação do meu pai, mas depara-se com um bloco indestrutível de frieza que tento estabelecer entre nós. Ela gagueja um pouco. - E você, querida, vê... Tente não enxergar apenas a ironia da situação... - ela dá umas risadinhas despretensiosas e eu a encaro com firmeza. - Eu sugeri que você cuidasse do curral. - ela estende as mãos de forma agitada. - E antes que você surte, apenas veja pelo lado bom: você não vai precisar fazer nada, apenas olhar enquanto as pessoas vão ver os animais.

Ótimo, penso com escárnio, a garota dos estábulos vai monitorar o curral.

~ - ~

- Oh, Liv, querida, você se importaria de cuidar do curral do festival? Você não teria nada mais interessante para fazer, certo? - profiro pro além, enquanto vejo alguns turistas enfileirarem-se à espera do passeio de carruagem. Viro o corpo, como se estivesse me comunicando com alguém ao meu lado. - O que, vó? Claro que não! Não seria problema algum ter que aturar o cheiro de esterco durante a tarde todinha! Não tenho nada de interessante para fazer! Ainda bem que me perguntou. É sempre bom saber que temos um diálogo forte e construtivo entre nós.

Suspiro derrotada, percebendo que não estou fazendo bem a ninguém ao dar uma dura na Marien invisível; estou apenas conservando minha imagem de lunática esquizofrênica. Caminho conformada, tomando o tempo livre que ainda me resta, antes que eu fique de vigília no curral, para explorar o festival. Há algumas barracas com comidas típicas, mas eu as ignoro. Mais à frente, por trás da praça, há uma grande igreja desgastada, com a estrutura barroca ainda intacta. Rente a ela está montado um simplório parque de diversões, para o entretenimento das crianças, além de algumas barracas com tiro ao alvo e outras atividades. Passeio entretida com alguns brinquedos, perdida entre a roda-gigante e a montanha-russa, enquanto absorvo o entusiasmo pulsante das crianças, quando algo chama a minha atenção. Uma grande multidão agrupa-se num ponto específico do parque, amontando-se entre si enquanto gritam de excitação e murmuram exclamações. O movimento, em relação ao restante do festival, gera uma balbúrdia curiosa. Sigo em direção ao congestionamento de vozes, tentando não esbarrar contra alguma criança eufórica pelas brincadeiras, acotovelando meu caminho para mais perto do palco. A maior parte do grupo é da massa feminina da cidade; mulheres jovens e idosas descabelam-se para o que quer que esteja mais à frente. Um grito uníssono assoma pelas pessoas ali presentes e eu me empurro nas pontas dos pés para verificar a razão para aquela exaltação. Assim que consigo empurrar, acotovelar e chutar meu caminho, observo a cena cômica que se segue à frente. O grande palco de madeira abriga uma bacia, coberta com suco de tomate, e, logo acima, há uma pequena tábua ligada a um alvo. Sentado em sua estrutura frágil está James Carter, com seu típico sorriso presunçoso. Ironicamente, ou não, sua roupa ainda está imaculada do ataque sórdido do líquido vermelho. Gonzalez está bem ao seu lado, com um microfone empunhado próximo aos lábios, gritando para o público frenético aos seus pés.

- Vamos, quem mais se voluntaria para derrubar James? - ele exclama teatralmente. - Quem dá mais pelo seu corpo coberto com suco de tomate? - nessa hora, é a vez do público feminino responder com um coro de "eu". - Vamos lá, ele está apodrecendo nessa tábua e está se tornando bastante arrogante por ninguém tê-lo derrubado até agora. - ele debocha, ganhando uma risada de um James limpo e convencido. - Quem se aventura a vir aqui e tirar esse sorrisinho maldito da cara desse canalha?

Assim que estou prestes a erguer a mão destra, nossos olhos se encontram. James estende o sorriso pela face, prevendo o que eu iria fazer em seguida, e balança as sobrancelhas de forma provocativa. É um desafio, eu penso. Ele não acha que eu sou capaz de derrubá-lo. Levanto a mão, dando com os ombros pra ele ver que sua arrogância não me atinge.

- Temos uma candidata por ali? - Gonzalez coloca a mão entre os olhos, semicerrando-os para enxergar melhor. Assim que sua visão se foca, ele me vê e solta uma risada. - Senhoras e senhores, isso acaba de ficar interessante! Aproxime-se, Liv! - ele gesticula e eu diminuo a distância entre nós. Ele me entrega quatro tomates podres e inclina-se em minha direção. - Você sabe o que fazer?

Eu confirmo com um aceno mudo, apanhando os quatro tomates e me posicionando para um ângulo melhor.

- Não deixe ele te intimidar. - Gonzalez aconselha. - Esse bastardo tem a persuasão de um diabo!

- Seus sorrisinhos não tem nenhum efeito sobre mim. - respondo baixo o suficiente para James não ouvir. Ele sabe que isso não é de todo verdade.

James coloca as mãos atrás do pescoço numa posição relaxada, como se estivesse despreocupado. Ele me encara e pisca um olho.

- Desculpe, milady! - ele declara, fazendo pouco caso da minha roupa. - Eu não vi suas ovelhas perdidas!

- Engraçadinho. - falo afetadamente, simulando uma série de "há" com pouco caso. Aprumo minha mira e me preparo para o primeiro disparo. - Vamos ver se você ri disso.

Eu lanço o primeiro tomate, que corta o ar e o acerta em pleno torso, banhando sua camisa de linho branca com um líquido cor-de-sangue. Ele olha pra baixo com surpresa, mas recupera-se rapidamente do ataque.

- Nada mal, bonita, mas você sabe que o propósito do jogo é me derrubar na grande e temerosa bacia, né? - ele me provoca, balançando as sobrancelhas respingadas com tomate.

Eu jogo outro tomate para calar a sua boca, acertando-o novamente no peito rígido.

- Impressionante, realmente! - ele bate palmas. - Mas parece que sua mira não é tão efetiva quanto seus tapas.

- Eu só estava me divertindo às suas custas. - respondo com um ar inocente. - E quem disse que eu estava mirando no alvo?

Dou uma piscadela atrevida em sua direção e ele me encara embasbacado enquanto, simultaneamente, golpeio um tomate contra o alvo circular que o mantinha erguido. Sua expressão, pela primeira vez, altera-se da máscara arrogante para uma feição de choque genuíno. O grito de surpresa dele é silenciado pela ovação da multidão. Eu assisto James Carter chocar-se contra a bacia repleta de suco de tomate e rio triunfante. Ele ergue-se contrariado, com as roupas salpintadas com tomate e a pele lambuzada com a substância vermelha pegajosa. Gonzalez dá um grito prazeroso e agarra o microfone com histeria.

- Dios mio! É um marco histórico! - ele declara com a voz clara. -James Carter foi derrubado! Repito! James Carter foi derrubado!

Eu estou cantando a vitória silenciosamente enquanto o admiro, com um prazer malicioso, passar a mão pela face suja de suco vermelho, encarando-me através da multidão com os olhos negros munidos de uma emoção que não consigo decifrar. Lentamente, como se estivesse se recusando prontamente a ceder a esse lado, seus lábios se espreguiçam num sorriso de deboche. Há um brilho perigoso no seu olhar que me traga completamente. Acontece muito rápido: é como se houvesse muitas verdades mergulhadas no negrume incessante de seus olhos, como se eu não conseguisse evitar ser engolfada pela correnteza que é a presença de James, mas, antes mesmo que eu notasse que estava me afogando, a realidade ressurge para me fazer emergir desse momento ínfimo.

- Acho que devo me preocupar com sua mira agora que estou tão perto. - uma voz murmura tão próxima que eu salto com a surpresa. - Mas pensei, "bem, ela não vai ser tão rancorosa a ponto de lançar tomates a esmo só porque tive que lhe dar um vestido ruim", então decidi vir cumprimentar.

Viro-me sobressaltada, deparando-me com os olhos claros e expressivos de Greg, que balança os cachos dourados em minha direção de forma despretensiosa. Ao contrário de James, não há um traço de arrogância em seu gesto.

- Acho que você não deveria ser tão descuidado ao seguir seu primeiro instinto. - comento, deixando claro que sua pequena façanha com meu vestido não seria deixada de lado. - Até onde vejo, ainda estou armada com um tomate e você está visivelmente desprotegido. Sou uma garota com motivo e oportunidade.

- Você não pode ser tão vingativa. - Greg sorri de forma vacilante.

- É um vestido horrível. - pontuo pausadamente, dando uma voltinha para ele tomar todas as perspectivas do meu argumento. - Então acho que meu temperamento vingativo pode se estender por algum tempo.

- Acho que agora eu estou suando frio. - ele me confidencia, passando a mão pela testa de forma urgente. Então, inclina-se em minha direção com o mesmo sorriso clássico que esbanjou para Marien no dia anterior: a famosa expressão capaz de derreter corações suscetíveis a saltos emocionais fortes. - Não teria como você reconsiderar essa posição ao meu respeito, milady?

- Pensarei no seu caso, sir. - respondo com uma reverência zombeteira.

Assim que me recomponho, sinto algo passar ao meu lado como um borrão, embrenhando-se em minha saia longa e empoeirada. Assim que a pequena criatura parece ser afetada pela população em proliferação de ácaros que reside na minha roupa, ele começa a tossir em voz alta e a se desvencilhar de mim, fazendo com que eu perdesse o equilíbrio momentaneamente. Enquanto eu luto com as minhas pernas, o pequeno desengonçado lança-se contra Greg e dá um gritinho de êxtase.

- Greeeeeeeeeeeeeeeg! - o sujeito solta com uma voz infantil, lançando-se contra os braços do loiro. É uma bolinha ruiva cheia de adrenalina, que passa a pular descontroladamente no colo do amigo. - Anne não quer me deixar ir à montanha russa!

- Danny! - Greg anuncia surpreso ao ter que suportar o pequeno peso extra. - Onde está Anne? Você se perdeu de novo?

- Anne está ocupada... - Danny comenta, dando de ombros, com um rosto retorcido numa cara de maldade pura, enquanto arroxa o pescoço de Greg. - Eu estava saindo do carrossel quando ela ficou presa, então eu vim logo na frente porque não queria pegar fila...

Eu olho desconfiada para a sutileza do garoto. Assim que ele termina seu relato, a multidão se abre para uma Anne furiosa marchar em nossa direção. Mesmo sem seu uniforme de garçonete e todo o aspecto medieval que a compõe, é fácil reconhecer a garota que conheci há menos de um dia. Entretanto, não há nenhum traço da menina relaxada e despojada marcando presença em seu semblante; de fato, sua face resume-se a uma máscara de ódio mortal. Seus olhos dardejam impaciência para o pequeno garoto, que se encolhe com a visão do tornado que parece estar prestes a arrastá-lo, quando ela faz menção de querer sacudi-lo.

- Seu capetinha enrustido! - Anne pragueja, puxando-o pela lapela da camisa. - Você sabe por quanto tempo eu fiquei entalada naquela carruagem enferrujada por sua causa?

- Anne, ele é só uma criança. - Greg protesta, tomando a dianteira em defesa do garoto.

- Criança? Ele é o projeto do anticristo! - Anne berra. - E faria jus de um bom corretivo se você não viesse sempre ao seu resgate!

- Você não quis ir à montanha russa comigo! - ele pisa firme, cruzando os braços.

- E isso lá é motivo para você surtar como um Minion e sair saltitando parque afora? - Anne rebate sem consideração pela sua carinha de falso arrependimento.

- Greg, Anne está sendo maldosa. - ele puxa a manga bufante do loiro.

- Anne, deixe o Danny em paz. Ele só quer se divertir, que mal há nisso?

- Você não disse isso... - Anne surta. - Ah, você não disse isso mesmo! - ela sai caminhando nervosamente de um lado a outro, remexendo a cabeça de forma descontrolada. - VOCÊ NÃO DISSE ISSO, GREGORY. - Ela aponta o indicador na face dele, aparentando o mínimo ar de loucura. - Que mal há nisso? QUE MAL HÁ NISSO, GREGORY? Vejamos... Creio que não há nenhum mal em seguir essa pequena visão endiabrada a manhã inteira, sofrendo leves puxões de cabelo, cuspidas e respostas mal criadas. Realmente. Seria um comportamento esperado de uma criança de oito anos, se essa mesma criança não tivesse te empurrado em cima de uma bosta de cavalo para subir pela sua cabeça ao tomar impulso pra montar numa égua parruda. Mas isso pode ser considerado apenas um acontecimento azarento. Você poderia até rir disso no futuro! Mas você não vê, Gregory, como esse pequeno projeto do satã te olha como se tivesse planejado a próxima maldade a cada 15 minutos. E quem sempre é a vítima de seus ataques? QUEM?

- Jesus, se acalme, você está soando um pouco perturbada. - Greg sussurra.

- Mamãe disse para ficarmos de olho nela porque ela não tomou o remédio dela hoje. - Danny sussurra baixinho para nós dois, como se estivesse realmente preocupado.

- EU ACHO BOM QUE EU ESTEJA SOANDO PERTURBADA! - Anne dá um grito escandaloso. - Vê o que esse pestinha está fazendo? Eu não tomo remédios, Danny, pare de espalhar calúnias ao meu respeito! - então, como se recuperasse a compostura, ela me olha e sorri. - Liv, a mais nova causadora de transtorno da cidade! Oi!

Eu sorrio em resposta.

- Eu quero ir na montanha russa! - Danny pisa firmemente, cruzando os braços pequenos.

- Pelo amor de Deus! - Greg suspira audivelmente. - Tudo bem, eu te levo. Liv, vejo você por aí!

Eu dou um pequeno aceno enquanto observo os dois se afastarem. Anne ainda está ao meu lado, a expressão mais leve e relaxada, e ela balança os cachos ruivos, soltando o cabelo. Seus olhos também acompanham os dois garotos se afastando com uma emoção difícil de decifrar. Fico em silêncio ao seu lado, com medo de cruzar o momento em que ela se perdeu nos pensamentos.

- Ele parece gostar mais de Greg do que de mim, embora eu que seja sua irmã. Mas eu o entendo, Greg é tão calmo e carismático... - ela comenta como se viajasse em lembranças, o olhar vago e distante acompanhando suas palavras. Então ela balança a cabeça como se acordasse de um transe e ri. - E eu sou essa pilha de nervos que explode com uma provocação de um garoto de oito anos!

- Ele também não é uma criança fácil. Dá para notar.

Ela ri como quem concorda, e nós passamos o resto do meu tempo livre vagando sem destino aparente enquanto falamos sobre tudo e nada.

~ - ~

Nunca imagine que poderia me encontrar num cenário assim. Quero dizer, corta essa última parte. Correção: Nunca sonhei que precisaria estar em uma situação assim. As galochas imundas com lama, o cheiro forte de esterco, que fazia meu nariz franzir em repúdio, e o cacarejo incessante que perturbava minha serenidade... Deus amaldiçoe a influência de Marien Harper sobre a minha existência! Se o universo, contra todas as expectativas, pudesse, ao menos uma vez, se apiedar dos infortúnios que atacam minha vida, se, pela primeira vez na história, os fios do destino se entrelaçassem com a minha vontade, tudo poderia ser diferente. Eu não estaria aqui - suja, fedorenta e extremamente irritada - enquanto forço um sorriso simpático para as crianças rebuliças que miam no meu ouvido e fazem birra toda vez que meus lábios soltam uma negação. (Não, vocês não podem pegar os pintinhos com a mão. Não, vocês não podem tocar nos porcos... Por quê? Porque são uma fonte de proliferação de germes ambulante! Observem à distância, de preferência prendendo a respiração enquanto contam até três. E não, eu não sirvo para dar informações educativas, sou apenas um rostinho bonito à paisana que faz parte do plano de fundo do curral: a pastora de ovelhas do século XIV.)

Se houvesse justiça no mundo, eu estaria tomando um latte na Quinta Avenida enquanto observo o movimento pelas ruas de New York, captando sua essência com os borrões do meu caderno. Mas o azar é o meu companheiro constante e cá estou eu, derretendo embaixo de quilos de pano empoeirado, sentindo todo meu rosto derreter na estufa formada pelo meu chapéu de palha, enquanto encosto-me a uma cadeira improvisada para fiscalizar o movimento. O curral é um pequeno arado de madeira, com alguns poucos animais dispostos: espécimes de porcos, galinhas, vacas, ovelhas... Há grandes caixas de madeiras dispostas em cada extremidade, abarrotadas com misturas de rações e comidas avulsas. Eu franzo o nariz com desgosto pelo cheiro atípico de estrume e comida estragada, uma combinação nada agradável. As crianças, no entanto, parecem ignorar o odor e se aproximam de forma entusiasmada para admirar os animais, pendurando-se na cerca e saltitando agradavelmente. Sua atração favorita são os pintinhos amarelos que ciscam pelas redondezas, fazendo gracinhas e chamando a atenção das pessoas que passam.

- Ei, Liv! - ouço uma vozinha pronunciar baixinho e viro-me à sua procura. - Você é a Liv, não é?

Sinto uma mãozinha puxar firmemente o tecido drapeado do meu vestido bufante e encaro os olhinhos insistentes de Danny, que persistia a puxar minha saia com a diversão estampada na face.

- Sim, Danny? - pergunto da forma mais doce possível. - O que você quer?

- Eu queria pegar um pintinho. Posso? - ele pergunta, mas seu questionamento evapora no ar quando meus olhos se fixam num ponto em sua lateral.

Eu tento não engasgar quando o vejo se encaminhando em minha direção, evitando minha mente conspiratória a passear pela imagem do meu reflexo. O suor pingando de todos os meus poros, as botas enlameadas, o vestido pobre, o chapéu enlaçado no meu queixo, as mangas arregaçadas por causa do calor, a expressão evidente de desespero... Meu Deus, era como se houvessem aberto a porta do inferno e eu tivesse saído de lá. Eu estava tentando não hiperventilar enquanto me escondia pela estrutura inquieta de Danny, mas seus olhos maliciosos me capturaram entre a multidão. É incrível, parece até cômica a forma como nossos olhares são atraídos um para o outro. É como se houvesse uma forte corrente magnética que nos impelia naquela direção. Não é uma orientação específica, é mais como uma sensação. Mesmo num espaço abarrotado de pessoas, é quase transcendental a forma que conseguimos captar a presença um do outro. Eu não precisava olhar diretamente para o local onde ele estava para saber que ele estava ali. Eu apenas sentia e, quase inadvertidamente, meus olhos viajavam até o espaço onde sua presença poderosa se enraizava. Não digo isso de forma arrogante. É um fato; James Carter tem certo jeito de se impor às demais pessoas e, mesmo involuntariamente, a forma luminosa de sua personalidade parece atrair toda atenção. Eu movo meu olhar para longe de seu raio de alcance. Não quero dar ao seu ego mais um motivo para saltar em superioridade.

- Danny, os pintinhos podem ficar mal caso toquem neles, entende? - tento desconversar, prestando atenção no menino impaciente para não sair correndo dali naquele instante.

Eu não preciso me virar para sentir que ele está próximo. A forma como meu corpo reage à sua presença, acelerando pequenas palpitações pelo meu peito e deslizando uma descarga elétrica pela minha pele, delata sua proximidade. Eu não quero me virar. Em parte pela minha aparência desastrosa, em parte pelo medo da minha reação a ele. Não estou em condições favoráveis para me manter normal. Na primeira brecha que aparecer sou capaz de grasnar como uma gralha gasguita e fugir para debaixo da saia de Marien. Patético, eu sei. Meu comportamento se desestabiliza numa conversa com ele. Não sei ser afável ou mostrar qualquer traço da etiqueta para uma conversa socialmente tolerável. Ele desperta o pior de mim, de todas as maneiras. E eu não estou disposta a pôr meu limite à prova! Mas, quase como uma afronta, sua voz aveludada me desperta da minha luta interna:

- Agora vejo que você veio com o traje combinando com a ocasião. É bom se misturar com o trabalho, né? - ele provocou. - Achou seu rebanho perdido?

Eu não me viro a princípio. Preciso de todas as minhas forças para isso, mas forço um sorriso e giro o corpo em sua direção. Minha face está limpa, com os lábios franzidos numa tentativa falha de sorrir amigavelmente que se assemelha mais a uma careta. Não esboço uma palavra. Tenho medo dos tipos de xingamentos que possam sair do meu temperamento incontrolável. Limito-me a erguer uma sobrancelha interrogativamente, mantendo a expressão congelada de forma agradável. James sorri de forma enviesada.

- Você está com dor? - ele ri baixinho; sua gargalhada é rouca e reverbera pelos meus ouvidos como uma onda. É quase provocativa. Eu pisco duas vezes para controlar a raiva que ele me provoca.

- É um dos seus efeitos sobre mim. - rebato, cruzando os braços.

- Plural? Então eu te provoco mais coisas? - ele alarga o sorriso de deboche de forma pretensiosa. Droga! - Vamos ver... Extrema dificuldade de manter suas mãos longe de mim, atração fatal, amor reprimido e irrefreável, cobiça, malícia?

Ele ergue a sobrancelha de forma questionadora. Seus olhos negros se iluminam com provocação. Eu ergo meu queixo de forma altiva, tentando me manter imune ao seu sorriso lateral e sua tentativa frustrada de charme.

- Está mais para enxaqueca descontrolável e bruscas variações de humor... - respondo de forma evasiva.

- Você acha que essas respostas me intimidam, mas só me fascinam cada vez mais. - James murmura baixinho. Ou é isso que eu consigo assimilar de suas palavras sussurradas, perdidas pelo vento e pelo momento, antes de ele passar por mim com um olhar carregado e escapar pelo mar de pessoas comemorando e passeando desimpedidamente.

Danny ainda está ao meu lado, saltitando e gritando com agitação, e eu só percebo isso quando o sinto me empurrar de lado, fazendo-me cambalear, momentaneamente tonta. Danny é ágil e eu mal sinto seu toque até ver o que ele segura em suas duas mãos, com um sorriso travesso refletido em seus olhos azuis. Seus cabelos ruivos e sua expressão dão a ele certo ar diabólico. Uma brisa diáfana atravessa seu corpo, agitando os cachos rebeldes no rosto lívido. Suas sardas estão enrugadas com seu nariz franzido e há uma oscilação arteira em sua expressão. Que cara de quem vai aprontar, penso assustada enquanto firmo meus olhos no meu iPod esquecido e meu inseparável álcool e gel. Morosamente, tateio o bolso dos meus shorts como uma tentativa de assegurar que o surrupio dos meus artefatos é real.

- O que você está fazendo, Danny? - sussurro com cautela, como quem observa com ânsia uma cobra protelar para dar seu bote.

- Eu quero pegar nos pintinhos! - ele bate o pé de uma forma mimada e, antes que eu possa reagir, ele joga os dois objetos do outro lado do cercado. Eu assisto desesperada enquanto eles batem contra uma vaca, que muge em protesto, e ricocheteiam em lados opostos.

Eu encaro chocada a cena, quase afirmando mentalmente que é isso, aquele era o fim, jamais voltaria a ver meu iPod e meu álcool e gel novamente... Não havia um rastro de possibilidade de que eu me arriscaria a entrar naquele império de sujeira e esterco. Nem morta! Mas meus protestos parecem morrer nos pensamentos: com o fio de racionalidade que me resta, penso que talvez eu não conseguisse sobreviver à Leavenworth sem minha música e minha maior ferramenta na luta contra os germes. Enquanto disparo um olhar de pura repreensão para Danny, inspiro forte premeditando a ação a seguir. Movo-me com a agilidade de uma tartaruga, lutando a todo custo para evitar o contato que faria tudo dar errado. Meus dedos se fecham na portinhola de madeira e eu a abro com um impasse, parando na soleira para respirar a coragem que me falta. Não pense no cheiro de merda, não pense no cheiro de merda, não pense no cheiro de merda... Adiciono como um mantra em meu subconsciente, focando-me nas palavras de impacto. Consigo dar dois passos até parar subitamente, após fechar a porta atrás de mim. Encaro as três galinhas que impedem que eu prossiga. Minha respiração se acelera com o pânico e tudo ao meu redor ganha mais perspectiva: seus bicos finos e pontiagudos, suas garras afiadas e seus cacarejares ameaçadores. Estremeço, batendo uma carreira para longe de seu alcance enquanto imagino as aves correndo no meu encalço em perseguição. Chego a pular uma divisória que separa os dois espaços só para ver que elas ciscavam totalmente alheias à minha presença. Suspiro pesadamente e procuro com o olhar pelos meus objetos, apanhando-os de forma eficaz. Eu levanto e esbarro com uma vaca gorda, que mastiga capim enquanto se aproxima de mim. Sua boca está escancarada com uma gosma verde pastosa e minha atenção se foca na cena com certa repudia. Que nojo, penso em silêncio. Mas não tenho tempo de matutar a respeito da falta de higiene bovina, pois minha atenção se volta a um grito assustado de alarde, fazendo-me levantar com agitação. Assim que percebo o que aconteceu, prefiro me enterrar a sete palmos embaixo da merda. É lá que pertenço.

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