Capítulo 11 - A garota do Jornal
- Cardápio semanal: os perigos do bolo de carne. - leio a manchete do Jornal da semana passada, passando os olhos pelas reportagens adjacentes. - Time de futebol americano passa pras oitavas de finais: Sullivan rumo ao estrelato? A equipe esportiva está à procura da nova mascote para as disputas interestaduais? O que é isso?
- Acho que, para os leigos, o nome apropriado seria jornal escolar, caso não tenha percebido. - Anne murmura enquanto mastiga um pedaço oleoso de pizza.
- Ah, Anne, é um sopro de primavera a forma que você explica coisas óbvias. Obrigada pela nota de esclarecimento. Se você não percebeu meu tom ultrajado, deixe-me traduzi-lo pra você. - eu dou uma garfada no projeto de comida do meu prato, começando a entender o conteúdo que preenche a contracapa da revista. Definitivamente deve ter algum perigo naquilo. - Traduzindo literalmente a frase "o que é isso", para a linguagem padrão das entrelinhas, eu quis dizer "mas por que a inutilidade dos artigos parecem ser algo comum por aqui"?
- Ora, você não acha útil e reconfortante saber os benefícios e malefícios da cozinha requintada da escola ou o placar do último jogo? Não me diga que não é uma garota esportiva? - Anne me cutuca com o cotovelo, mas há um sorriso sacana dançando nos seus lábios.
- Não acredito que me prontifiquei a participar de um Jornal onde a maior bomba jornalística se resume a... - eu folheio o papel. - Aposentadoria precoce do professor de Álgebra.
- Veja pelo lado bom! - Anne finge ponderar por um momento, apoiando o indicador contra o queixo. Então, resoluta, solta o ar com um suspiro para admitir: - Não consigo trabalhar minha massa encefálica para ajudá-la com algum propósito cósmico sobre como isso será uma experiência boa, porque não será. Mas os créditos são válidos, né?
- Você é um raio de sol quando se trata de trabalhar algum otimismo, hein? - eu apoio minhas mãos contra o queixo, suspirando audivelmente.
Anne ainda tenta fazer alguma piadinha, mas sua voz é abafada pelo burburinho incessante do intervalo. As rodas de conversas parecem ter uma energia renovada hoje, com seus diálogos entusiasmados e exclamações eufóricas.
- Você deveria saber que um dos fatores para que o jornal só tenha besteiras é que a Madison é a editora-chefe, sabe? Ela está em tantos clubes, fazendo tanta coisa, que acaba se perdendo. Sua atenção não está focada no jornal, então qualquer coisa parece boa para ela. Se for matéria, se estiver em pauta, se chamar a atenção... Bom, aí teremos uma nova capa. Boa parte do engajamento do jornal é responsabilidade do Will, o editor-auxiliar. Além do mais, é Leavenworth. Nada interessante acontece na cidade.
- Sim, mas... Qual o propósito de colocar sua mente em algo se você não vai se entregar por completo para fazer aquela coisa dar certo?
- Você vai, Liv? Se entregar?
Sua pergunta parece carregar mais significado do que aparenta. Quando ela captura meu olhar com suas íris esverdeadas, um brilho sagaz parecer ser despertado bem no plano de fundo do seu pensamento. É uma espécie de gatilho sendo ativado na minha mente: de repente, sinto como se eu me deparasse com um cemitério das minhas interrogações mais profundas. Eu iria me entregar?
- Ei, pare de me olhar como se eu tivesse te jogado para os lobos. Eu não estava esperando uma resposta séria. - Anne ri para me tranquilizar e, então, ergue-se com a bandeja apoiada nas mãos: - Mas, se você quer minha opinião, eu acho que você deveria. Se entregar, digo.
- O que?
- Vá ao escritório da Srta. Sullivan e exija uma coluna no Jornal! Se entregue! - Anne me dá uma piscadinha amigável. - Eu sinto que a garota de New York ainda tem muito que nos contar.
***
Tudo o que minha mente processa rapidamente são pequenos flashes incoerentes. Palavras rápidas que gritam no meu cérebro e alertam meus passos para o caminho projetado. Eu não consigo atravessar a névoa que se alastra ao meu redor. Meus movimentos parecem mecanizados, impelindo-me na provável direção da minha perdição. Eu ainda não sei o que está se passando na minha mente, até que eu atinjo a porta de madeira polida. A visão da entrada de mogno faz minha percepção se aguçar pela magnitude dos meus próximos passos. Assim, com a determinação fixada nos meus ossos, eu abro a porta e atravesso o ambiente num rompante.
- Minha nossa senhora! - a senhorita Sullivan se agita com a minha entrada indelicada, jogando um pequeno globo no ar. - Harper!
Seu pequeno coque parece milimetricamente asseado e suas vestes estão formalmente fechadas até o pescoço, dando-lhe uma sobriedade que se encaixa com sua posição. Seu cenho está franzido, seja pela surpresa ou impaciência, mas ainda há a amabilidade característica da sua presença. Eu passo meus olhos pela sala impecavelmente limpa e organizada, antes de pousar meu olhar no seu rosto confuso. Antes que eu possa me perguntar o que diabos estou fazendo, começo a falar apressadamente:
- EuGostariaDeUmaColunaNoJornal. - solto as palavras de forma embaralhada, o que a faz aprofundar o junco entre suas sobrancelhas.
- Perdão?
- Eu gostaria de escrever uma coluna pro Jornal... - eu começo, já amargando essa ideia absurda.
- Ah! - ela solta um suspiro divertido, passando as mãos no rosto. - Mas isso você já tem!
- Veja bem... O Jornal é totalmente parado e eu sinto falta de uma voz que fale aos estudantes o que eles estão pensando. Uma voz que demonstre empatia. Ninguém se importa com o que servem no almoço ou se estão recrutando mascotes...
- Eu já disse que consegui uma vaga. Você tem uma coluna, Harper.
Eu engulo em seco, um tanto abismada pela maleabilidade da situação.
- Tenho? Eu entendi direito?
- Claro. Você precisa dos créditos, certo? Além do mais, não tem espaço na edição. É escrever ou escrever, Harper. Espero que você não me decepcione.
- Eu... Não vou. - digo firmemente, estranhando o quão fácil foi.
Ela ergue-se abruptamente e caminha pelas estantes, tomando uma pasta nas mãos.
- Sorte sua que uma coluna foi vaga. Você pode falar... Sobre o que quiser. Precisamos diversificar um pouco as coisas, você está certa. - Meredith discursa, passando-me a pasta. - Você tem um limite de no mínimo 500 palavras. Eu espero um esboço na minha mesa amanhã, certo? Você só precisa definir sobre o que quer falar. E precisa de um título. Uma assinatura especial, entende?
- 500 palavras. Assinatura. Falar sobre o que quiser. Certo. - eu sorrio. - Isso é sério?
- Seríssimo, Harper. - Meredith me dá um sorriso encorajador. - Amanhã na minha mesa. Se tudo der certo, semana que vem sua coluna vai ao ar.
Eu fico ali parada absorvendo a novidade, meio chocada, meio extasiada, sem saber direito onde depositar minha empolgação. Então, Meredith dá uma risada divertida e me dispensa com um gesto óbvio. Antes que eu alcance a porta, ela me interpela com um aviso:
- Liv? - ela chama, fazendo-me travar na soleira da porta.
- Sim?
- Traga-me essa voz.
***
- E o que ela disse?
É a centésima vez que Anne me pergunta, conforme me guia pelo corredor até a sala do Jornal. Não que ela faça parte da equipe; ela é só obstinada o suficiente ao tentar extrair todos os detalhes picantes da minha breve discussão com Meredith pelo trajeto, conforme me puxa com força pelo caminho. O que é o equivalente verbal às torturas medievais. Ela está se agarrando a mim com tanta avidez que já não me parece um absurdo a imagem do meu braço sendo arrancado do meu corpo, numa sequência colorida de sangue e onomatopeias.
- Eu já disse! Tenho minha própria coluna!
- Pare de falar como se fosse algo chato! - Anne me repreende com um muxoxo. - Você tem uma coluna de verdade. Isso não é ótimo? Já posso até pensar na assinatura. - ela ergue as mãos no ar, como se observasse um letreiro. - Confissões de uma nova iorquina.
- Não, Anne. - eu reprovo o título com uma careta.
- Sem problemas. Pensaremos em algo até lá. - ela murcha, mas logo se recompõe. - A garota do álcool e gel?
- Eu não consigo imaginar um cenário onde esse título seja atrativo para o público.
- Bom, minha criatividade se estende a isso. - Anne declara num tom triste. - É aqui onde nos separamos. Boa sorte!
Ela dá um puxão no meu braço e sinaliza para pararmos, estacionando fronte à sala pequena do jornal escolar. Anne ainda me dá uma cara de enterro, antes de sinalizar positivamente para eu entrar sozinha. Antes que eu atravesse o limiar entre os dois cômodos, assisto seus cabelos flamejantes desaparecerem pelos corredores infindáveis.
A primeira coisa que me atinge ao cruzar a porta é o cheiro inconfundível de papel novo. Há uma infinidade de estantes ocupando os contornos da sala, todas abarrotadas com revistas e livros diversos. No centro do espaço, uma grande mesa de debate acomoda alguns estudantes. Há quatro rapazes com armações quadradas, regados da incrível necessidade de se esconderem nos papéis que os cercam. À esquerda, uma garota asiática masca chiclete disciplinadamente, aguardando a comoção dos demais. Na ponta da mesa, situada na cadeira principal, está Madison. Seu cabelo platinado desce em ondas sobre os ombros nus, parecendo perfeito como em qualquer dia ensolarado. Seus cílios espessos de rímel piscam na minha direção de forma confusa, como se apenas agora ela tivesse processado minha presença, e o seu desconforto é firmado pelo modo que ela comprime os lábios vermelhos com repulsa.
- Pois não? - ela pronuncia na minha direção. - Está perdida?
Eu olho para trás para ver se há mais alguém naquele cômodo. Ela está falando sério?
- Aqui é a reunião do Jornal? - pergunto entediada. - Sou a nova colunista.
Todas as cabeças se viram na minha direção com um interesse repentino. Alguns tomam a displicência de me avaliarem, sem qualquer sutileza; outros apenas me aceitam com um gesto afirmativo, tomados pelo descaso da necessidade de saírem dali. O olhar de Madison, de alguma forma, parece pesar mais. É como se ela imprimisse toda sua repreensão nas próximas palavras:
- Oh, sim. - Madison concorda com desgosto. - Meredith me falou de você.
Eu faço menção de sentar, encarando sua declaração como uma aceitação relutante, mas ela ergue a mão destra para me impedir.
- Ora, não se incomode, querida. Não vamos fazer muito esforço, certo? Afinal, é tudo provisório.
- Maddie, não seja assim. - um garoto ao seu lado a repreende. - Ser tão carrancuda pode te dar rugas.
Meus olhos caem na forma que ele se posiciona desleixadamente na cadeira, munido com um sorriso debochado nos lábios. Seus cachos amadeirados refluem na testa bronzeada e seus olhos cor de avelã exprimem uma diversão ímpar. Suas pernas estão apoiadas na bancada de vidro, como se ele não pudesse se importar menos com a precedência daquela reunião, e seus dedos mexem avidamente numa bola de borracha com desinteresse. Ele percebe que é alvo da minha avaliação, o que apenas aprofunda sua presunção visível.
- Pare de ser tão descarado, William. - Madison fala com ultraje. - Quando seu aval for necessário, você pode abrir essa sua boca. De outra forma, apenas mantenha seus comentários inconvenientes para si mesmo.
- Algum dia sua amargura vai me azedar, princesa. - ele retira as pernas de cima da mesa e estrala as costas. - Felizmente, esse dia não é hoje.
- Será que podemos finalizar por hoje? - a garota asiática resmunga.
- Ah, sim. Bom, quero seus artigos semana que vem sobre o jogo desse final de semana. - Madison declara com pouco caso. - Ah, Liv, que conveniente que você já está de pé. Você pode ficar para grampear os exemplares de amanhã.
- O que? Por que eu?
- O azar de ser a garota nova. - William responde, simplesmente, erguendo-se num pulo. - Todos nós tivemos que passar pelo terrível fardo de carregar o título de novato. Chame de provação honorária.
- Eu prefiro o termo trabalho escravo. - rebato, indignada.
Antes que eu possa comentar outra objeção, todos se erguem como dessem a reunião por encerrada. Madison equilibra sua pequena bolsa Louis Vuitton no pulso e rebola até a porta com um sorrisinho divertido.
- Ainda bem que todos esclarecemos os pontos. - Madison declara para ninguém em particular, passando ao meu lado com sua melhor cara de vitória. - Tenha um bom trabalho manual, Harper. Se você fizer direito, nós podemos até cogitar alguma serventia para você.
E, com isso, ela sai porta afora trajando sua pose hirta e altiva.
***
Uma hora após meu cárcere, ainda estou cogitando enfiar minha cabeça dentro da impressora em busca de uma morte rápida e eficaz. Minha mão já está estrategicamente acoplada ao grampeador, que acabou se tornando um companheiro indissociável durante a pequena missão de grampear todos os papéis possíveis. Acho que vou acabar saindo grampeando qualquer superfície sólida quando isso tudo acabar.
As impressoras continuam seus trabalhos árduos ao imprimirem as cópias semanais do jornal, gastando sofregamente suas tintas conforme terminam as folhas. Passo meus olhos pela pequena sala mal iluminada do ambiente, averiguando a eficiência das máquinas. A luz diáfana, provinda da janela, atravessa o recinto como um fiapo de luz, iluminando o recinto com a pouca luminescência característica. As poucas cadeiras do espaço estão atravessadas na diagonal, dando espaço para as pessoas trafegarem pelas extremidades da mesa, que está completamente abarrotada de edições prontas e impressas.
Está tudo quieto. O silêncio sobrepujante só é corrompido pelo barulho constante das folhas impressas.
Eu fujo dos meus próprios pensamentos e começo a juntar algumas capas com o conteúdo da revista, grampeando e finalizando o trabalho manual. Repito o processo mais algumas vezes, antes de sentir um cheiro de queimado. A desconfiança me preenche. Eu ainda farejo o ar tolamente, sentindo-me o próprio Scooby Doo, enquanto me rastejo lentamente ao local indesejado. Antes que eu possa realmente apontar algum defeito, ouço a porta ser escancarada abertamente, o que me faz pular para o chão, escondendo-me por trás do computador. Não me perguntem o porquê desse surto vergonhoso. Chame de puro reflexo instintivo ou, se preferir, o famoso borro nas calças. A questão é: entrei em pânico. O que animais encurralados fazem em situações críticas? Eles se escondem. E eu, como uma rata acovardada, encolhi-me mais ainda contra a parede quente, assistindo conforme o casal entrava na sala, parecendo uma criminosa pega em flagrante.
Apesar da entrada abrupta, o caráter imperioso do silêncio continua a predominar na pequena sala. Adverso ao barulho da impressora, as respirações entrecortadas das duas pessoas atravessam o local como uma navalha, cortando a serenidade do ambiente. Eles resfolegam calmamente, tomando a intimidade do momento como desculpa para controlarem seus temperamentos, suspirando audivelmente como se descarregassem o peso de suas próprias consciências. Eu me encolho contra a parede, tentando desaparecer na minha própria insignificância. Evito encará-los ou inspecioná-los com afinco, temendo delatar minha presença bisbilhoteira. Mas, apesar da minha resolução em ignorar as duas pessoas, presas num momento de tensão, meus ouvidos me traem e captam o momento em que o nervosismo quebra o conforto da quietude:
- Você vai ficar me ignorando aí? - ouço uma voz familiar pronunciar. Eu poderia reconhecê-la em qualquer lugar, sob qualquer pretexto. Conheço todos os nuances dos seus tons, expressos pelos anos de convivência: seu tom manso, seu tom preocupado, seu tom zombeteiro, e mesmo o tom morno que ele utiliza especificamente comigo para expelir seus típicos discursos paternos.
A surpresa me atinge conforme eu driblo do meu pequeno esconderijo para averiguar a veracidade da situação. George Henry Harper está parado na soleira da porta, matutando internamente se é seguro dar o próximo passo, com suas feições exalando preocupação. Parece não caber em si mesmo. Seu maxilar está rígido pela tensão acumulada em sua expressão, aprofundada pelo modo que seus lábios se partem, vez ou outra, numa tentativa de verbalizar suas dúvidas. Mas toda vez que sua boca tenta manifestar qualquer sentimento palpável, ele parece engolir as palavras com um gosto amargo.
- Não me olhe assim. - a outra voz resmunga totalmente afetada. Angústia está expressa no seu tom.
Dessa vez, quase contorciono meu corpo em posições nada favoráveis para conseguir absorver aquela cena. Meredith está com o cenho franzido em descrença, o rosto afilado está corado fortemente, como se ela própria estivesse armazenando tudo dentro de si. Ela parece prestes a explodir.
- Assim como? - papai questiona, aproximando-se com cautela.
- Com esses malditos olhos de cachorro sem dono. - ela xinga, então se toca da sua imprudência com seu linguajar forte, tapando seus lábios. - Desculpe!
Ela atravessa o cômodo para longe do seu alcance, pegando as folhas impressas para grampear.
- Eu vim aqui falar com você, Meredith. Será que dá para me ouvir?
- Não... - Meredith tropeça e perde as folhas para o ar. - Desculpe. - ela ergue o indicador firmemente. - Eu quis dizer... Não! - ela enrijece a posição. - Não, não dá para ouvi-lo. Sinto muito.
Eu acho graça. A mulher é realmente péssima com xingamentos.
- O que? - papai parece ter levado um soco.
- Isso mesmo que você ouviu, senhor Harper. Não me importa se você tem algo para falar. Eu não quero ouvi-lo. E isso é o ponto final. - ela empina o nariz e engole em seco, antes de continuar: - Tudo o que trataremos daqui em diante serão assuntos totalmente destinados à objetividade profissional.
- Pare com isso, Meredith. - papai se irrita, esfregando o rosto avidamente. - Olha, eu só queria dizer para colocarmos uma pedra no passado e seguirmos em frente. Está claro que teremos que conviver daqui em diante, e eu entendo que você não se sente confortável... - ele se aproxima dela, tomando uma distância perigosa. Meredith arfa.
Então, para o meu completo choque, ela acorda para realidade e se agarra a uma revista qualquer, golpeando-a contra o tórax do meu pai.
- Pare com esse seu charme vodu! - ela o golpeia sem pena. - Quem você pensa que é com esses olhos cheios de malícia e esse tórax... Minha nossa... Definido... - ela balança a cabeça em descrença.
Papai a encara com as sobrancelhas erguidas em diversão.
- O que você disse?
- Eu disse: QUEM VOCÊ PENSA QUE É, HENRY? - ela grita. - Você não pode voltar depois de 17 anos e achar que um "vamos deixar tudo pra trás", seguido de um olhar de cachorro abandonado, vão resolver as coisas! - ela bate com a revista no seu ombro. - Novidade pra você, garanhão! Não é assim que as coisas andam!
- Você acabou de me chamar de garanhão? - papai esfrega a lapela da própria camisa, sorrindo abertamente.
Meredith rola os olhos, erguendo os dedos para corrigir o estrago da camisa dele.
- Chamei! - ela diz convicta. - Pois... Acostume-se com isso!
- O que deu em você, Meredith Sullivan? - papai a olha embasbacado.
- Nada. Eu só estou falando a verdade. - ela ameaça dar as costas e partir, mas ele a puxa.
- Eu não disse que isso é ruim. - ele sussurra como quem conta um segredo, fazendo-a arfar.
Eu ouço um estalo agudo ao meu lado e o cheiro de queimado volta a me ameaçar. Antes que eu possa expressar alguma resposta motora àquilo, o computador ao meu lado simplesmente explode. Eu lanço institivamente meu corpo lateralmente, jogando-me contra a parede para abafar a bagunça explosiva ao meu redor. Antes de todo o congestionamento superaquecido, a fonte de energia pipoca e solta faíscas, rasgando a comodidade local. Durante meu pequeno desvio, totalmente regado no melhor estilo Matrix, eu solto um grito estrangulado, delatando minha presença. Meredith solta um barulho de surpresa e meu pai xinga em voz alta, tomados pelo susto do momento. Como se fosse sincronizado, assim que eu me ergo, com o semblante gritando culpa, o alarme de incêndio dispara e os sprinklers soltam a água necessária para apagar o pequeno transtorno.
- Liviana? - papai me chama, encarando-me conforme a chuva incessante traga meus cabelos e borra meu rímel. - O que você está fazendo aí?
- Resolvendo problemas técnicos. - minto. - Sou péssima nisso.
- Meu Deus! - Meredith sopra, mortificada. - Você está bem?
- Estou... - finjo uma reação abalada, que não condiz com a minha cara de pau, mas meu pai parece ler o fato de que eu só estava espiando. - Você sabe... Tecnologias e essas coisas! Tsc!
- Sei. Os perigos da modernidade. - papai debocha, com a ameaça velada no seu tom. - Quando chegarmos em casa, discutiremos seu pequeno trauma dos aparatos tecnológicos. Vá para o carro. Eu estava te procurando.
Estava me procurando no decote da senhorita Sullivan? Que feio, pai.
- Certo, garanhão. - eu o alfineto quando passo por ele, num tom tão baixo que apenas ele pode ouvir a provocação, antes de sair correndo porta afora.
Seu tom imperioso delata o quanto estou ferrada pela interrupção inconveniente.
***
Assim que eu entro no carro e me fecho na atmosfera claustrofóbica que é o temperamento vingativo do meu pai, eu sinto sua repreensão tangível me enlaçar. Sua irritação é tão densa que chega a ser palpável. Mas, juntamente com o seu desagrado pelo meu pequeno show pirotécnico, a oscilação do humor está presente em algum lugar, congelada na curva do seu sorriso pretensioso. Ele tenta manter-se sério para dar sobriedade à provável bronca que vem pela frente, mas o brilho sagaz nos seus olhos delata o quão confiante ele se mantém sobre o assunto.
- Tente não se achar muito, pai. - eu o provoco, apertando a fivela do cinto. - Da onde eu estava assistindo, ela praticamente te chutou para fora da sala.
Papai nega com um gesto desleixado.
- Sob a minha perspectiva, eu vi progresso. Nós conseguimos trocar algumas frases coerentes. Lembre-se: raiva é melhor do que indiferença.
- Ela não estava quase te matando com a revista? - eu assobio baixinho. - Eu devo te dar algum crédito. Pra quebrar toda essa postura de Polianna dela, você deve ter aprontado algo extremamente sério. Estamos falando de uma mulher que vive a sua vida com base no Jogo do Contente aqui.
- Acredite, seria mais assustador se ela se oferecesse para assar alguns bolos de boas-vindas. Pelo menos, agora sei que ela se importa.
- Pai, ela disse que não quer saber de você. Ou eu captei algum código bizarro onde "não quero mais te ver" significa "estou com saudades, vamos nos amar pelados"?
- Você é uma péssima conselheira amorosa. Você deveria manter minhas expectativas em alta. E desde quando eu aprovei esse seu linguajar esdrúxulo? Por favor, Liviana, tenha modos.
- Eu não sou paga pra te iludir. Eu sou sua filha, e nós temos um acordo sobre a verdade. Aceite-a, abrace-a e lide com ela. - rolo meus olhos. - Desde quando você se tornou tão hipócrita? - pergunto com ironia, assistindo de soslaio ele dar partida no carro. - Nós já tivemos "A conversa", pai. Pensei que tivéssemos superado essa parte. Pessoas fazem sexo.
- Eu sei. Pensei que deveria fazer o papel de pai por aqui e te colocar limites.
- Por favor, não vamos embarcar na Estação Hipocrisia. Próxima parada: Vale da Verdade. - eu viro meu corpo em sua direção, puxando o cinto para firmar minha posição. - Qual sua história com a Miss Sunshine?
- Miss Sunshine?
- Dorothy. Polianna Moça. Garota da Colgate. - aceno com descaso. - Você sabe, a senhorita Sullivan. Garota propaganda de comercial de margarina.
- Não fale dela assim, Liviana.
- Você sabe, ela é muito engraçada. Mal consegue te xingar direito.
- E da onde você tirou a ideia que eu vou te contar alguma coisa?
Eu o encaro com a expressão altiva.
- Ora, lembre-se do seu próprio mantra! Ah... Como era mesmo? - finjo cogitar mentalmente, mas adiciono com malícia: - Honestidade é prioridade. Quem diria que um dia suas próprias palavras iriam te morder no próprio traseiro, hein?
Papai ri baixinho, dobrando a direção para virar a esquina. Toda sua conjuntura expressa a leveza que ele sente por poder tirar aquilo para fora do próprio peito. De certa forma, pela maneira que ele pressiona os lábios finos como se estivesse fazendo esforço para pensar, matuto se não estou cruzando alguma barreira invisível e indelicada. Ele ainda luta com as palavras algumas vezes, somando o peso das suas inseguranças e provando o sabor do passado, abrindo e fechando os lábios como se repensasse se seria apropriado despejar seus segredos para sua filha adolescente-rebelde-fofoqueira-curiosa. Com um sopro cansado, ele se rende com a voz morna, segredando-me a narração do maior dilema da sua vida:
- Meredith e eu... Temos um passado distante. Antes de eu ir cursar a faculdade de Direito, Meredith e eu namoramos no colegial. Ela era minha melhor amiga na época. Sempre foi assim... Sonhadora e inofensiva. Nunca conseguiu ser má com uma alma sequer. Essa sua delicadeza, apesar de ser sua maior virtude, era seu calcanhar de Aquiles. Por sorte, eu sempre estava lá para sujar minhas mãos e defendê-la quando os xingamentos engasgavam na garganta dela. Passamos o primário e o secundário lutando contra nossos sentimentos, mas, com o último ano letivo, não conseguimos mais negar o que sentíamos um pelo outro. Era visível. Todos da cidade sabiam, menos nós dois. - papai sorri para si mesmo, viajando nas lembranças. - Foi no penúltimo Dia dos Fundadores que eu a pedi em namoro, no topo da roda gigante. A cidade toda estava lá embaixo para aplaudir o desfecho dessa história de amor juvenil.
"Mas, em certos momentos da vida, o amor não é suficiente. No final do ano, com a perspectiva para a faculdade, Meredith e eu nos separamos. Ela foi para o oeste cursar Pedagogia, eu segui para NYC para terminar Direito. Com o tempo, acabamos nos distanciando. Foi durante essa crise que eu conheci sua mãe. Garota órfã, rebelde e cheia de vida. Ela tinha uma aura energética que simplesmente conseguia extrair o pior de mim. Encantei-me por ela imediatamente. Foi durante esse tempo, com a cabeça quente por Meredith, o coração cheio pela sua mãe e os problemas da faculdade, que você foi... Gerada. Sua mãe engravidou precocemente e veio me pedir ajuda, totalmente desesperada pelo futuro cinza que se abria a sua frente. Eu não podia deixá-la criar nosso filho sozinha, então abri mão do meu passado e agarrei esse futuro com ela."
- Pai... Isso é tão... - me perco com as palavras, tomada pela empatia que tira meu fôlego. É muita carga emocional para lidar.
- Mas a história não acaba aí. - papai conta, empolgado por poder verbalizar suas frustrações para alguém. - Eu devia uma explicação para Meredith. Eu não poderia simplesmente... Dar-lhe as costas e apagá-la da minha vida.
"No ano seguinte, antes de você nascer, eu voltei para a cidade para dar um ponto final na nossa história, desculpar-me e dar-lhe alguma explicação coerente. Era Dia dos Fundadores. Parecia como se tudo tivesse sido orquestrado para nos transportar para aquele mesmo dia, anos antes, quando a pedi em namoro. A princípio, Meredith tentava não expressar quão abalada ela ficou, mas, conforme eu abria a boca com desculpas esfarrapadas, o choro progressivo tomou conta da sua face. Ela se desmontou ali mesmo na minha frente. Todos os anos de bondade, respostas educadas e uma aparência contida foram por água abaixo. Trocamos xingamentos no calor do momento e tudo... Morreu. Naquele momento, eu tinha certeza que estava perdendo a única coisa que importava. Claro que isso era um pensamento muito precoce na mente de um jovem apaixonado, mas ainda assim..."
- Mas, pai, por que você não foi atrás dela depois que a mamãe morreu?
- Porque era tarde demais. Eu havia quebrado o nosso laço. Não adiantaria remendá-lo com mágoa e desconfiança. Além do mais, eu tinha que me acostumar com o novo status de pai solteiro. - ele sussurra com lamento, então me encara com intensidade. Sua mão escapa da marcha e aperta a minha com suavidade: - Mas saiba que não me arrependo de nada. Todas as minhas decisões imprudentes trouxeram a mulher que você é hoje e o homem que eu me tornei.
Eu sopro audivelmente.
- Nossa, você tinha que jogar essa carta? - reclamo. - Agora terei que conviver com a sensação de que é minha obrigação juntá-los novamente!
Papai ri baixinho, apertando o freio lentamente conforme se aproxima da casa.
- Não venha com essas suas ideias infundadas. Ainda estou me recuperando da última vez que você tentou bancar o cupido. - papai me alerta.
- Ora, papai, suas expectativas em mim são muito baixas. Vamos mostrar um pouco de positividade? - eu sorrio malignamente. Ah, isso vai ser divertido. - Além do mais, não foi minha culpa daquela vez. Quem iria adivinhar que ela era alérgica a camarão?!
Meu pai abre a porta do carro com a diversão mesclada com a preocupação nítida pela longevidade das minhas ideias maquiavélicas. Antes de sair do veículo, penso sobre como ele não poderia estar mais certo. Claro que eu não iria fazer nenhuma loucura, mas o leque de possibilidades de grandes gestos amorosos era impressionante... Bom, ser cupido sempre foi meu passatempo favorito.
***
Eu encaro as folhas ressecadas de palavras vazias, antes significantes, que tentam me puxar para um lugar que minha mente não ousa viajar há muito tempo. As sílabas borradas dançam no meu campo de visão, tentando me despertar para pensamentos que eu pensei que havia enterrado junto com a capa dura do caderno surrado. Como se aflorasse emoções que eu tentara avidamente esconder sob camadas de tintas e rasuras distorcidas. Ler meu caderno é como embarcar e sentir intensamente todos os meus pensamentos escondidos, revivendo lembranças dolorosas que eu pensei que era capaz de selar nas linhas tortas do papel. Só que as palavras me fogem, evadem do seu local de repouso e me atingem numa brisa fugaz de sensações, golpeando cada vez mais fundo na minha alma. Enquanto tateio a textura áspera do caderno, sinto como se me deparasse com um cemitério das minhas interrogações mais profundas. Palavras que foram interrompidas antes de serem verbalizadas para o mundo, só para serem sepultadas na segurança de uma folha, sendo eternizadas no papel. Orações incompletas que nunca existiram na prática, mas foram impostas no teórico, escondidas pela cumplicidade de uma caneta azul. Ideias confusas, linhas de raciocínios interrompidas pela metade, sílabas mortas ao redigir uma palavra, ideologias guardadas na contracapa velha de um caderno qualquer. Histórias, versos, contos, relatos, desabafos... Tudo perdido para o alcance alheio. Tudo camuflado numa caligrafia aceitável.
Minha mente voa pelas possibilidades e se afoga no curto prazo de tempo estabelecido por Meredith. Sobre o que eu iria escrever? O que iria me definir? Onde estava a maldita voz, quando precisávamos dela? São tantas vertentes. Tantos limites e amarras que me puxam... É como se eu tivesse a obrigação de me restringir. Rotular-me.
Rótulos.
A ideia pisca no fundo da minha mente e me acorda para a escrita. E, motivada, começo a digitar furiosamente.
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