Capítulo 10 - Nadar ou se afogar?

A influência de James Carter na vida de alguém era algo esmagador. Ele estava impresso em cada fio de pensamento, em cada tom malicioso e em cada gesto irreverente que eu era capaz de testemunhar ou elaborar. Era como se ele tivesse pressionado minha mente com ferro quente: ele estava sempre lá, oculto das banalidades mundanas, marcando seu contorno nas minhas pálpebras desleixadas. Eu tentava cegamente me desviar da sua imagem ilustrativa, que atacava minha mente fraca com flashes sucessivos, mas, todas as vezes que estava remotamente desconectada do meu corpo e das minhas divagações, sua promessa velada teimava em ecoar pelos meus ouvidos, cheia de malícia e luxúria. Seu tom lascivo ricocheteava pelo meu ouvido como uma carícia proibida pelo resto das manhãs, deixando-me totalmente alheia às aulas, ao clima, às pessoas, à relevância de qualquer coisa. Sua onisciência nos meus dias era quase irritante.

Pelo histórico debilitado da minha pacata vida amorosa, eu deveria conhecer os sintomas. O nervosismo agudo, o orgulho brilhando sem conformação, a reação ácida à sua presença, as respostas mordazes acumuladas na ponta da língua, os sentimentos presos na garganta. Eram todas etapas práticas para o aterro ambulante que precedia meu emocional instável. Eu sabia a história de cor e salteado. Os sintomas copiosos, o comportamento repetitivo... Eu não precisava de uma realização cósmica para saber que estava numa zona perigosa, cheia de turbulências e correntezas emotivas. Não adiantava evitar, já havia provado os dissabores da sua personalidade intrínseca. Já vi o bom, já provei o mau, já testemunhei cada relance possível das suas reações. Mas nada do meu alerta natural de anti-desilusão conseguia dissociar minha teimosia em me aventurar nas águas incertas da sua imponente influência. James Carter era como um dia de maré alta, cheio de ondas imperiosas e correntezas traidoras, enquanto eu estava acostumada à constância das ondas baixas. Mas, como qualquer coisa ilícita e cheia de persuasão, eu era naturalmente atraída pela forma selvagem que ele se agitava. Dividida entre o querer e poder, quase me afogava no mar da sua presença. Eu atingia o fundo, tomava um pouco de impulso, engolia muita água, batia os braços desesperadamente, sentia uma caimbra nos membros, cedia um pouco à correnteza, afrouxava meus movimentos e pensava, determinadamente: ou eu nadava ou me afogava.

Estar perto dele era como se afogar.

Mas meus membros eram muito resolutos ao insistirem em manter o nado firme e a independência intacta.

Marien, por outro lado, parecia estar presa na sua própria encruzilhada sentimental. Desde que anunciou sua participação na piada de prêmio que ganhei (definitivamente não atribuirei nome à coisa, apenas para evitar o surto psicótico ao dar uma nomenclatura à situação. Afinal, sair com o assunto favorito da massa feminina, com duas babás com um péssimo histórico consensual, sem mencionar um garoto estrangeiro, fã de palavras exclamativas, que tem o péssimo hábito de soltar provérbios espanhóis como passatempo, protagonizando a cereja do bolo, não se encaixa no conceito de encontro promissor socialmente aceito), anda pela casa lamuriada, resmungando pelos cantos e batendo todas as panelas apenas pelo prazer de perturbar a serenidade da noite. Como se ela quisesse fazer questão de que, se ela não estivesse em paz com a própria mente, assumiria a missão de provocar o inferno na vida dos demais seres humanos isentos de preocupações. Muito altruísta da parte dela, se me perguntam. Esse aspecto miserável e irritadiço não se assentava com sua loucura característica. Ela já não possuía o sorriso flexível e a aura contagiante. Alguma coisa, não importa o que fosse, conseguiu penetrar bem fundo nos seus nervos. Tudo o que ela fazia, desde a noite do bingo, era xingar audivelmente, reorganizar suas coleções de sapatos, como uma terapia mental fraca, e repetir, como um mantra pessoal, sobre como o sobrenome Carter era amaldiçoado pelas entidades supremas. De certo modo, quando ela tentava manter as estribeiras do seu autocontrole, depreciar o nome do causador da sua irritação conseguia abrandar seu temperamento.

Na verdade, parecia que algo deu um curto-circuito na minha família. Não só Marien estava fora dos eixos, como meu pai pareceu perder toda a conjuntura de advogado sério. Agora, após suas palavras segredadas sobre o fantasma do seu passado, ele andava agitado e desconfiado. Após a fatídica reunião de pais e professores, ele retornou tão fechado e pálido que, quando eu perguntei como havia sido, ele me encarou meio atravessado, meio perdido, e só murmurou uma frase desconexa antes de subir para o próprio quarto. Eu ainda tentei extrair algo de bom dele, mas minhas tentativas provaram-se falhas à medida que seu olhar opaco se aprofundava com a insignificância do momento. Ele passou a semana inteira perdido nas próprias interrogações sepultadas.

É claro que suas reações alérgicas ao mundo possuíam fatores adversos. Marien continua a se contorcer em silêncio sobre o fardo que é aguentar a bajulação repentina de Marlene e Harold, fingindo uma inabalável indiferença enquanto se sustenta sobre os próprios saltos, sem saber que eu observo seus dedos tremerem, disfarçadamente, a cada encenação de afeto que ela assiste com a expressão impassível. Por trás da sua muralha, consigo enxergar o reboco desgastado e os tijolos ruindo. Meu pai, por outro lado, não nomeia seu próprio demônio. Ele prefere sofrer em silêncio, ruminando sua própria desgraça.

Estou começando a questionar se o nosso sobrenome não é o amaldiçoado da equação.

São tempos difíceis na casa dos Harper.

***

Mas se a semana infernal conseguiu me abalar emocionalmente, a promessa do sábado varreu minhas dúvidas para fora da minha mente. Qualquer insegurança ou nervosismo, alimentados pelos escassos dias de paranoia profunda, somem conforme Marien acelera o carro progressivamente rumo ao destino desconhecido. Bernie dá alguns solavancos inconvenientes, resmungando cinicamente pelo modo que a lataria bate contra a estrada irregular, mas Marien parece descontar toda sua frustração na marcha do veículo, empunhando-a com certa força desnecessária, e insiste em ignorar os lamentos do carro. Se a alça de segurança é minha companheira íntima em dias normais, nesse dia, em especial, conforme Marien divaga sobre a fatalidade de ter que passar uma tarde com o causador do seu tormento, acabamos nos tornando um ser indissociável. Estou tão pressionada contra o apoio que, toda vez que o carro salta, meu punho bate contra o teto. Consigo avaliar sua expressão firme rapidamente de soslaio, temendo desviar meus olhos da estrada a minha frente. Seu cenho está franzido numa expressão inconformada, com algumas veias saltando na testa, os lábios, cheios e avermelhados, estão contorcidos numa linha irritada. Seu cabelo ruivo está preso num coque apertado, deixando alguns fios soltos que fustigam contra sua face pálida. Vez ou outra, ela xinga baixinho conforme sopra as madeixas para fora do seu campo de visão, amaldiçoando o caminho esburacado.

- Escute aqui, Liviana. - Marien chama, virando-se momentaneamente na minha direção. - Não caia nesse truque barato deles. Não os deixe perto o suficiente para que te notem. Mantenha a guarda alta e, se nada funcionar, chute-os na bola!

- O que? Eu dificilmente acho que isso seja necessário...

Mariem freia bruscamente o carro, fazendo Bernie gemer com exaustão.

- Estamos indo para a guerra, você está me entendendo? É uma guerra de libido! - Marien diz firmemente, virando na minha direção. - Use todas as armas que tiver!

- É só um encon...

- Não use essa palavra. - ela repreende, e eu mesma lamento meu desleixo. - É um campo de batalha.

- Pra onde estamos indo?

- Uma cidade vizinha. É a única que tem um campo de paintball nas proximidades. - ela me confessa com um sorriso arteiro. - Espero que esteja tudo bem pra você. Eu tomei a liberdade de marcar lá porque, bem, eu não pude controlar minha vontade de atirar na cara do Harold. E, dessa vez, sem ser uma ameaça vazia.

- Por favor, sirva-se. Essa é uma cena que eu adoraria ver. - eu sorrio para ela.

Assim que ela capta meu sorriso relaxado, ela se solta. A raiva acumulada se esvai aos poucos, à medida que ela acelera o carro e retoma o caminho. De repente, é como se a perspectiva de atirar em Harold renovasse suas energias. E o destino conhecido parece expandir minhas expectativas igualmente, porque, de certo modo, a ideia do paintball me atrai e me anima de uma forma adormecida, que não era despertada há muito tempo.

O sussurro de uma tarde boa paira naquele momento.

O trajeto é consideravelmente curto, apesar da estrada difícil que encontramos durante o caminho. No entanto, por todo o percurso, Marien dita suas regras e táticas de jogo, alertando-me para me manter energicamente preparada para qualquer situação, o que eu aceito como algo para me distrair dos solavancos e aceleradas loucas que ela investiu pelo caminho. Assim que chegamos, não espero seu aviso para saltar do carro, com certo fôlego preso, agradecendo aos deuses pela solidez da terra. Marien acha um pouco de graça, levando meu pavor às suas habilidades na direção na esportiva. Após estacionarmos, ela se depara com uma picape velha, o que a faz fechar a expressão divertida que carrega no rosto, alterando seu temperamento com um choque brusco.

- Ótimo, os três patetas estão aqui. - Marien resmunga, travando o carro antes de se encaminhar até a entrada. - Vamos acabar logo com isso.

Seria mortalmente fácil recusar o estúpido prêmio a princípio, enquanto todos ainda não haviam resolvido adquirir um súbito interesse na minha vida amorosa, mas, ainda assim, lá estava eu, andando morosamente até o caixa atendente com a expressão neutra, tentando controlar o redemoinho de sensações que me afligia, sendo guiada por uma Marien impaciente. Recentemente, a única pessoa leiga sobre a minha vida amorosa era meu pai, o que é um alívio. Até mesmo Anne pareceu comprar a camisa team James quando soube do ocorrido, apesar de defender fervorosamente que sua tietagem devia-se a motivos puramente didáticos. De toda forma, após vários apitos incessantes no meu ouvido - lê-se Anne e sua imaginação e tato românticos -, fiquei presa a terrível dificuldade de ter que atravessar um dia com a presença arrogante de James Carter, rendida aos argumentos favoráveis sobre esse encontro bolado... Ah, quem eu quero enganar? Eu estava saboreando cada momento.

Marien tamborila os dedos impacientemente contra a bancada de madeira polida, cantarolando uma música qualquer, enquanto passeia os olhos pela multidão. Seu olhar trava num ponto específico e ela engole em seco ao encarar Harold, que se encaminha na nossa direção com uma determinação clara e com o deboche dançando nas suas feições. Gonzalez está ao seu lado, rindo como quem sabe de muita coisa, o que só deixa Marien mais irritada.

- Ora se não são os Patetas 1 e 2... - ela sorri pretensiosa, piscando para mim.

- Cadê o Carter? Não me diga que ele desistiu! Poxa, que pena! Fica pra próxima então! - eu finjo uma tristeza falsa, contornando o corpo para simular uma saída silenciosa, mas, assim que me viro, dou de cara com um projeto de peitoral firme, sendo lançada para trás com a brusquidão do choque repentino dos corpos.
James Carter me ampara com as mãos enroladas suavemente nos meus braços, dando-me o apoio necessário para não cair. Seu rosto está iluminado pelo sorriso felino que lhe é tão característico, aprofundando sua expressão predatória com o arquear irônico das sobrancelhas. Seus cachos escuros estão desgrenhados pela displicência e seus olhos brilham com diversão.

- Aonde pensa que está indo, bonita? - ele questiona com a malícia velada no tom, passando seus braços pelos meus ombros para me puxar para o seu lado. Assim, quando estou firme no seu aperto, ele sussurra no meu ouvido: - Você me deve uma tarde de flertes ininterruptos, lembra?

- Você tem uma imaginação muito vingativa, Carter. - eu o repreendo, fugindo do seu aperto.

- Menos conversa, mais distância pessoal. - Marien ladra, posicionando-se entre nós dois. Então, como uma adolescente conspiratória, ela se inclina na minha direção e comenta: - Os perigos da libido, Liviana! Lembre-se disso!

- Ah, isso vai ser uma tarde interessante. - Gonzalez ri, divertindo-se com a cena.

- Vamos logo pagar e começar o jogo! - protesto, cansada.

- Temos que esperar Marlene. Ela foi ao banheiro. - Harold comenta delicadamente, como se não tivesse acabado de soltar uma bomba em cima da Marien. Todos assistimos ela digerir a informação em silêncio. - Vocês demoraram tanto que ela precisou se ausentar.

- Ah, quanta indelicadeza a nossa. - Marien faz pouco caso com um sorriso debochado. - Olhe para minha cara de quem se importa. Venha, Liv, vamos reservar o campo.

Ela me dá um aceno de cabeça e guia o caminho. Eu a sigo, silenciosamente, meio assustada pela sua reação fria, meio perdida com o olhar quente que James dá na nossa direção.

- Filho da puta. - Marien xinga quando estamos sozinhas, dando um suspiro exagerado numa constância respiratória de yoga, concentrando-se para manter a calma ínfima. - Tudo bem, passou.

- Você quer ir embora?

- O que? E perder a oportunidade de atirar nos dois? Nunca. - ela diz enojada. Então, vira-se para o atendente e murmura as instruções sobre nosso jogo.

Assim que pagamos e conseguimos pegar todos os equipamentos, Marien me puxa, com a carga pesada equilibrada nos dois braços, para o grupo reunido. Os três homens estão reunidos numa conversa energética, dividindo xingamentos e deboches como quem narra uma vitória. Marlene está entre eles, com sua expressão levemente entediada e suas vestes estranhas. Sua saia florida e sua blusa estampada não combinam com a atmosfera do local, mas ela não parecer se importar. Ao meu lado, enquanto encara a adversária duramente, Marien pigarreia.

- Desculpem, hombres, mas minha habilidade com a arma tem sua fama. - Gonzalez narra no meio de um discurso, mas Marien o interrompe.

- Tudo bem, Du, Dudu e Edu, é assim que vai ser. - ela instrui para os rapazes, jogando três coletes em suas direções. - Liv e eu contra vocês.

- Desculpe, Marien, mas o encontro é meu. Eu digo "dibs" na Liv. - James interfere, dando uma piscadinha irreverente na minha direção. Meu coração dá uma pequena soterrada no peito.

Marien bufa, visivelmente consternada.

- Então o Ken paraguaio é meu. - Marien declara. - O casal Gandhi pode ir junto.

Eu engulo uma risada ao ver a reação de Marlene, que responde a declaração com uma careta ultrajada. Harold, entretanto, é mais rápido:

- Não mesmo. Você é minha. - ele assume. Todos absorvem o significado implícito na fala, mas ninguém se manifesta. Marien parece ter engolido um trator enquanto o encara nervosa. - Você vai achar alguma forma de acabar com esse encontro! Eu não vou te deixar sair da minha vista!

- Então somos só eu e você, chica. - Gonzalez atravessa o grupo e posiciona um braço nos ombros de Marlene, de forma acolhedora, tentando evitar o constrangimento que ameaça surgir entre os demais. - Eu estava realmente precisando de umas consultas astrais, sabe como é...

Ninguém se posiciona depois disso. Todos tentam manterem-se ocupados com seus respectivos coletes e proteções, evitando encarar o grande elefante na sala. Mas, durante todo o período, James me avalia com os olhos famintos, tirando minha concentração da fivela que eu luto para fechar. Ele me encara, sorrindo descaradamente, e se aproxima de mim com segundas intenções impressas na face.

- Precisa de ajuda aí? - ele se oferece, assistindo com diversão minha pequena odisseia contra a trava do colete.

- Não está vendo que eu consigo fazer sozinha? - eu o desafio, embora saiba que estou tendo dificuldades.

Ele ergue as sobrancelhas em resposta. Eu luto um pouco contra as travas, mas consigo fechá-las. Meu sorriso vitorioso o deixa inquieto, e eu limito-me a dar-lhe um olhar imperioso antes de seguir meu caminho até Marien e os demais.

- O último homem em pé será o vencedor. - Marien declara dramaticamente, puxando o gatilho da sua pistola.

- Que no caso, serei eu. - Gonzalez diz altivamente.

Nós nos separamos pela clareira, dividindo-nos em duplas. Assim que estamos dando as costas para nos espalharmos, ouço o som de um gatilho sendo disparado. James e eu nos voltamos repentinamente para encarar as costas sujas de tinta de Marlene. Marien tem uma expressão debochada no rosto, com a arma empunhada com firmeza, dando de ombros levemente com descaramento. Antes de Marlene processar o acontecimento, Marien gesticula ironicamente um pequeno tchauzinho sofrido. Marlene se vira, mortalmente séria, e dá um último olhar de nojo para a ruiva, antes de se retirar derrotada. Harold parece chocado com a atitude dela, mas ela não liga nem um pouco. Ela se vira e sai, toda desbocada, marchando pela selva em busca de esconderijo.

- Isso que eu chamo de DR. - James ri, puxando-me pelo braço para algum local oportuno. Eu espero que ele faça uso do seu charme para me ganhar, mas, ao invés disso, ele me esconde com o próprio corpo e pressiona-se contra mim. Com sua respiração pesada contra meus lábios, ele sussurra: - Tudo bem, Gonzalez é rápido e esperto, tentaremos pegá-lo por último. Eu digo que o melhor a fazermos é irmos atrás de Marien e Harold. Eles estarão distraídos discutindo e aí teremos nossa chance!

- Você está realmente falando disso enquanto estamos sozinhos aqui?

- Meu Deus, eu adoro quando você fala sujo comigo. - James brinca, aumentando a pressão dos nossos corpos. Ele vira a cabeça um pouco, para inspecionar as redondezas, e retorna seus olhos para mim. - Esse é o seu poderoso poder de flerte?

- Acredite, você saberá quando eu estiver flertando, Carter. Vamos, temos alguns corpos em quem atirar. - eu o empurro levemente, puxando-o pelo colete.

Nós mantemos nossos passos numa candência silenciosa, medindo a dureza que nossas botas chocam-se contra os galhos. James guia o caminho, cobrindo meu corpo com o seu, puxando-me pela mata densa com impetuosidade. Vez ou outra, ele gesticula o indicador para que paremos, num súbito reconhecimento de algum ruído suspeito. Conforme adentramos progressivamente na mata, maior é a intensidade dos barulhos inconfundíveis.

- Eu... Não... Pare... Besteira! - as palavras confundem-se pela distância, mas posso distinguir nitidamente a voz de Harold.

James aumenta o compasso dos nossos passos e me puxa para trás de algumas árvores, impelindo-nos a assistir a cena sangrenta que se desenrola na nossa frente. Harold e Marien estão tão próximos que seus membros se misturam, é difícil avaliar onde começa os dela e onde termina os dele. Seus peitos batem-se duramente num confronto nítido, onde ambos seus indicadores estão erguidos em protestos. As faces de ambos estão coradas pelo calor da discussão, mas é a expressão de Marien que é a mais nebulosa.

- Você é baixo, Carter. Qual é o seu problema? Você quer pressionar a ferida?

- Que ferida? Não há nenhuma maldita ferida! Desde quando você se importa?

Marien parece ter levado uma tapa. Ela o encara, furiosa, o que a faz empurrá-lo com raiva.

- Como você pode me dizer que eu não me importo? - ela retira a arma do colete e o aponta para ele. Harold a encara espantado. - Oh, querido, aqui é a década de 70 e ela quer o meu coração de volta!

Ela dispara a tinta contra seu colete, acertando-o no peito. Harold geme pelo impacto.

- Você está louca?

- Eu estou louca? SE EU ESTOU LOUCA? Você me diz que vai me deixar em paz, depois vem esfregar essa riponga na minha cara e ainda pergunta se eu estou louca? ALERTA DE SPOILER, CARTER: EU ESTOU. - ela aponta a arma novamente para ele, atirando contra sua perna. Harold grita. - Você acha que está tudo bem você passar a última década me enchendo o saco sobre nossos sentimentos mal resolvidos, para agora chegar e dizer "hum, não, obrigado"? E sair da história dizendo que eu não me importo? Novidade, seu babaca, eu me importo sim!

- Marien, acalme-se. - Harold implora. - Do que adianta, afinal? Há coisas demais entre nós para esquecermos o passado.

- Não venha com essa carta pra cima de mim! Eu não me importo com você, Carter. - a mão que segura sua arma treme, mas ela a segura firmemente. - Não mais. Você pode sair com quem você quiser, no que me diz respeito. Engula suas palavras ambíguas e me deixe em paz.

Dessa vez, ela atira sucessivamente contra ele, atingindo-o no tórax, nos braços, em todos os pontos sensíveis. Mas Harold não se importa. Ele ergue-se duramente e caminha na sua direção, puxando a arma do seu alcance e jogando-a para longe. Ele para de frente para ela e a puxa pra um abraço forte.

- Me solte, Carter. Eu não quero te ver nunca mais. - ela funga contra sua camisa, mas desiste de resistir e lança-se contra ele num abraço febril.

- O que você espera de mim, Mary? O que eu posso te dar? Eu já sofri muito tempo como seu saco de pancadas, meu orgulho já apanhou além da conta. - ele se solta, encarando-a com intensidade. - Eu não vou lutar por você. Já fiquei sem forças há muito tempo.

- Você acha que lutou por mim, Carter, mas você nunca deu sua cara a tapa. - ela se afasta, percebendo a realidade à sua volta. Suas lágrimas escorrem de forma traiçoeira pela face pálida. - Você nunca se permitiu. Se você tivesse aberto seu coração para mim, eu saberia. Eu te aceitaria. Você acha que eu sou a fechada, mas você canta sobre palavras vazias e esconde a verdade dentro de você. - ela olha ao seu redor quase perdida nas sensações que a embalam, então vira-se para ele, encontrando seu olhar sofrido. - Atire em mim.

- O que?

- Atire em mim, Carter. Não quero mais jogar.

Harold pesa por um segundo suas ações, mas logo acata seu pedido. Marien recebe o tiro com a expressão triste. Antes que Harold possa segui-la, ela foge pela mata. Muito tempo depois, após encarar o nada, Harold a segue.

James e eu soltamos nosso fôlego em uníssono, aflitos pela cena pesada que tivemos que presenciar. Com um pouco de humor restante, ele acotovela minhas costelas e sorri maroto.

- Nem precisamos fazer o trabalho sujo. - ele brinca, mas sua expressão se suaviza. - Isso foi... Difícil de assistir.

- Acho que há alguns resquícios de sangue e dignidade no chão. - eu tento aliviar a tensão, puxando-o pelo braço. - Vamos, temos um espanhol para caçar.

James me puxa na sua direção, impedindo que eu o guie. Nossos corpos chocam-se num embate, fazendo com que ele apoie sua mão na minha cintura para me segurar. Nossos olhos travam uma batalha silenciosa, sustentando a luta incessante das nossas retinas com fervor. Seus lábios se abrem quase que automaticamente, mas eu engulo em seco.

- O que foi? - pergunto, tentando disfarçar a forma que minha boca é atraída pela sua.

- Percebi que não quero jogar também. - ele murmura contra meus lábios.

- E o que você quer fazer?

- Isso é um flerte? - ele sorri sadicamente.

- Não, é uma pergunta sincera. O que você quer fazer?

- Eu ganhei um encontro com você. Eu gostaria de ter um encontro normal. - ele me fita duramente, sinceridade pingando a cada sentença. - Sem loucuras, sem babás, sem tinta. Só eu e você.

- Por quê? - questiono tolamente.

- Eu preciso de um motivo?

Sinceramente, se ele me dissesse que queria dançar de cabeça pra baixo, apoiado com uma mão só, eu já estaria aceitando.

- Um bom motivo. - provoco-o.

- Tudo o que tenho é isso: uma oferta tentadora e o desejo sincero. - ele murmura baixinho. - É pegar ou largar.

- Você sabe como estragar um bom momento. - eu o repreendo.

Estou quase cedendo, mas enquanto estamos sozinhos, enroscados um no outro, trocando brincadeiras carregadas de malícia, ouço um galho quebrar na nossa lateral. Antes que eu possa esboçar um alerta, Gonzalez surge de lugar nenhum, rolando pela areia fofa com uma cambalhota desleixada, segurando duas armas. Eu riria pela comicidade da cena, mas a seriedade do momento não me permitiu. Antes que James e eu possamos nos mexer, Gonzalez mira nas nossas costas e atira sucessivamente na nossa direção, gritando seu hino de vitória. Nós ficamos chocados pela situação, até que o moreno se ergue com classe e limpa a sujeira nas próprias roupas, tentando manter a pose. Ele nos dá um olhar significativo e diz:

- Sinto muito, muchachos, eu sou o rei do paintball.

- Claro, Senhor Ousadia. - James o alfineta, não ligando muito para o fim do jogo.

- Você acabou de destruir minha moral e meu orgulho com seus movimentos pélvicos. - debocho, o que faz o Carter gargalhar.

- Riam o quanto quiserem, mas eu sou o vencedor.

James me dá um olhar divertido que traduz discursos inteiros, antes de me guiar até a entrada. É como se nós tivéssemos ganhado nosso próprio jogo.

***

O fim do jogo precedeu a tensão característica que nos engolfava, que se alastrou desde a briga de Marien e Harold. Ninguém quis dar vazão aos pensamentos, que os afligiam com a atmosfera densa, que havia se instalado entre os demais. Para eles, era apenas uma névoa difícil de atravessar. Para James e eu, que havíamos testemunhado a dor pungente que ambos haviam extravasado para o mundo, era algo inconveniente e fora de molde. Marien estava evasiva e monossilábica, o que delatava de forma gritante o desconforto que ela sentia. Harold, por outro lado, tentava dar atenção à Marlene, cochichando energicamente no seu ouvido, o que não ajudou nada para atenuar o clima do ambiente. O único momento de descontração dava-se pelas piadas debochadas de Gonzalez, que se vangloriava do seu grande feito sem qualquer moderação, até Carter ameaçar colocar outra galinha no estofado do seu precioso carro. Quando chegou a noite, todos estavam dando graças a Deus pelo término do encontro mais bizarro do mundo.

Quando chegou a noite, Marien se ausentou para juntar as migalhas do seu autocontrole. Quando chegou a noite, James e eu estávamos entrelaçados pela promessa silenciosa de algo mais.

Marien, pela primeira vez desde que eu me recordo, pareceu descansar os membros fatigados e se permitiu afogar nos próprios sentimentos. Porque, uma hora ou outra, avançar contra a corrente marítima chega a ser exaustivo e seus movimentos passam a ser enfadonhos. Muitas vezes, é melhor boiar a favor da correnteza.

Eu acabei matutando se essa seria a sensação de se desprender da seriedade, porque, quando James Carter chegou para mim no fim da noite, reiterando seu convite sério para um encontro, eu hesitei. Dessa vez, sem avós e tios, sem espanhóis com complexos de vencedores, sem armas, sem coletes. Dessa vez, sem nadar contra a correnteza, sem me proteger da facilidade de exposição que é James Carter. Eu não precisaria evitar ser engolfada pelas águas turbulentas do seu temperamento. Eu poderia, simples e puramente, boiar em concordância com as ondas.

E, exibindo o cansaço dos meus músculos em persistir em nadar, eu permiti me afogar.

E disse sim.

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