Capítulo 1 - Hello, Leavenworth

- Então, existe uma história por trás do seu cabelo? - Marien pergunta com a boca cheia de ovos.

É manhã de uma segunda silente e nós estamos tomando café numa cozinha moderna e polida, que parece saída de um catálogo de decoração, e eu não posso me sentir mais estranha. Em New York, tudo o que meu pai e eu tínhamos era um velho fogão empoeirado, que nenhum de nós se aventurava a usar durante os 17 anos da minha vida, e uma geladeira empilhada de porcarias. A cozinha para nós não passava de uma fachada e um local conveniente para armazenar nossos potes de sorvetes. Estar ali, sentada e comendo comida caseira, parecia distante de qualquer realidade. Aquela experiência parecia se chocar com meu mundo e explodir tudo de familiar que eu conhecia. Meu pai parece alheio a essa sensação e, de fato, parece apreciar de formas desconhecidas uma xícara de café do outro lado da mesa. Eu alcanço a cafeteira e despejo um pouco do conteúdo numa caneca personalizada que diz "Eu sou velha e ganhei o direito de ser ranzinza". Assim que o conteúdo toca meus lábios, eu consigo restringir uma nova definição para o paraíso. Deus, talvez meu pai e eu tivéssemos sido desleixados na última década e estivéssemos acostumados a nos alimentar como porcos...

- Bem, sempre há. - comento depois de mordiscar uma fatia suculenta de bacon. - Eu o tingi no ano passado quando todas as garotas da escola pintaram os cabelos de loiro e eu não conseguia me distinguir na multidão. Não queria parecer a Avril Lavigne, então optei por turquesa ao invés de rosa. Claro que isso me resultou em um mês de castigo.

- Meu cabelo tem muitas histórias. - ela murmura em cumplicidade, como se o vermelho berrante em seus cachos pudesse ser comparado à minha pequena travessura juvenil. - Eu tento ser versátil, meus fios não conseguem se ater a só uma cor. Esse mês é ruivo. Mês passado eu fui loira cinza-escuro.

- A única história que meu cabelo tem é quando eu tive que raspá-lo após passar no vestibular. - meu pai comenta, empolgado para entrar no assunto. - Ele cresceu de uma forma tão bizarra que todos os meus amigos ficaram me enchendo sobre eu ter calvície.

- Não é verdade. - retruco. - Teve aquele incidente naquele salão do Brooklyn.

Meu pai parece alarmado e eu quase caio na risada. Ele sacode a cabeça negativamente, um sinal mudo para que eu cale a minha boca, mas já é tarde demais e Marien pega a mensagem no ar. Ela nos avalia com malícia.

- Que incidente?

- Papai recebeu um cupom para cortar o cabelo de graça de uma cliente dele e resolveu ir. - explico bem-humorada. - Mas como você deve saber, ele sempre teve um timing horrível. Quando finalmente decidiu que seu cabelo estava crescendo para os lados, ele resolveu dar uma passada por lá. Acontece que foi justamente no dia que a mulher havia brigado com o marido!

- Ok, ok! - ele cede com relutância. - Quando eu apareci lá, tudo corria bem, ela me atendeu educadamente, fez a lavagem, pediu para que eu sentasse e logo estava chorando desesperadamente sobre meu cabelo. Quando eu menos esperava, já havia um buraco na lateral da minha cabeça!

- Foi horrível! Ele usou touca por dois meses inteiros até que seus cabelos tivessem a decência de crescer. - eu confessei, rindo. - Imagine a seriedade de um advogado de terno e... touca.

Marien pressionou as mãos contra os lábios, tentando frear o riso descontrolado. A imagem do meu pai de touca voltou novamente para minha mente, fazendo-me acompanhá-la na risada.

- Oh não, querido! - ela suspira entre os risos. - Você fica horrível de touca! Parece um ovo!

- Ok, mãe. Muito obrigado pela grande perspectiva de autoestima. - ele resmunga enquanto revira seus cereais. Então, como se tivesse se dado conta de algo, ele se vira e me encara. - Mas temos outro problema a discutir além da minha capacidade de usar toucas.

- E esse seria...? - pergunto desinteressada, mas me ilumino com o assunto. - Ainda bem que você mencionou sobre problemas. - reclamo, me aproximando de ambos como se fosse partilhar um segredo horrível. - Acho que temos uma epidemia de mosquitos sanguessugas no meu quarto. - falo num tom baixo. Ok, mosquitos. Chocante, certo? - Não poderei sobreviver outro dia para contar a história nesse ritmo. Acho que serei dissecada por muriçocas sanguinárias.

- Não seja dramática, é só comprar um pouco de baygon. - ele aponta com a colher. - Estou falando de escola. Não pense que vai escapar.

- Você está louco???? Essas coisas dão leucemia! Então ou você me deixa morrer lentamente nas mãos de muriçocas sanguinolentas ou você assiste sua filha se deteriorar no futuro? É isso? - comento com indignação, enrolando para levar a conversa a outro rumo, além do assunto "óbvio interesse paterno na minha vida educativa". - Eu pensei que eu poderia tirar um ano sabático, o que acha? Totalmente renovador. - comento com um ar inocente, lançando a possibilidade no ar, esperando que ele a compre.

Marien ri e ergue uma sobrancelha.

- Boa tentativa. - ela comenta. - Você já está matriculada em Leavenworth High. Começa daqui a exatos três dias. Tempo suficiente para fazer as compras escolares, o que acha? Vamos rezar que daqui pra lá todo o seu sangue não vaze com os ataques das temerárias muriçocas!

Deus me ajude, eu acho que estou mastigando cimento.

- O que? Mas as férias em New York só acabam daqui a duas semanas! Por que aqui começa em três dias? Vocês não sabem o que é aproveitar o tempo livre?

- Nós sabemos como aproveitar o tempo livre muito bem. Você verá.

Eu olho interrogativamente para o meu pai, mas ele levanta as mãos como quem diria "me tire fora dessa, garota".

- Está pronta para sair hoje? - Marien pergunta.

- Tão pronta como eu posso estar após saber que eu vou ser jogada aos cães mais rápido do que eu imaginava. Maravilhoso. Vocês poderiam ao menos ter amaciado a carne antes de levá-la à panela! Quanta falta de consideração!

- Perfeito. Te vejo na porta da frente daqui a uma hora. Não se atrase. - Marien diz, sem adicionar mais nenhum comentário à minha crise.

Ela aponta o garfo para mim e, depois de retirar a louça, sobe as escadas com passadas rápidas e silenciosas. Eu encaro meu pai do outro lado da mesa e ele me direciona um dar de ombros apologético.

- Você vai me deixar para morrer aqui? Com muriçocas e o fato amaldiçoado que essa cidade desconhece qualquer menção sobre calendário escolar e férias? - eu levanto um dedo acusatório para ele.

- Não sei do que você está falando. - ele assovia baixinho, tentando disfarçar sua culpa. - Opa, olha a hora! Tenho que ir para o escritório da cidade fazer minha entrevista!

E, rapidamente, com um breve beijo na testa de despedida, ele dispara pela porta da frente.

~ - ~

Eu estou inquieta. Já troquei de roupa umas três vezes, mas nenhuma parece transmitir "ei, vó, é bom conhecê-la depois de tanto tempo, estou muito ansiosa para passarmos um tempo juntas". Olho para o relógio pela vigésima vez consecutiva num intervalo de 10 minutos, enquanto caminho através das caixas para encontrar meu coturno. A hora está a escassos segundos de chegar e, percebo com relutância, eu não me sinto pronta para esse momento. Um momento que, apesar de inevitável, é algo que eu nunca estive preparada para lidar. Eu não sou do tipo nervosa. Eu sou estável. Eu lido com as situações da forma mais razoável possível. Eu sei manter a calma durante questões com potencial alarmante. Mas, apesar de todos esses rótulos, eu me sinto prestes a quebrar numa pilha de nervos e ansiedade. Foco nas coisas pequenas para evitar me desesperar: primeiro, com apreensão, vasculho as caixas em busca dos meus jeans e, em seguida, pego meu suéter de malha. Eu me visto e respiro fundo enquanto calço meus sapatos. Olho para o relógio novamente. Faltam 5 minutos.

Tic, toc. Tic, toc. 3 minutos.

Estou quase lá.

Passo pela sala de estar, parando para encarar um retrato do meu pai mais novo com uma janelinha entre os dentes claros. A imagem me traz um sorriso. Eu me recosto no sofá magenta para admirar a coletânea de fotos e lembranças, absorvendo as várias etapas da vida dele eternizadas em retratos. Estou protelando enquanto Marien não desce, mas isso diminui meu nervosismo.

Tic, toc. Tic, toc. Está na hora.

As pisadas delicadas e pontuais ecoam no andar de cima enquanto Marien faz seu caminho escada abaixo. Ela está mais casual do que ontem à noite, trajando apenas jeans e uma camisa estampada com um cardigã, mas o toque elegante está lá em algum lugar. Ela me encara com uma expressão pensativa e sorri minimamente, indicando a porta da frente com um menear da cabeça.

- Vamos lá. - ela caminha na frente, deixando-me segui-la na retaguarda. - O itinerário de hoje é interessante. E uma surpresa. Seu pai nos encontrará no final do dia para jantarmos fora.

~ - ~

Meu coração está acelerado. Eu nunca pensei que poderia experimentar uma dose tão alta de adrenalina tão cedo da manhã. Minha avó está ao meu lado brincando de ser melhor amiga do acelerador. Esta manhã, quando chegamos à garagem, deparei-me com provavelmente o último carro remanescente dos tempos do fordismo. O fusca parecia tão decrépito que eu estava desconfiada se ele poderia dar um passo sem estancar. Quando perguntei à Marien, ela apenas me deu um sorriso lunático e estapeou a capota, murmurando:

- Quem, Bernie? Esse carinha consegue andar três quarteirões sem morrer! É quase um campeão!

Eu esperava seriamente que ela estivesse brincando. Mas meu pânico não foi real até entrar no veículo. Meu primeiro pensamento foi: bem, se for para morrer, irei me enrolar três vezes com o cinto de segurança e pegar um saquinho, caso eu tenha um ataque de pânico. Só que 1) o cinto estava tão desgastado que mal dava para me segurar sem ameaçar torar e 2) o saco não foi necessário, visto que eu pulei a fase do pânico diretamente para a fase do ataque cardíaco. Descobri da pior maneira que Marien estava brincando. O carro não só suportava três quarteirões, como aguentava desafiar as leis da física ao ultrapassar o nível de velocidade tolerável pelo meu sistema nervoso. Marien parecia amar instigar o motor a tal ponto que eu passei a me questionar se as vacas não possuíam mesmo esse aspecto borrado e se eu não as havia visto do modo errado durante minha vida toda. No final, éramos apenas eu e a alça de segurança, duas amigas fiéis agarrando-se uma a outra para assegurar alguma estabilidade ao meu emocional desequilibrado.

Marien possui aquela selvageria juvenil ao pisar no acelerador, rindo enquanto nos aproximamos do centro. Vez ou outra, ela me reprime dizendo que eu preciso me alimentar melhor, porque estou pálida como a morte, e eu solto um sorriso fraco, focando minhas forças em segurar a alça até que os nós dos meus dedos percam toda a circulação sanguínea. Ela para no acostamento de um edifício e puxa o freio de mão, soltando o cinto e desligando o motor do carro. Desliza para fora com graciosidade, enquanto eu praticamente lanço meu tronco para fora com a leveza de um hipopótamo. A rua é estreita e com um calçamento deplorável. Os poucos prédios que a compõem possuem um aspecto deteriorado pelo tempo e o movimento é fraco, resumido pela quantidade limitada de veículos no estacionamento da única loja presente. Eu franzo a sobrancelha, desconhecendo o local. Não que eu pudesse me lembrar de qualquer forma, já que havia anos que não pisava na cidade. De fato, tudo o que me lembro de Leavenworth resume-se a uma única rua principal, onde o comércio é agitado. Não é como se eu fosse ganhar o prêmio de melhor guia turística de Leavenworth.

- Divertido, não? - Marien ri enquanto tranca o carro. - Espere para fazer de novo! Bernie é uma antiguidade!

Eu solto um riso fraco. Só há duas maneiras de isso acontecer de novo, e apenas se a) Bernie tiver um infarto em termos mecânicos e nunca mais ligar novamente ou b) Bernie for substituído por uma adorável Audi chamada Sônia.

Ela me deixa à deriva no estacionamento enquanto sai para comprar algo na loja. A calçada tem um aspecto sujo e empoeirado, e eu me retorço com repugnância. Retiro da minha bolsa um pouco de álcool e gel e respingo na minha mão por precaução.

Então, eis a bomba: eu sou uma germofóbica em reabilitação. Não, não participo de reuniões de grupo, onde me levanto e digo "eu sou uma germofóbica e faz três meses que não lavo minhas mãos cinco vezes seguidas, num curto período de tempo, para me certificar que estou limpa" e recebo um "nós te apoiamos, Liv". Apenas tenho aprendido a controlar minha paranoia com o tempo. Eu já não acordo e me direciono ao banheiro, pensando em bactérias ninjas que voam do vaso até a minha pobre escova de dente, toda vez que dou descarga, com um plano maligno de passar a perna em mim e se instalarem na minha região bucal - apesar dessa história ser verídica -; não ataco as maçanetas de locais públicos com álcool e gel antes de utilizá-las; já não tenho mais uma crise de pânico ao pensar que toda vez que conto meu dinheiro um vírus ou uma bactéria está tentando me infectar; tampouco passo a noite contando carneirinhos, temendo estar compartilhando meu sono com pilhas de germes. Mas como toda grande paranoica, regras devem ser estabelecidas e seguidas: sob hipótese alguma - nunca, em nenhum momento sequer - utilizo banheiro público ou como alface fora de casa, secadores de mãos são um ultraje para a minha pessoa e transportes públicos estão definitivamente banidos da minha existência. O perigo está à espreita em todo lugar, e os germes não descansam! Sua pia, sua escova de dente, seu teclado, seu celular... Nada escapa da vigília desses agentes patogênicos nojentos! Mesmo sua lavadora é vítima... Quer dizer, até tu, Brutus?! Agora a única coisa que me acompanha nessa odisseia contra os germes é o meu indissociável álcool e gel. Estou tentando reduzir a quantidade de vezes que esfrego minhas mãos com álcool em média. Meu pai até acha divertido essa mania, tanto que me comprou uma caneca com os dizeres "um germe passou por aqui"; ele achou que seria engraçado, mas apenas teve que lidar com minha abstinência de tomar líquidos através de qualquer copo por cerca de cinco meses. Então, resumidamente, não sou grande fã de locais sujos.

- Merda, vamos! - Marien volta agitada, correndo com algumas sacolas desajeitadamente, assustando-me para fora dos meus delírios. Surpreendo-me com o fato dela não se estabacar no chão com o salto que está calçando. - Esqueci que tinha que pegar a fantasia na loja!

- Fantasia? Que fantasia? - pergunto sem entender nada, mas me emociono com sua agitação e acabo correndo com o mesmo desespero que ela pra dentro do veículo.

- A fantasia para o Dia dos Fundadores! - ela comenta apressada, atrapalhando-se com o monte de coisas em suas mãos. Ela me considera por um segundo e depois joga tudo para cima de mim, como se eu fosse uma grande idiota sem nenhuma contradição com o fato de ser feita de encosto. Ela derrama tudo e dá um suspiro, como se tivesse carregando todo o peso do mundo em nível de estresse. Eu bufo irritada embaixo de quilos de tralha.

- A fantasia para o dia de quem? - pergunto sem entender.

- Pra o dia dos fundadores! - ela repete novamente com o brilhantismo de quem quer dizer "se toca, menina, acabei de falar". Bem, dã.

- Você fala como se essa frase fosse me dar alguma clareza. Ainda estou perdida, vó.

- Leavenworth é a cidade com maior índice de turismo no estado, então sempre há eventos grandiosos como esse. - ela traduz. - Amanhã é o dia que a cidade foi fundada, então a festividade é ainda maior! Para celebrar e entreter os turistas, todo ano há uma representação. Voltamos cerca de 200 anos na história da cidade e interpretamos como se vivêssemos naqueles dias. Todo mundo usa fantasia para incorporar a volta no tempo! - ela para um momento para olhar pelo retrovisor ao engatar a ré. - E o que eu falei sobre a palavra com V? O que ela é?

- Banida da nossa convivência. - adiciono com um muxoxo, largando todas as porcarias no banco traseiro.

- Muito bem! - ela confirma com entusiasmo, vertendo o volante num ângulo de 180 graus, enquanto pisa no acelerador. Eu preciso ser muito rápida para me lançar para a minha - já esquecida - melhor amiga, a alça de segurança, antes que o impacto da curva me carregue janela afora. - A loja abre daqui a cinco minutos e todas as fantasias boas vão esgotar-se!

Ela berra como se isso fosse um dilema realmente relevante, digno de competir com assuntos como a fome na África, a crise no Oriente Médio ou o terrorismo.

- Isso seria terrível! O grande horror! - dou corda apenas para distraí-la da ideia de me matar com o carro.

Ela dá uma olhada de soslaio para mim, percebendo que eu não estou nenhum pouco horrorizada. Ela se inclina sobre a marcha e eu penso que vai me dar um tapa, mas puxa o porta-luvas, retirando uma sirene da polícia. Fico tão besta que esqueço que ela não está de olho na estrada. Ela para o suficiente para depositar a sirene no teto do veículo, utilizando a desculpa do barulho de alarme dela para acelerar ainda mais pela rua, como se o fato dela estar com uma sirene torna plausível estar quebrando qualquer limite de velocidade.

- Você roubou uma sirene da polícia?!!?!!?! - eu pergunto, soando o mais estridente possível. Estridente é a palavra correta.

Ela engasga com uma gargalhada. Estou quase cogitando a possibilidade de a minha avó ser louca.

- Não seja ridícula, Liviana! - ela me repreende aos risos. - Eu sou da polícia, esqueceu?

É a minha vez de engasgar. Eu tinha esquecido totalmente! Francamente, depois de uma vida inteira afastada dela, tendo notícias apenas por bilhetes vagos com recados de carinho, meu lapso de memória é justificável. Além do mais, uma maníaca do volante, armada com um louboutin, não transmite a ideia mais tradicional de "oficial da lei".

- A ideia fugiu da minha mente. - murmuro com um pouco de vergonha.

- Delegada, pra ser mais precisa. - ela adicionou com falsa modesta. Eu me abstenho a responder seu comentário exibicionista, porque acredito que tudo que poderia sair da minha boca seria diversas variações de "qual é o problema da força policial dessa cidade?". Estou começando a acreditar que ela deve ter conseguido o cargo caindo com o salto agulha no olho de algum bandido ou atropelando algum criminoso com sua notória habilidade no volante.

~ - ~

Nós estamos nos movendo com uma velocidade desnecessária e acho que Marien não precisa se preocupar em perder seu lugar na fila, porque, assim que abrimos caminho entre os carros, todos cedem espaço para ela passar, como se estivessem cientes da catástrofe ambulante que era a motorista. Posso ouvir os "olhe, lá vai Marien, abram caminho, salvem suas vidas!" em minha mente, embora eu ache que ouvir vozes na minha cabeça não deva ser um bom sinal. Acho que o sol do interior e todos os mosquitos, além da adrenalina em alta pelo percurso selvagem no carro, estão começando a me afetar. Como um reflexo, passo a minha mão solta - a que não está segurando a alça de segurança - na minha testa. Marien pergunta se tem algo errado comigo e eu rio baixinho, negando com a cabeça. O caminho pelo menos é familiar. Alcançamos a principal da cidade, enveredando pela rua que leva à praça central, e nos encaminhamos pra uma das lojinhas que enfeitam a proximidade da praça. Pequenas lojas independentes se agrupam na vizinhança, circundando uma fonte de cerâmica que ocupa a ribalta da praça. Marien está impaciente e sai do carro vertiginosamente e, graças a Deus, consigo acompanhá-la sem cair de cara no asfalto ao sair do carro. Ela segue seu caminho até a loja mais próxima, apinhada de gente, com o movimento acelerado pela fila dupla que se forma na entrada. A fachada da loja possui um estilo moderno, com uma tintura delicada de bege e a vidraça fumê, que se ressalva com o letreiro chamativo, em cores vibrantes, anunciando o nome da loja numa fonte cursiva: "Fatality Costumes, onde a sua fantasia se torna realidade". O letreiro é uma mistura de cores quentes, figurado por uma modelo com expressão séria, portando uma máscara contra os lábios numa pose sexy. Eu caminho através da multidão de corpos para me enfiar na fila, evitando me ater ao péssimo slogan e ao trabalho pobre de publicidade antes que eu começasse a rir ali mesmo, mas Marien me olha com uma cara de escândalo e retira seu distintivo.

- Com licença, pessoal. Autoridade passando! - ela dá uma cotovelada e sai desfilando com o emblema ao alto, abrindo passagem com a pose de lady.

- Todo ano é a mesma coisa! Pare de sair abusando da sua autoridade e chegue na fila mais cedo, Mary! - um sujeito mais velho reclama com indignação, retirando o boné que usava num gesto irritado. Ele possui os cabelos grisalhos anunciando a idade e uma expressão de desgosto marcada na face desgastada pela vida. Percebo que seu tom não é de todo hostil, visto que ele ajeita a camisa de flanela que usa e dá um sorriso que enruga o canto dos olhos escuros, abrindo o trajeto para que minha avó passe desfilando com o queixo erguido. Acho estranho ele se referir a ela como "Mary", carrega muita intimidade velada nesse gesto. Olho para minha avó desconfiada.

- Cale a boca e mova seu traseiro velho, Harold! - ela retruca, mas posso notar a mais fina nota de carinho em seu tom.

- Eu estou velho, cheguei cedo e você vem furando fila! - reclama outro mais ao fundo. - Velha fascista.

Olho pra minha avó mais uma vez e ela gesticula para que eu a siga. Corro no seu encalço antes que seja engolida pelo mar de gente.

- Não ligue para o velho Earl, ele chama a todos de fascistas. - ela murmura no meu ouvido quando nos aproximamos do balcão.

Eu paro um momento e avalio o ambiente ao meu redor. O cenário refrigerado do âmbito é o usual do que se pode esperar de uma loja de fantasias. Diversos cabides estão dispostos em desordem pelo recinto, sem organização de cor ou nome, com alguns enfeites de festa bastantes extravagantes espalhados por diversos cantos aleatórios. No recanto do cômodo, há uma porta de mogno emoldurada com a placa "provadores", onde há uma pequena manifestação de vozes desconexas. O espaço é restrito, comparado com a quantidade de gente que está de passagem para pôr as mãos em uma fantasia, e eu me espremo contra o balcão de madeira para esperar ser atendida junto com minha avó. Atrás da bancada há uma grande estante com acessórios para as fantasias e, na lateral, uma cortina que dá entrada para outro cômodo ao fundo.

- Greg, uma ajudinha aqui! - Marien chama, gesticulando a mão como se o homem, cujo nome foi declarado, fosse um cachorro.

O sujeito sai detrás das cortinas carregando alguns tecidos e vestuários e eu me surpreendo com o fato de ser apenas um adolescente. Repare que quando eu digo "apenas um adolescente" soa como se fosse apenas um menininho sardento, com aparelho, que apenas acabou de descobrir o que havia dentro da cueca, então acho que não fui muito justa. Deixe-me dizer: ele é lindo. Ele tem um rosto afilado, mas um maxilar proeminente, o que lhe dá um aspecto delicado, mas ao mesmo tempo firme. Seu cabelo é curto e possui um tom dourado que parece ouro, o que assenta bem com seus olhos verde-musgo. Ele tem um porte atlético - é forte, rígido, mas não é musculoso. Parece se enquadrar naquela fisionomia fixa da categoria de quarterback: loiro, forte e encantador.

- Ei, delegada! - ele cumprimenta Marien, depositando a carga que estava segurando numa cadeira próxima a ele. Ele sai limpando suas mãos num tecido com um sorriso atravessado no rosto, numa cena digna de filme. - O que eu posso fazer pela sua autoridade?

- Deixe de ser bobo! - Marien abana com a mão, como quem diz "ah, pare com isso" e eu fico abismada ao ver que ela está corada. - Vim pegar minha fantasia para amanhã! Seu pai conseguiu as duas extras que eu pedi?

- Duas extras? - pergunto desconfiada.

- Ah, querida, que má educação a minha! Greg, essa é a minha... - ela inclina o corpo contra o balcão num tom sussurrante. - neta. Liv, esse é o Greg, o filho do dono da loja!

- Por que você está sussurrando? - eu bufo. - As pessoas devem saber que você tem uma neta! Você não nasceu ontem, vó.

Greg solta um risinho baixo e me olha, demonstrando interesse no espécime peculiar que apareceu em sua loja tão cedo da manhã. Se ele fica intrigado com a garota de mechas turquesa à sua frente, não esboça nada em sua expressão incólume de garoto de ouro. Ele pisca para mim e solta um sorriso galanteador digno de derreter minhas duas pernas, e eu tento ao máximo mantê-las em seu estado sólido. Falho miseravelmente, é claro.

- Prazer, Liv. - ele demora o olhar em mim por mais alguns instantes e se vira para minha avó, que está me condenando pelo meu comentário. - Infelizmente, teve um problema com a sua encomenda de última hora.

- Que encomenda? - insisto.

- A sua fantasia e a de seu pai, é claro! - ela me olha como se eu fosse burra, ou algo assim, e depois se vira novamente para Greg. - Que problema exatamente, querido?

- Como você as pediu de última hora, foi difícil achar. - ele fala num tom delicado, como se esperasse que minha avó enfiasse o salto agulha na garganta dele a qualquer momento. - Conseguimos a masculina, mas tivemos uma dificuldade em achar a roupa para a menina.

Fantasia? Roupa? Que roupa? Eu vou ter que usar uma roupa? Era só o que me faltava!

- Não conseguiram nada?

- Ah, conseguimos. Mas é meio... - ele procura a palavra certa no ar. - pobre.

Uma roupa de 1800 e tanto, e ainda uma roupa de pobre! O que isso significa? Vou ser uma mendiga?

- Não tem problema! Não é, querida? - ela me olha com um olhar firme que diz que eu não devo recusar. - Ela vai adorar participar dos nossos costumes festivos! Tenho certeza que não se importará se o tecido for um pouco desgastado...

Greg se engasga com uma risada e depois tosse se desculpando. Eu o encaro com os olhos cerrados. Acho que "tecido um pouco desgastado" é um eufemismo gritante e eles não estão querendo se entregar.

- Tudo bem. - solto um suspiro derrotado. Não é como se eu tivesse muita autonomia para negar alguma coisa. De qualquer forma, papai e Marien provavelmente me forçariam a usar qualquer coisa sob tortura emocional...

- Ótimo! - Marien anuncia alegremente, dando palmadinhas para gesticular o desfecho da compra.

Greg adquire toda uma postura profissional e dispara até o interior da loja para buscar as encomendas, voltando com vários pacotes pesados. Eu me assombro quando Marien o manda jogar tudo para cima de mim. De repente, meus braços são preenchidos com calças, coletes, espartilhos, vestidos, tudo guardado em sacolas grandes, além de dois grandes aros, que devem ser colocados por baixo dos vestidos, que não cabem em nenhuma sacola, me fazendo ter que dar um monte de pulos para tentar equilibrar tudo nas mãos sem cair ou tropeçar. Estou começando a achar que meu grande dia com minha avó tem menos a ver com passeios interessantes, onde recriamos nosso laço inquebrável de ligação, e mais com o fato dela querer me arrastar como burro de carga pela cidade.

Eu a sigo para fora do estabelecimento com minhas manobras de malabarismo, enquanto ela vai à frente reclamando por eu ser "muito lenta" e por ela "estar apressada para resolver suas coisas". Assim que a alcanço, jogo tudo dentro de Bernie sem nenhum pudor, lançando os pacotes no banco de trás, transformando o pobre fusca num amontoado de embrulhos. Bufo em resignação. Será um longo dia.






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