BÔNUS
Quando o afeto é tido como preocupação:
Ah, a Fogueira! O leque de garotas bêbadas, extasiadas e facilmente impressionáveis, a bebida fácil, o clima aconchegante, a música pulsante, o cheiro de hormônios e álcool e a desculpa afável para diversão... Definitivamente, minha festa favorita. Mas, no mundo real, cheio de pessoas reais com compromissos reais, o acaso de se realizar num dia normal de trabalho parece a sentença do meu azar.
- O que você pensa que está fazendo, Carter? - ouço uma voz grave e familiar pronunciar na minha retaguarda, obrigando-me a virar na sua direção.
Aquela única sentença foi capaz de derramar um filete de água fria sobre a minha cervical, levando todas as minhas expectativas para sair de fininho por água abaixo. É assim durante todos os anos: quando estou andando nas pontas dos pés, para me infiltrar sorrateiramente na festa da fogueira, Gonzalez aparece para interpretar todos os meus movimentos com um grande estardalhaço. Fico assim, meio embasbacado, meio irritado, encarando o espanhol com os traços impacientes à espera de uma reação. Minha jaqueta desliza pendurada nos ombros e eu a visto, alternando o peso da minha posição entre as duas pernas. Sinto-me como um meliante pego em flagrante, mas não há nada que me incrime, então forço a imparcialidade para os meus traços, tentando não delatar culpa no cartório. Preciso me esforçar para não trajar minha maior máscara de "estou matando o trabalho por algumas horas de entretenimento", mas minha cara de pau é tão grande que não consigo evitar uma risada nervosa.
- Como assim o que eu penso que estou fazendo? - enrolo com uma pergunta qualquer, tentando somar tempo para inventar uma desculpa. Mas, então, lembro-me que se trata de Gonzalez e que não há exatamente julgamento nos seus olhos escuros. - Indo para a fogueira. Não tem nada acontecendo na delegacia.
Enrique Gonzalez nada mais é do que meu fiel escudeiro e melhor amigo. Durante todos os cenários da nossa infância e adolescência, sua figura é uma constante invariável, uma presença familiar, presente em todos os tropeços, desventuras e brincadeiras infantis que protagonizei ao longo dos meus anos rebeldes e inconsequentes. Ele estava lá no primeiro arranhão, no primeiro beijo, na primeira ressaca, na primeira suspensão e mesmo no primeiro emprego. Não importa que tipo de façanha eu escolha interpretar, ele sempre foi parte do pacote. Então não é uma completa surpresa sua reação:
- Eu quis dizer: o que você pensa que está fazendo indo pra lá sem mim? - ele endireita a postura e me lança um sorriso debochado, jogando um molho de chaves na minha direção. Eu apanho o objeto no ar, sorrindo em resposta. - Eu dirijo.
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- Escute o que eu te digo, Carter, garotas adoram um bom sotaque. - Gonzalez pronuncia enquanto caminhamos pela mata espessa. - Elas acham muy caliente.
- Tá bom, então como sua teoria se aplica na prática? - eu o desafio, enquanto adentramos na clareira. A música do ambiente nos engolfa com o ritmo contagiante. - Até onde eu lembro, você não é muito popular com as mulheres.
- Eu não posso fazer uso de todo o meu sex appeal. - ele me dá uns tapinhas nas costas. - Se eu usasse todas as minhas ferramentas, você ficaria sem nada para preencher seu vazio emocional.
- Que altruísta da sua parte. - eu ironizo. - Assim, a única ferramenta que importa fica sem utilidade.
- Falo sério, Carter. As línguas estrangeiras tem poder. Imagine alguém chegando bem pertinho do seu ouvido e murmurando... - ele se aproxima com o semblante sério, munido com uma intensidade que beira ao ridículo. Então, com sua melhor voz sexy de ator mexicano, sussurra teatralmente: - Quisiera ser pensamiento para estar dentro de ti.
- Cara! - eu xingo, afastando-me com horror.
- Eu disse: o poder do espanhol. Até as cantadas mais ridículas soam interessantes. - ele dá de ombros, colocando a mão sobre a face de forma exagerada. - Entende o meu fardo?
- Deve ser muito difícil afastar as garotas frenéticas do seu irresistível corpo espanhol.
- Faz parte do trabalho. - ele responde, mas sua voz é apagada pela agitação da festa ao nosso redor.
Nós adentramos a ribalta da festa e somos englobados pela atmosfera rítmica e inebriante do ambiente, sendo envolvidos pela pulsação frenética do som e dos corpos dançantes. A primeira coisa que faço ao encarar o fluxo frenético do local é inspecionar as redondezas, averiguando o movimento.
- Mulheres, Gonzalez. - comento triunfante. - Tantas mulheres!
- Tudo o que eu consigo ver são chaves de cadeia. E bebidas! - ele interpela, tomando uma cerveja da mão de um garoto qualquer, que o encara aborrecido com o gesto. Mas, com todo o aspecto ameaçador de policial envolvido na equação, o garoto limita-se a baixar a cabeça e seguir seu rumo. Eu quase me sinto de volta aos meus tempos de colegial, mas a sensação é amarga. Gonzalez toma um gole da cerveja e me olha, como se soubesse que estou viajando nas lembranças.
- Você é sempre tão negativo, muchacho. - eu brinco, tomando-o pelo pescoço. - Eu vejo uma possibilidade para você testar seu sex appeal.
- Eu não vou cortar seu barato...
- Aquela ali. - eu aponto com o queixo para uma morena qualquer, que está ligeiramente embriagada e sorridente demais. - Coloque sua magia em prática.
Gonzalez me encara com o ego ferido e eu solto um sorriso lascivo, estreitando meu desafio na postura hirta. Sim, amigo, é assim que a banda toca. Não adianta soltar suas palavras ludibriantes e escapar sem dançar ao som das maracas. Percebo que ele estufa o peito para juntar coragem e me dá uma olhada imperativa, totalmente confiante do seu poder persuasivo, antes de seguir na direção da pobre garota. Coitada, mal sabe a torrente de baboseiras que vai atingi-la. Eu o sigo disfarçadamente, tentando manter a casualidade nos meus passos, e paro à uma distância segura. Gonzalez matuta um pouco com as palavras, mas logo a encara com um sorriso sacana e diz:
- Hola.
- O que? - ela pergunta com o tom alto, sem entender o que diabos ele falou. Eu engulo um riso preso e forço minha audição.
- Yo estaba mirando-te... Desculpe, é que eu começo a falar em espanhol quando fico nervoso. - ele dá um sorriso culpado e a menina se inclina em sua direção, como se estivesse genuinamente compadecida da falta de habilidade linguística dele.
- Coitadinho, deve ser muito difícil. - ela coloca a mão nos ombros dele.
- Sim, e como... - ele fala tristemente e eu não consigo evitar a risada. - Eu queria muito hablar... Perdão... Vim aqui porque precisava muito te dizer algo. - ele aproxima-se dela, tomando-lhe as mãos. Ele franze as sobrancelhas de forma expressiva e interpreta seu melhor de galã de novela ao murmurar, com a voz rouca e os olhos brilhando, a frase-chave de toda sua atuação: - "Vení a dormir conmigo: no haremos el amor, él nos hará."
Percebo que ele está quotando alguém na tentativa de impressioná-la. Ela não fala nada, apenas diminui o espaço entre eles, totalmente absorta com a intensidade que Gonzalez bota naquele besteirol. Eu encaro a cena num misto de divertimento e choque. Pobre garoto estrangeiro e as barreiras linguísticas que ele tem que enfrentar... Eu balanço a cabeça negativamente, afastando-me dos dois. Logo após uns minutos, Gonzalez se encaminha até mim com um sorriso presunçoso.
- O que posso dizer? - ele ri. - O poder do espanhol.
Eu quase concordo, mas minha atenção se prende no emaranhado de fios turquesa, que ricocheteiam pelo ar, que cobrem a expressão empenhada de Liv ao equilibrar uma maçã no nariz. Parece até uma piada a forma que meu olhar se atrai e pousa no contorno do seu corpo, recusando-se a desviar do esboço das suas coxas, dos seus braços, dos seus lábios. Liv é o retrato de tudo o que eu quero, mas não posso ter: encrenqueira, irônica, inteligente e, por incrível que pareça, imune às minhas investidas. Mas, se ela guarda todos esses prós no seu orçamento, não devo nem mencionar o grande contra que grita em alarde e a cerca com arame farpado: sua avó. A minha maldita chefe. Marien à parte, Liv ainda é uma garota ingrata e recordista em se lançar contra coisas explosivas e em movimento. Definitivamente há uma placa de aviso em algum lugar na sua personalidade conflituosa, eu que não sou acostumado a me prender a detalhes insignificantes. De toda forma, creio que seu maior desafio no momento não seja o nível apropriado de acidez em suas respostas, mas a grande e suculenta fruta que ela tenta, com muito esforço, manter no lugar. Há alguns fios de suor passeando pela face ruborizada, arrastando-se contra o queixo triangular enquanto ela joga a maçã para o alto e tenta apoiá-la nos seios. Alguns casais tentam copiar seus movimentos e até conseguem êxito no malabarismo de maçãs, mas Liv está tão rígida que pode cair pra trás. A maçã está quase apoiada sob o queixo e o busto, mas, com a ironia dos fatos, escorrega pela pele suorenta e cai na areia molhada. Liv xinga baixinho de forma embriagada - percebo pela forma que sua testa se franze, formando um junco, porque é a mesma forma que sua expressão se contrai quando ela está destinando todo o seu escárnio para o meu lado - e cambaleia até o engradado mais próximo. Meu olhar a acompanha quase que instintivamente, como se não pudesse se desgrudar da sua silhueta fina e frágil, e eu preciso me esforçar muito para não caminhar até sua direção obstinadamente. Estou quase cogitando falar com ela, mas Gonzalez me dá um tapinha repreensivo e se retira para pegar algo. Não que eu vá atacá-la ou declamar meu amor indiscutível a seu respeito. Eu só almejo mais uma oportunidade para tirá-la do sério, para poder observar como suas feições se contorcem como se delatassem o esforço que ela faz para não me matar. É tão engraçado saber o quanto a afeto.
- James? - ouço uma voz aguda e estridente me chamar, o tom derretido numa bajulação velada. Estreito os olhos para encarar a garota baixinha que me analisa com os olhos felinos.
Eu movo os olhos até Liv novamente, só para vê-la ser engolida pela multidão de homens que circulam o barril de cerveja. Com muito esforço, retorno minha atenção para a menina, passando as íris pelo seu corpo delineado, até pousar na sua face arredondada, alternando minha visão do seu busto proeminente para seus lábios, curvados num sorriso lascivo, mapeando sua imagem. Ela tem os cabelos loiros cortados na base do ombro, porém, contrastando com o comum, seus olhos são castanhos. Parece-me familiar, mas seu nome foge do meu alcance como se eu estivesse perseguindo fumaça.
Como todo sujeito preso numa encruzilhada temendo se entregar pela perda de memória, opto por usar a tática da impessoalidade, tentando me manter o mais longe da proximidade possível. Não posso lembrar mais a frente que sou íntimo da garota no nível de usar apelidos, porque isso seria meu fim:
- Ah, oi. - respondo com um sorriso distante, ouvindo uma série de urros apreciativos vindos da direção onde Liv se meteu. Essa menina está mexendo com as minhas habilidades cognitivas. Não consigo desviar minha atenção dela. - Qual o problema?
- O problema? Você é, tipo, tão engraçado. - ela dá uma risadinha de hiena e toca meu braço. Eu fiquei processando esse gesto por um segundo. - Eu estava te procurando! Você me disse que tentaria vir para cá! E bem, aqui está você!
Então ela se pendura no meu pescoço, enlaçando-o num gesto bruto e possessivo. Não estranho seu comentário... Eu realmente tenho o péssimo hábito de dizer muitas coisas para muitas garotas. Isso não significa que elas devam acreditar e, como a maioria delas é principalmente dita da boca pra fora, isso também não implica passe livre para estuprar meu pescoço. Eu tento afastar suas unhas delicadamente, temendo o estrago que possa desencadear um ataque, mas ela se agarra com força contra mim, mantendo a fricção dos nossos corpos. Não que eu reclame...
Só que, contra todos os instintos, meus olhos não conseguem se fixar na poça de chocolate que são os dela, eles apenas continuam vagando pela multidão em busca de algo, em busca de alguém, numa perseguição frenética que só cessa com a colisão das nossas imagens. Verde contra castanho escuro. Liv está solta na pista, dançando hipnoticamente num ritmo que é só dela, como se ela tivesse a própria frequência e seu corpo só a acompanhasse, com os olhos meio opacos, meio perdidos, parecendo completamente entretida em extravazar sua luz noturna. Ela não me vê. Ela nunca percebe esses ínfimos momentos de adoração pura, onde eu paro para apreciar sua figura e sua energia rítmica. Mas é verdade: ela tem seu próprio centro magnético e, muitas vezes, as pessoas orbitam ao seu redor.
- James... - a garota suspira no meu colo, descendo os lábios pela minha jugular, distraindo minha atenção do grupo de country. Mas eu estou tão atento aos movimentos de Liv que percebo, pela visão periférica, o rapaz se aproximando por trás dela.
Mas que merda, cara? Relaxe! Eu já estive com meninas de todos os tipos e sabores, já encantei metade da cidade com apenas um olhar, já até mesmo conquistei um grande público feminino, então por que diabos eu não consigo tirar meus olhos de uma única garota?
Eu quero tanto me desligar de tudo, cortar toda essa sensibilidade sensorial que me ataca, que finjo não me importar por apenas um momento. Um momento é suficiente para tudo desandar.
A garota ainda se enrosca em mim, como se tentasse somar nossos membros, mas o bolso da minha calça vibra e eu me afasto para atender o celular, agradecendo ao momento oportuno.
- Alô? - pergunto, tapando o ouvido para ver se consigo compreender melhor.
- James... não sei pra quem ligar... Marien não vai gostar... Liv... Me ajuda... Fogueira... - eu tento conectar as frases aleatórias, mas me perco em meio ao barulho.
- Alô? Quem é? O que foi?! - pergunto mais alto, afastando-me do barulho.
- James, onde você está? - reconheço a voz inquisitiva de Anne e suspiro resignado. - Ah, merda! Você já está aqui, né? Você não toma jeito!
- Anne? O que foi? Me ligou para dar lição de moral? - resmungo.
- Ora, você não é policial, idiota? Estou ligando pra fazer o trabalho que você deveria estar fazendo. - ela alfineta, totalmente irreverente. Anne sempre foi a única que não se importava em me dar uns beliscões se preciso. - Ah, cale a boca! A Liv está muito bêbada e acho que ela saiu com um cara totalmente estranho pra algum lugar e agora não consigo achá-la! Trate de ser útil e a encontre!
Eu desligo o celular com a adrenalina pulsando nas minhas veias. Passo o olhar rápido pela multidão, sem encontrar vestígios das suas madeixas turquesas. Olho para o outro lado e encontro Gonzalez entretido com as bebidas, totalmente alheio ao que está acontecendo. Obrigo-me a controlar meu temperamento e puxá-lo pela lapela da jaqueta, arrastando-o pelos calcanhares enquanto vasculho os rostos borrados ao meu redor. Onde diabos aquela garota se meteu?
- Mas que merda, Carter! Solte a jaqueta, é Armani... - ele se empertiga e solta com um suspiro derrotado: - Do paraguai.
Eu o solto com força.
- A Liv sumiu com um cara, mano, e a Anne está desesperada procurando, sem sinal aparente. - eu berro, tomando sua camiseta com as mãos histéricas. - Temos que achá-la.
- Certo, dios mio. Marien nos matará. Vamos, por aqui. Eu a vi vindo nessa direção. - ele me empurra, provocando um choque nos meus membros inferiores.
Nós procuramos em todo buraco, caçando através das moitas, das rodas de amigos, das brechas oportunas, mas não há um rastro de Liv em lugar algum. O pânico está começando a se apoderar de mim, embora eu não saiba de onde surgiu essa agitação repentina, alastrando-se pelo meu interior e atingindo-me com força nas vísceras. É um medo vívido e maleável, que acaba se esticando morosamente pelo meu peito à medida que falhamos uma vez ou outra a encontrá-la. Sinto que estou suando frio, algumas gotículas escapando dos meus poros para passear pelo meu semblante preocupado, mas creio que se deva mais pela preocupação aguda em achá-la do que pelo esforço da nossa peregrinação. Onde diabos ela se meteu? Por acaso ela pulou a aula introdutória materna sobre não falar com estranhos?
- James, por aqui. - Gonzalez aponta para uma região vazia, sua voz preenchendo todas as lacunas da minha mente. Eu me obrigo a segui-lo, meus passos parecendo cada vez mais pesados contra a lama, enquanto ele prossegue a chamá-la com seu tom imperativo: - Liv! Liv!
Estou começando a achar que estamos perdendo tempo, quando ouço sua voz fina, munida de desespero, chamar:
- Aqui! Eu estou aqui!
Eu apresso o passo, correndo em disparada em direção ao seu alerta, não me importando se meus pés estão afundando contra areia molhada, se Gonzalez murmurou algum pedido para que eu desacelerasse ou se meu coração pareceu perder o compasso dos seus batimentos. Sou movido por uma urgência tão crua que não penso, apenas sinto. Ela está ali, sua figura meio pálida, completamente encolhida na própria insegurança, segurando o bocal de uma garrafa quebrada. Sua expressão parece levemente atordoada, os olhos verdes perdidos numa bruma insignificante, refém dos próprios pensamentos. Seus cabelos loiros estão desgrenhados, alguns fios loiros e turquesas se misturando no processo, mas minha atenção está toda nos seus lábios, inchados e vermelhos, que delatam o estrago feito. Acho que Gonzalez está murmurando algo pra ela, mas ela não parece ouvir. Eu tampouco posso traduzir as palavras distorcidas pelo vento. Meu único foco é o garoto abusivo deitado contra a grama escassa, a cabeça reluzindo pela ferida aberta. Meu maxilar range com a visão. Sinto meu sangue ferver pela vontade de dar uma lição no sujeito, mas eu me controlo, fechando o punho com força. Não posso sair por aí espancando civis, mesmo que eles mereçam. Tento repetir o pensamento na minha mente, numa forma pacífica de acalentar a fúria incontrolável que me domina. Liv pode não perceber, mas ela funga baixinho, deixando a garrafa cair inconscientemente, num gesto tão imperceptível que eu só consigo notar pela forma em que meus olhos se prendem no seu contorno esmorecido. Então, surpreendentemente, ela se lança em minha direção, afogando a cabeça no meu peito para apagar o mundo à sua volta. O movimento me pega de forma tão súbita que o ar ao meu redor parece rarefeito, mas eu não a afasto. Contradizendo todo o nosso comportamento explosivo ao redor um do outro, eu a puxo para mais perto. Eu me pergunto se ela pode sentir o tremelique apavorado dos meus membros, que teimam em refutar meus protestos em me manter estável. Liv tem um poder estranho sobre mim. Não consigo explicar, mas mantê-la assim, sustentada pelos meus braços rígidos, parece, de certa forma, correto.
Eu observo, de soslaio, a forma que Gonzalez gesticula em minha direção, para sinalizar que ele está indo para o carro com o sujeito rendido, fazendo-me acenar em concordância. Eu penso em me mover, mas estou muito relutante em quebrar nosso contato. Ela está tão apertada contra meu peito, pressionando-se mais forte para afastar tudo que aconteceu, que eu apenas me limito a envolver sua omoplata com minhas mãos, tateando o esboço das suas costas com um afago. Meu toque parece empertigá-la, deixando-a desconfortável, e eu cesso por um minuto, esperando que sua respiração entrecortada se normalize. Não sei o que há com essa garota que me incita um intuito voraz de protecionismo. Não sei o que há de diferente nas suas pupilas dilatadas pelo medo ou na forma como a luz bate nos seus cílios e delata, como um holofote, todas as interrogações dos seus olhos verdes. Não sei. Com Liv é assim: estou sempre afogado na inconstância das incertezas. Eu coloco o dedo abaixo do seu queixo e o ergo, exigindo que ela me olhe, me enxergue. Ela parece tão transparente por um momento, mas então sua expressão se endurece como ferro.
- Você está bem, Liv? - eu questiono, buscando por alguma rachadura na sua máscara de segurança.
- Eu... Desculpe-me, eu não devia ter me jogado pra você assim... Eu só... - ela se embola com as palavras, ainda presa nos meus braços. Eu dou um leve aperto nela, o que a faz se afastar bruscamente. - Eu estou bem, Carter.
- Você não me parece bem. - eu afirmo com a voz plana.
- Não me importa o que te parece, James, confie no que eu digo. Eu estou... - ela responde amargamente, e eu a puxo firmemente pelo pulso, obrigando-a a me encarar.
- Pare de se fazer de durona. Eu te vi vulnerável, não se esconda de mim. - eu a puxo para mais perto, mas minha atenção se prende na sua mão destra, que tem um pequeno arranhão escorrendo sangue. - Você está sangrando, Liv.
Seus olhos passeiam pelo meu rosto e voltam para o próprio pulso, exprimindo uma resposta angustiada.
- Ah, James... Não é nada. - ela abaixa a cabeça, passando o pano da blusa para estancar o sangramento. - Eu vou ficar bem. Como é aquela propaganda mesmo? "O mundo é uma selva. Seja um predador"?
- Não seja idiota. - vocifero, assistindo ela endurecer sua armadura. - Não tem porque vestir sua muralha agora. Você não precisa lidar com isso sozinha.
Eu toco o ponto onde ela faz pressão no sangramento, pressionando minha mão na dela, mas tusso para fora do meu embaraço antes que ela perceba o que fiz. Seus olhos opacos me encaram como se não pudessem me ver.
- James, eu não vou colocar nas minhas costas mais peso do que eu posso carregar. Acredite, eu vou ficar bem. - ela murmura de modo vago, afastando o olhar de mim. - Eu posso segurar o que aconteceu sem quebrar. Eu só... Não quero mais falar sobre isso, está bem?
Ela se afasta, abraçando a si mesma como se pudesse se guardar na própria superfície, e eu apenas a sigo com o olhar, não conseguindo acompanhar o que se passa no meu interior. Por que ela se finge tão segura de si?
- Obrigada, James Carter. - ela sussurra tão suavemente que quase não a escuto. Então ela se vira para mim com um sorriso doce e estranho. Nunca havia visto esse lado dela. - Eu sei que ultimamente eu poupei essas palavras de você, mas é porque eu me assustei de que algum momento eu tivesse precisado de alguma ajuda. - ela estende os braços para o alto, como se desabafasse pro além. - Então, universo, talvez eu não seja tão durona assim. - então, ela aproxima-se calmamente, parando de frente para mim. - Mesmo que as circunstâncias tenham sido estranhas, você me ajudou. Dizer que salvou a minha vida é meio extremo, já que ela não corria tanto perigo assim, mas obrigada, James Carter. É bom saber que você tem empatia por algo além da sua moto.
Eu sorrio por seu comentário, notando o sarcasmo no seu tom, puxando-a para depositar meus braços no seu ombro enquanto caminhamos descompassadamente até o carro.
- Não se preocupe, Liv. Não pensarei menos de você por mostrar esse seu lado agradecido. - comento divertido, recebendo uma cotovelada irritada. - Quem sabe algumas coisas não sejam de todo incorrigíveis.
- O que você quer dizer com isso, Carter?
- Relaxe, bonita, esse é meu jeito de dizer que talvez você não seja tão mimada assim. - respondo, assustado pela minha sinceridade.
Nós entramos no carro, sendo englobados pelos xingamentos espanhóis de Gonzalez e a escassez de espaço entre nós. Eu seguro sua mão, sem saber exatamente o porquê de tudo aquilo, apenas pela busca do conforto do seu toque. Não a solto até chegarmos na delegacia.
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