03 - Flores de Cerejeira e Neve
Tem uma lembrança que não saía da minha mente e volta e meia eu me lembrava dela. Foi há muito tempo, quando a minha mãe ainda queria ser mãe. A neve caía lentamente sobre os galhos secos das árvores. Era o primeiro dia do ano e caminhamos lentamente até o templo para agradecer pelo ano que passou. Minha mãe tinha esse hábito.
Ela tinha me dado um quimono de flores de cerejeira que era a coisa mais linda do mundo. Eu acho que não me lembro a idade que tinha, talvez uns 6 anos. Minha mãe mantinha a sombrinha azul sobre nós tentando impedir a neve cair sobre a gente.
Ela era doce e gentil, por mais que eu a odiasse por me deixar para trás eu tinha lembranças boas dela. Do seu sorriso, dos cabelos ondulados longos e castanhos, seus olhos verdes como os meus. De quanto ela era elegante, e se vestia bem. Ela ficou ainda mais linda no quimono vermelho que ela usava.
O caminho até o templo era longo e foi de longe que o avistei. Era algo diferente que chamou minha atenção. Uma mulher ao lado de um garoto, aparentemente da mesma idade que eu. Eles foram se aproximando e eu pude ver melhor. Um menino de cabelos brancos com a neve, de olhos fechados. Caminhando devagar ao lado da mulher. Quando eles passaram por nós, minha mãe gentilmente cumprimentou a mulher. E depois foram seguindo. Eu parei e fiquei ainda um tempo olhando para eles, foi quando ele também parou, abriu os olhos e olhou para mim. Azuis. Os olhos mais lindos que já vi em toda minha vida.
— Vem filha, é feio ficar encarando.
Pode ser coisa da minha cabeça, mas eu acenei para ele dando tchau e por um breve instante acho que ele sorriu para mim. Eu nunca mais esqueci aqueles olhos.
(...)
Acordei num susto. Eu tinha aquele sonho muitas vezes. Uma lembrança. E ficou mais recorrente quando voltei para a escola. Não era para menos, eu tinha quase certeza que o menino, era aquele idiota. Mas, eu não seria burra de dizer a ele e o deixar ainda mais convencido.
O tempo na escola foi ficando menos ruim. Não tinha muitos alunos, a rotina era pesada. Mas, no geral, era até... divertido. Tirando o imbecil que não perdia oportunidade de infernizar as nossas vidas. Parecia um liquidificador sem tampa solto pela sala de aula. Era tanta energia que eu me perguntava como ele dormia, já eu vivia esperando o dia terminar para dormir de novo.
A parte da tarde era o treino de Jujutsu mesmo. O que seria a educação física em escolas normais, mas aqui era outro nível. Suguru, que descobri ser menos idiota que o outro idiota, mas ainda assim ele era igual ao Satoru. Viviam competindo para ver quem era o mais forte. Para mim eram dois ridículos. Mas, eu gostava do treino, dava quase para competir com os dois em força e velocidade. Eu só não gostava de ficar me exibindo. Mas, eu não recusava uma competição. Naquela tarde, os dois decidiram treinar artes marciais, a Shoko sempre ficava de fora e eu... bem, eu não esboçava interesse mesmo. Inventava um monte de desculpas.
Tô indisposta
Tô com cólica
Meu peixe morreu
Eu estava ao lado da Shoko vendo os dois machos alfa se batendo, já era nosso último horário. Suguru dava trabalho, mas normalmente era sempre o outro ridículo que ganhava.
— Você não pode inventar desculpas para o Yaga sensei para sempre. — Shoko estava sempre com um cigarro nos dedos. A maioria das vezes, apagado.
— Eu sei. Mas, eu realmente não queria nada disso. Passei a vida inteira treinando.
— Hum, para aqueles dois ali treino nunca é demais.
— Tô sabendo. — Eu queria muito perguntar, mas não queria parecer interessada em nada do Satoru, que já tinha o ego maior que o Japão. Mas, a curiosidade falou mais alto. — Shoko, por que ele tá sempre de óculos?
— Tá falando do Gojo?
— Sim.
— Ele disse que é para descansar os olhos que consomem muita energia e o desgasta muito.
— Ah... — Fiquei em silêncio meio desconfiada. Olhando para os lados.
— Quer ver os olhos dele? — Ela era certeira. Sempre ia no ponto certo. Era uma coisa que eu achava impressionante.
— Eu? Não. Não. — A negativa dupla indicava justamente o contrário. Mas, ninguém podia saber.
— Se tiver curiosidade é só pedir para ele te mostrar. Ele vai adorar. Sabe como o ego dele é grande né?
— Não quero ver. É só uma curiosidade aleatória mesmo.
— Aleatória é? Sei. — Eu não convencia ninguém, nem a mim mesma.
Quando os dois terminaram a lutinha deles, Satoru veio na nossa direção com um único objetivo: nos importunar. Não, vou corrigir a frase. ME importunar.
— Você veio para essa escola só para passar o tempo, é? — Ele disse com aquele sorriso cretino no rosto.
— Isso não é da sua conta.
— Fica aí só batendo papo. E ainda por cima é mediana nas matérias normais.
Revirei os olhos e me mantive em silêncio. Estava com preguiça demais para iniciar mais uma discussão. E aí ele disse a frase mágica.
— Ah, não posso forçar você, vai ver você nem consegue né? — Ele disse erguendo os braços.
— Satoru, pare de fazer isso com a Yosano, ela deve ter bracinhos fracos. — Suguru entrou na onda dele.
— Deve ser fraquinha.
Eu não esperei ele nem terminar a frase, parti para cima dele. Ele deu dois passos para trás e desviou. Eu não conseguia acertá- lo, mesmo quando eu tinha certeza que tinha acertado. Dava para ver que não tava levando nada daquilo a sério quando o cara luta de óculos. Eu tentava dar jabs, mas para ele era como brincadeira de criança. Algum tempo depois eu descobri que estava pondo em risco a minha vida, mas naquele dia eu estava com tanta raiva que nem tinha pensado em nada disso. Eu só queria bater nele. No quinquagésimo soco que eu tentava dar nele, ele me pegou pelo braço e tentou me arremessar, eu segurei o braço dele e fiquei de frente para ele e firmei os pés no chão. Ele continuava sorrindo.
— Olha só... até que é fortinha. E você conhece bastante sobre artes marciais.
— Cala a boca!
— Se disser que desiste eu não bato em você. Não quero que diga que sou insensível.
Eu o puxei pelo braço e tentei pegar ele pelo pescoço, mas eu percebi que não conseguia acertá- lo.
— Que merda é essa?
— Você não pode me tocar. — Ele armou o braço para me dar um soco na barriga. Eu firmei os músculos o máximo que pude. Eu senti o impacto, meus pés se arrastando pelo chão. Se eu não tivesse reforçado os músculos e tivesse o treinamento que tive provavelmente eu estaria curvada no chão vomitando. Eu firmei o semblante tentando amenizar a dor insuportável que eu estava sentindo. Quando eu consegui me recuperar eu bati as mãos no chão e armei um chute com a perna direita que ele defendeu sem nem me tocar. Ele segurou minha perna e sem esforço me jogou por cima de sua cabeça, em direção ao chão, me virou de barriga para baixo, senti o joelho dele sobre as minhas pernas, e com uma mão ele segurou o meu braço e com a outra pressionou minha cabeça no chão. Eu fiquei lá sentindo o gosto da grama.
— Desiste Kira. Você não pode me vencer.
— ME SOLTA!
Ele me soltou, eu levantei rápido e saí pisando firme na direção do vestiário. Eu não disse para ele, mas aquela foi a minha primeira derrota em anos. E foi a primeira vez que não consegui acertar nenhum soco pelo menos. Eu entrei no vestiário e tirei as roupas, olhei para a minha barriga e a marca vermelha do lugar onde ele havia acertado. E doía tanto que não dava nem para encostar. Ouvi alguém bater na porta.
— Kira, você está bem? — Shoko perguntou do outro lado da porta.
— Tô sim.
— Se precisar de alguma coisa, pode me chamar, vou estar aqui fora.
Eu odiava perder. Meu pai tinha me ensinado coisas como: "Perder é pra gente fraca". Se meu pai soubesse que eu tinha perdido, daquela maneira tão humilhante ele com certeza me castigaria de alguma forma. Terminei o banho ainda irritada, me vesti e saí do vestiário sem nem olhar para trás. Eu estava disposta a dizer para meu pai que não importa o que ele dissesse eu jamais pisaria ali novamente. Quando me aproximei da escadaria, ele estava lá. Com as mãos nos bolsos, escorado numa das muitas árvores que tinha naquele lugar. Eu soltei um suspiro pesado, fechei ainda mais o semblante e ia passar direto sem falar com ele.
— Espera nervosinha. — Ele disse segurando a alça da minha mochila.
— Me deixa em paz! — Respondi ríspida. Meu nariz estava vermelho com um pimentão, assim como minhas bochechas. Isso sempre acontecia quando eu ficava com raiva.
— Calma...
— Veio rir de mim de novo? — Eu disse já embargando a voz.
— Não precisa ficar assim. Foi só um treino.
— Você não entende! Tudo para você é brincadeira! Não leva nada a sério! — Eu disse secando as lágrimas com a manga do blazer.
— Eu só quero saber se está bem. Se... eu não te machuquei. — Ele levou a mão na nuca e ficou meio sem graça, por mais incrível que pareça. Minhas bochechas queimaram ainda mais, mas desta vez com vergonha.
— Não fala desse jeito! É esquisito pra caralho! O que vão pensar se ouvir você falando isso! — A mente suja era a minha na verdade, não a dele.
— Mas, o que foi que eu fiz?
— Olha só, me deixa em paz, tá? Você nunca vai entender! A importância de ter que ser forte!
Ele ficou em silêncio. Eu esperava que ele fosse brigar comigo, debater. Ao invés disso ele ficou retraído. Encolheu os ombros, colocou as mãos nos bolsos, virou as costas e apenas me respondeu
— Entendo mais do que imagina.
E não disse mais nada. Desceu as escadas em silêncio. Nada de brincadeiras, nada de deboche. Depois disso, ele simplesmente parou de falar comigo. Mas, ele tinha razão. Eu pedi para ele me deixar em paz.
(...)
Ele não falar comigo me afetou mais do que eu podia imaginar. Ele passou a me ignorar, como se eu fosse apenas mais um móvel da sala de aula. Todo mundo pensou que fosse apenas pela nossa "briga". Mas, parecia que era bem mais do que isso. Para mim era. Satoru era enigmático, o sorriso que ele estampava não dava para saber seus reais pensamentos e ele sempre parecia não se importar com nada. E mesmo depois vendo os olhos dele por acaso durante as aulas, percebi que era um olhar distante.
Os olhos azuis, os mesmos que vi aquele dia. Era irônico pensar que fiquei com ele em meus pensamentos por tanto tempo e agora ele nem falava comigo. Mesmo que ele fosse o ser mais irritante do planeta, me incomodava demais ele me ignorar daquela maneira.
E o tempo passou. Acho que foi um mês ou foi mais? Sempre fui ruim com datas, mas para mim parece que foi um ano. Eu estava acostumada com hostilidade, o silêncio parece que doía mais.
Depois de mais um dia de aula, cheguei em casa cabisbaixa. Meu pai andava quieto demais e isso me assustava. Às vezes trocava meia dúzia de palavras comigo e pronto. Estava claro que ele iria aprontar alguma coisa. Mas decidi deixar isso de lado por enquanto. Entrei no meu quarto e me joguei na cama, depois ouvi alguém me chamar da janela. Levantei parecendo que meu corpo estava pesado e caminhei preguiçosamente. Era o Gyu. É, com isso tudo a gente quase não se falava. Acenei para ele esperar, troquei de roupa e fui até ele.
Gyu sabia tudo sobre mim. Até mais que mim mesma. O melhor amigo que alguém poderia ter. Um anjo na terra.
— Oi... — Eu disse cabisbaixa.
— Oi, a gente não se vê há um tempão. Seu cabelo até cresceu.
Levei a mão até o cabelo e segurei uma mecha e olhei para ela. Meu pai nunca deixou eu ter cabelo grande, dizia que só atrapalha na hora de treinar. Sempre cortava o cabelo no mínimo na altura do pescoço, às vezes até mais curto. Gyu era assim. Cheio de detalhes que faziam dele um cara incrível.
— Vamos dar uma volta? — Ele queria me alegrar. Como eu disse, um cara incrível.
— Vamos. — Ajeitei o moletom e coloquei as mãos nos bolsos e segui Gyu até a saída da propriedade em silêncio.
— Estou preocupado com você. Tem alguma coisa te incomodando?
— Não é nada.. — Eu encolhi os ombros.
— Eu te conheço há muito tempo. Eu sei quando não está bem.
Eu fiquei pensativa, respirei fundo. Seria estranho dizer a ele que eu estava daquele jeito porque um cara irritante parou de falar comigo.
— Eu só estou cansada. É isso.
— A gente nem se fala direito.
— É a correria. Escola nova, sabe como é. E as aulas, como estão?
— Bem... só a Mayu que anda estranha.
— Como?
— Meio estranha mesmo. Sabe, ela quase não fala comigo.
— Às vezes você disse alguma coisa... — Disfarcei usando meu próprio problema.
— Não que eu me lembre.
— Hum... — Eu fiquei mais um tempo pensando olhando para o chão. Depois eu mudei de assunto. — Onde estamos indo exatamente?
— Pensei na gente ir na loja de conveniência que tem aqui perto, comprar umas batatinhas e depois ir pra casa jogar Fifa.
— Tá, pode ser.
A loja de conveniência ficava ali perto mesmo, dentro do bairro. A gente costumava ir muito lá, comprar um monte de besteira. Meu pai era um bosta, mas a gente tinha uma mesada, nem que fosse para gastar com besteira. A gente entrou na loja, Gyu foi direto para o setor dos batatinhas. Ele era um grande degustador delas, sabia de todos os sabores e toda vez que aparecia outro ele comprava. Eu fiquei esperando, pescoçando o setor dos doces. Uma barrinha me chamou a atenção, a embalagem era toda desenhada com vaquinhas. Achei a embalagem fofa e dei um riso fraco pelo nariz.
— Esse aí é bem gostoso. — A voz de Satoru me deu um susto. Olhei para ele com os olhos arregalados. Meu coração parecia que ia sair pela boca. Ele estava lá, sorrindo, camiseta branca, calça de moletom, com uma cestinha cheia de doces variados. O cabelo levemente bagunçado deixou ele ainda mais bonito do que já era. E o cheiro dele era inebriante, um cheiro gostoso, refrescante. Meu rosto começou a queimar, certamente estava vermelho.
— Eu... nunca experimentei.
— Ele é chocolate ao leite e tem um sabor bem suave. Do tipo que derrete na boca. — Eu acho que ele explicou mais alguma coisa, mas eu parei de ouvir, estava focada nos lábios dele, nos detalhes de seu rosto. A pele dele clarinha. — Você gosta de chocolates?
— Eu? — Me despertei dos meus devaneios. O que estava acontecendo comigo? Eu estava sentindo tantas coisas ao mesmo tempo que eu não conseguia definir. Era ansiedade? — Gosto... Eu gosto.
Fiquei tão sem graça com a situação que eu queria sair correndo. Ele devia estar me achando uma idiota. Uma ridícula. Eu me estressei por uma besteira e ainda disse algo que o chateou.
— Bom, eu vou indo. — Ele disse se afastando.
— Espera! — Eu disse no impulso. Ele se virou para mim, eu parecia ter esquecido como se respira e como se fala, eu tremia. — Me desculpa.
Ele ficou surpreso, se aproximou de mim, tirou os óculos. E me olhou com certa ternura.
— Pelo quê? — A voz dele estava suave, quase como um sussurro. Olhando para mim com aqueles intensos olhos azuis.
— Eu... me desculpe por aquele dia. Eu acho que te ofendi e... eu não queria fazer isso. Não foi minha intenção... — Ele levou a mão ao meu rosto e tocou meus lábios com o dedo indicador.
— Não me ofendi.
— Parou de falar comigo... — Eu disse com lágrimas nos olhos. Eu queria ter sido mais forte. Mas, eu não conseguia. Quando era sobre o Satoru, eu nunca conseguia. Minha fraqueza era ele e o turbilhão de sentimentos que eu sentia.
— Ah. Eu só respeitei seu espaço. Você me disse para te deixar em paz.
— Merda... — eu cobri o rosto com as mãos tentando impedir que ele me visse daquele jeito. Não queria aumentar ainda mais o ego dele.
— Hey... — Eu senti a mão dele na minha cabeça e ele afagar gentilmente meus cabelos. — Eu não tô bravo, nem magoado, tá?
Eu olhei para ele com os olhos vermelhos. Acho que ali já era tarde demais. Não havia mais como voltar atrás. A gente tinha furado uma barreira que não devia.
— Jura?
— Sim. Eu não sabia que você estava se sentindo mal assim. Pensei que só não quisesse falar comigo. E o local que te acertei, ainda dói?
— Ah! Não, tá tudo ok...
— Kira? — Eu fiquei tão imersa conversando com o Satoru que me esqueci do Gyu. Ele estava parado no corredor, olhando para nós com cara de bravo. — Estava chorando? Ele te fez alguma coisa?
— Não, a gente tá só conversando. É alergia eu acho. Vamos embora.
Eu olhei para Satoru e acenei de longe e ele sorriu. O sorriso mais lindo do mundo.
Gyu ficou o trajeto todo em silêncio. Quando estávamos nos aproximando da propriedade ele começou a dizer. Dava para perceber que ele estava chateado com alguma coisa.
— Quem era aquele cara? — Eu acho que percebi o ciúmes. Eu só não dei tanta importância naquela época.
— Um colega de classe.
— Vocês pareciam bem... próximos né?
— Não, ele é só um idiota. — Disse secamente encerrando o assunto.
Me despedi do Gyu e entrei em casa pensando... Não era possível. Eu estava pensando no Satoru. Em cada detalhe do rosto dele. Kaede acho que murmurou alguma coisa sobre jantar, mas eu a ignorei e fui para o meu quarto. Deitei na cama de barriga para cima e senti meu celular vibrar no meu bolso. Um número desconhecido?
— Alô?
— Oi Kira... — A voz do Satoru do outro lado da linha, que conseguia ser ainda mais sedutora do que pessoalmente.
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