Capítulo 4 - parte 3 (não revisado)
Daniela está em casa, eufórica, esperando o namorado chegar e a mãe, que supervisiona o jantar, não aguenta mais ouvir a mesma coisa uma dezena de vezes. Às oito horas em ponto, a campainha toca.
– É ele, mãe, é ele! – Afirma a garota, feliz.
– Calma, filha! Martins abre a porta. Não te afobes, onde estão os teus modos?
O funcionário conduz Daniel para a sala, onde o casal Chang aguarda com a filha. Fazendo uma reverência formal, cumprimenta-os, estendendo para a dona da casa um buquê de flores e uma caixa de bombons.
– Senhora Chang – diz gentilmente, sorrindo e curvando-se novamente – agora sei porque a Daniela é tão bela.
– Obrigada.– A sogra sorri e inclina-se.
– Senhor Chang – vira-se para o pai, com outra vênia, estendendo um pequeno embrulho – aceite este presente dado de coração.
Trata-se de um legítimo Maotai, uma bebida da China, muito forte e muito apreciada.
– Obrigado, rapaz – corresponde, pegando o embrulho – seja bem-vindo à nossa casa...
Sem aguentar esperar mais, a Daniela corre para ele e salta-lhe ao pescoço, beijando-o rapidamente.
– Ele fala cantonês. – Interrompe, em cantonês.
– Bem sei, filha – diz o pai gentilmente – já disseste isso uma dúzia de vezes. Venha, Daniel, vamo-nos sentar. Deseja beber algo?
– Obrigado, mas não costumo beber a não ser raramente.
– A última vez que o vi, ainda era um menininho e agora está um homem. Você é a cara do seu pai, Daniel, altivo e com ar de realeza. Como vai ele? Está aqui no Brasil?
– Sinto dizer, senhor Chang, mas eles faleceram há cerca de um ano.
– Minhas condolências, jovem. Gostava muito dele, que era um humanista, o maior especialista em engenharia genética que o mundo jamais viu. Trabalhei com ele e para ele por um curto período e fiquei com muito respeito. O mundo perdeu um grande homem; mas, pelo que diz a minha pequena, ganhou outro.
– Sabes, pai – interrompe novamente, toda eufórica com o seu namorado – Daniel projetou um coração artificial.
– É mesmo? – Fala o pai da garota, condescendente. – Pretende acabar com a minha profissão?
– Claro que não, doutor Chang. Serão os cardiologistas que os irão implantar nos pacientes, mas o mais importante de tudo é que a rejeição será nula. Atualmente gasta-se muito com medicamentos nos transplantados. Quem recebe um transplante, precisa de tomar esses remédios para o resto da vida. Outro problema é a fila de espera. Ainda hoje, morrem muitas pessoas nela. O meu projeto eliminará isso.
– Interessante! Já apresentou o seu projeto a alguém? – Pergunta o sogro, sem saber exatamente o potencial do rapaz.
– Pai, ele é o dono da Cybercomp.
– Minha nossa, Daniel! – Afirma, muito espantado. – Não imaginava. Tem que me mostrar isso um dia.
– Quando o senhor quiser – diz Daniel, sorrindo – poderá ver o protótipo do coração, funcionando em um cão.
– Então essas pesquisas estão muito avançadas!
– Sim. Só não usamos em humanos ainda, porque temos um problema com energia.
– Energia!?
– A fonte de energia do coração. Temos pesquisas em alguns ramos. Uma equipe procura desenvolver um micro reator de fusão a frio. Outro ramo pretende criar uma forma de absorver energia por indução eletromagnética e temos mais um grupo pesquisando um método de carregar as baterias a partir da eletrólise do próprio organismo. Estamos mesmo a aventar a possibilidade de usar duas fontes de energia.
– Mas quanto será que custa um projeto desses? – Pergunta o pai da moça, completamente impressionado com o rapaz.
– Eu aprovei um orçamento inicial de cinquenta milhões de Créditos. – Responde, muito divertido ao ver o pai da moça engolir em seco. – Mas já gastamos o dobro disso. Com sorte, vamos experimentar o primeiro protótipo em um ou dois meses.
– Daniela, minha filha – o senhor Chang pede – vai ajudar a tua mãe. Deixa-me conversar a sós um pouco com Daniel.
– Mas...
– Vai, espoletinha – afirma Dan, rindo perante a reação dela, que dá um soco de mentira e sai de cara amarrada – eu prometo que não saio daqui, minha linda.
– Filho, realmente eu gostaria muito de participar dessa experiência – principia o sogro – porém, gostaria de fazer algumas perguntas.
Mudando para o mandarim, sem a menor dificuldade, continua.
– Falemos em mandarim que a minha filha não entende. Que eu me lembre, fala mandarim não é?
– Falo sim, senhor Chang. – Responde o garoto em um mandarim perfeito.
– Meu jovem, como exatamente os seus pais morreram? Desculpe tocar na ferida, mas preciso de saber.
– A pericia falou em um acidente de trânsito, mas eu, um policial e algumas pessoas, acreditamos que foi homicídio. – Responde.
– Não duvido, Daniel, sabe o que o seu pai fazia?
– Não exatamente. Sei que trabalhava com pesquisas em genética, embriões. Tenho todos os trabalhos dele em uma sala secreta, na minha casa, mas não li nenhum pois ainda me dói muito pensar nele e na minha mãe. Só muito recentemente sinto alguma alegria, quando reencontrei Daniela.
– Ele pesquisava uma forma de recuperar partes mutiladas do corpo e órgãos falidos mediante manipulação genética, Daniel. Com isso, desejava, por exemplo, fazer crescer um coração novo e implantá-lo no organismo doente. Esse coração seria feito com células do próprio paciente e não haveria rejeição. Exatamente o mesmo que você, mas de outra forma. Infelizmente, o seu pai publicou uns trabalhos na área e começou a sofrer pressão de certos grupos poderosos. Os grandes laboratórios de medicamentos são uma máfia poderosa espalhada pelo mundo e o seu pai ia acabar com uma grande fatia do "bolão" deles, por assim dizer. Quando me disse que ele e a sua mãe, que era a assistente mais próxima, morreram, fiquei demasiado desconfiado.
– Isso explica o arrombamento da casa deles no mesmo dia do acidente. Nessa época, eu já morava sozinho na residência que era do meu avô, aqui perto. Só que ele, uma semana antes do ocorrido, levou os trabalhos todos para mim, já que na minha casa tenho uma sala secreta inexpugnável. Isso confirma as minhas suspeitas.
– Meu rapaz, vejo em si os passos do seu pai e temo que a sua vida venha a correr perigo. Conheço todo o seu potencial e sei muito bem quem é, inclusive uma ou duas coisas que nem mesmo você sabe. Estou ciente que tem uma força física superior a cem homens e uma agilidade tremenda, sem falar que foi o próprio Lee, o Grande Dragão Vermelho, o maior de todos, que o treinou. Confio em si, mas tem alguém mais no jogo. E esse alguém, não é ninguém menos que a minha filhinha. Ela é a minha única filha e eu ficaria com o coração destroçado se a perdesse, Daniel.
– Senhor, se sabe das minhas habilidades, as quais mantenho o mais absoluto segredo, peço encarecidamente que nada diga. Quanto à Dani, como bem sabe, eu já a amava desde os meus oito anos de idade.
– Mas vocês brigaram...
– Desculpe, senhor Chang, mas eu nunca briguei com ela nem a esqueci durante todo este tempo e foi o destino que nos uniu. É que ela é um pouco impetuosa e...
– Bem sei, filho – interrompe – mas ela sofreu muito. Na época, tivemos de a levar a um psicólogo. Não se lembra de nada por um mecanismo de autodefesa, mas vai acabar descobrindo em breve e tenho bastante medo da reação dela, que sofreu um forte complexo de culpa. Ficou dias e dias chorando, querendo retornar para HK e não faz ideia do que ela passou. Foi muito ruim e chegamos a pensar em interná-la para tratamento. Nunca vi uma criança reagir assim. Na verdade, nem mesmo um adulto. Sei que é algo muito forte, mas também pode ser doentio.
– Senhor, eu faço ideia sim. De certa forma passei por coisa parecida. Quando a vi na sala de aula e não me reconheceu, imaginei que algo tivesse acontecido com ela. Assim, não interferi. Fiquei quieto, embora sofresse com isso. Quando chegar a hora, se for conveniente, eu mesmo contarei, mas a seu tempo, se não se opuser. Por outro lado, se o senhor desejar, vou-me embora agora e nunca mais tocamos no assunto, mas acredite que, se fizer isso, estará matando duas pessoas.
– Sabia, meu rapaz, que quando vocês se viram pela primeira vez, já conheciam os vossos nomes? Que quase nada falavam entre vós, como se comunicassem mentalmente entre vós? E que o vosso comportamento não era nada típico de duas crianças de oito anos, estaria mais para doze ou treze, embora não houvesse um impulso sexual forte? Estão destinados desde sei lá quando e não serei eu a impedir isso. Na certa, perderia a minha filha, mas tome cuidado. Você pretende aniquilar uma boa fatia do mercado daqueles mafiosos, tal como o seu pai. A Daniela é o elo mais fraco dessa corrente e essa gente não se intimida em matar uma pessoa inocente para atingir os objetivos.
– Senhor, há um detalhe. – Afirma Daniel. – A Cybercomp não divulga as suas pesquisas e o nosso sistema de anti espionagem é inviolável. É possível que tenha razão, mas este é o meu trabalho. Nós fazemos tratamentos para as pessoas que vemos na rua, na sarjeta, e que julgamos dignas disso... de graça. Não divulgamos nada, por enquanto, pois ainda atuamos em pequena escala. O senhor não imagina como é bom ver a alegria de um homem ou mulher que tem a sua vida devolvida, mais que isso, a sua dignidade humana recuperada. Fique tranquilo. Quanto ao fato de querer participar do projeto, ficarei muito honrado com a sua presença para liderar a primeira cirurgia de transplante, se for esse o seu desejo. Ainda não formamos a equipe para humanos e ninguém melhor que o cardiologista mais renomado do mundo para fazer história.
– Daniel, você é o genro que qualquer pai pede a Deus. Têm a minha benção, mas faça de tudo para a manter protegida. Ela já era sua muito antes de ser minha filha. Eu não irei impedir nada. Mas, por Deus, proteja-a.
– Isso, senhor, pode ter certeza de que farei, sem falar que há o mestre Lee.
– Lee! Tem noticias dele?
– Sim, serve a mim até hoje. Jurou lealdade à nossa família até ao fim da vida e é o chefe da segurança da Cybercomp. Acredito que ele ficaria muito honrado em revê-lo.
– Vejo que nos chamam para jantar – interrompe o sogro, mudando para cantonês – vamos?
O resto da reunião familiar é alegre e agradável. O jantar é um prato chinês que Daniel simplesmente adora e, por isso, fica tecendo elogios para a sogra. Após, conversam um pouco e dr. Chang impressiona-se com os projetos da Cybercomp, já estando praticamente engajado na causa. Quando a Dani conta a história do velho cego, o pai fica triste.
– Uma pena que ainda haja gente assim, tão cruel a ponto de abandonar um pai inválido.
– Infelizmente, é a mais pura verdade.– Concorda Daniel.
– Diga-me, filho, como vocês pretendem recuperar os olhos do homem?
– Eu não sou especialista na área biomédica, mas basicamente vão recuperar o nervo óptico com células tronco para então implantarem os olhos biônicos. Esse processo demora cerca de dois meses. Após isso, ele poderá ter qualquer atividade normal que não exija cem por cento de visão. Pelos nossos cálculos, terá cerca de oitenta e cinco a noventa por cento, podendo até dirigir um veículo.
– Mas isso já é fora de série! – Espanta-se o médico. – Afinal, estamos falando de gente que não tem os olhos!
– É sim, senhor Chang, e o sucesso é garantido, pois já experimentamos em uma cobaia animal.
Conversam por algum tempo até que Daniel, dentro das regras das boas maneiras, pede licença para se retirar em função do horário, despedindo-se da família.
– Foi um prazer revê-lo, rapaz. Diga ao Lee que ficarei muito honrado com uma visita para um jantar e um Mahjong.
– O prazer foi meu. – Ele inclina-se e a família acompanha-o até à porta onde terminam de se despedir. Daniela segue com ele até ao carro e, quando o sogro vê a Lamborghini, até respira fundo, pois também gosta daquele carro, e muito, mas apesar de ser um homem de muitas posses, nem sonharia em ter um desses que custa uma verdadeira fortuna.
– Dani, não te esqueças: amanhã é sexta-feira. Convida a Cláudia que eu convido Paulo. Vou marcar com ele para uma hora depois dela chegar, ok?
– Ok. Zài jiàn.
– Zài jiàn (tchau).
Chegando a casa, encontra Lee na sala dos ancestrais, meditando. Como faz tempo que não vai para lá, senta-se ao seu lado e ambos meditam em silêncio por um par de horas. A sala dos ancestrais é como um pequeno templo onde reverenciam os familiares e amigos íntimos já falecidos. Há uma estante baixa com as fotografias deles e bastões de incenso queimando.
– Mestre, o doutor Chang ficaria honrado com a sua visita.
– Serei eu o honrado.
– Mestre, por ventura acha possível mudar o destino?
– Jovem Dragão, você já devia saber isso ou não merece o título que a Honorável Mãe lhe deu.
– Tem razão, mas o coração rouba-nos um pouco da lucidez.
– Filho, podemos manipular parte do destino mas, na maior parte, somos manipulados por forças maiores. Infelizmente, o que deseja evitar é inevitável. Mas quem lhe garante que o fim será a morte?
– Porque sempre soube disso. – Responde com um suspiro.
– Eu não estaria tão certo.
– A Honorável Mãe disse que preciso combater os fantasmas internos e externos e também que tenho algo muito especial à minha espera, mas temo que sempre farei comparações, se tal acontecer realmente.
– Filho, as suas decisões foram corretas. Viva intensamente o seu tempo com ela de forma a não se arrepender depois, mas seja consciente.
– Isso é difícil.
– Ninguém jamais disse que seria fácil.
Ambos continuam em silêncio o resto da noite. Cada um na sua meditação, comungando juntos.
De manhã, Daniel levanta-se descansado, como se tivesse dormido a noite toda.
– Mestre Lee, amanhã vou fazer uma reunião com ela e mais um casal. Peço que não venha para cá pois não quero que se lembre do passado, por enquanto. O pai dela disse que sofreu um grande trauma e a lembrança pode ser prejudicial.
– Fique tranquilo. Vou aproveitar para visitar uns doentes na Cybercomp. – Mestre Lee gosta muito de ir ao hospital ajudar com os internos. Quando não trabalha na segurança, está sempre lá. Por ser um monge Shaolin, tem conhecimentos que ajudam muito e são apreciados, especialmente na clinica de desintoxicação.
– Há lá um cego que vai receber o primeiro implante de olhos. Se quiser perder uns minutos com ele, eu agradeço. Bem, vou-me preparar para a escola.
– Tenha um bom dia, filho.
– Obrigado, mestre, certamente que terei. Afinal, eu estarei com ela. – Dá uma risada muito alegre. – Nada neste mundo me deixa mais feliz do que isso.
– Que bom, filho. – Lee sorri. – A propósito, acho que vou-me mudar para outra residência. Está na hora de ter a sua privacidade, especialmente agora.
– A casa ao lado é minha e está vazia. Fique nela, mestre, até porque já é mobiliada.
– Obrigado, filho, farei isso na semana que vem.
― ☼ ―
Na escola, as coisas vão normais. Daniela mudou-se para a mesa ao lado do namorado e atrás dele continua Paulo. Daniel manda uma mensagem instantânea para o amigo, convidando-o para o churrasco. Ao receber um cutucão no ombro, vira-se.
– Escuta, tchê, explica como é que tu consegues enviar mensagens individuais à vontade sem o firewall bloquear?
– Redes neurais inteligentes, meu amigo – Daniel ri – tu vais ou tens compromisso?
– Claro que vou. Estou com saudade dos cachorros. Além do mais quem iria assar a carne? Tu és um verdadeiro desastre e acabas envenenado por ti mesmo!
– E tu ainda casas com um cachorro – brinca o amigo – eles te adoram!
– Eu quero é a cachorra ali ao lado. – Brinca ele.
– Shhhh! – Avisa Daniel, apontando a namorada. – Cuidado que ela é amiga da Dani.
Daniela está com um aspecto estranho e calada desde cedo, fazendo o namorado desconfiar de algo e preocupar-se um pouco, mas aguarda os fatos ocorrerem, provavelmente quando estiverem a sós. Na hora do intervalo, o alto-falante praticamente berra: "Daniel Moreira, vá ao gabinete dos professores."
– Amor, vai pro bar da piscina. Se der tempo, vou pra lá.
– Ao chegar à sala dos professores, encontra vários deles conversando e tomando café ou chá. Como ninguém lhe dá atenção, pigarreia.
– Ah, Daniel, vem aqui. – Chama o professor André. Sentam-se em uma sala de aula vazia. Atirando a papelada para cima da mesa, o professor começa.
– Daniel, o José esclareceu algumas coisas a teu respeito. Ele disse que pediste privacidade mas, neste caso, tenho de dizer isso para justificar o meu pedido de desculpas.
– Ora, senhor professor, não precisa de pedir desculpas. Daniela fez-me ver com clareza que seria praticamente impossível acreditar que eu entendesse desse assunto. Na verdade, eu é que lhe devo desculpas por ter perdido a calma e ter sido tão mal educado. Agora, se o senhor não se importa... – principia o jovem, já se levantando...
– Daniel – André interrompe – preciso discutir isto contigo ou não terei um segundo de sossego pelo resto da vida. Vê bem, tu defendes a possibilidade de gerar reatores nucleares de fusão a frio em miniatura, mais precisamente portáteis e eu também. Na verdade, inspirei-me neste teu trabalho, mas seguimos caminhos demasiado diferentes. Olha.
Começa a escrever equações de reações nucleares no quadro, mostrando para o jovem que, se fosse normal, ficaria com cara de idiota ao ler aquilo. Mas Daniel apenas diz, levantando-se e escrevendo novas equações:
– Professor, entendo onde quer chegar e comecei assim, mas esbarrei princípio de Zeinit e ele provou ser um preceito matemático incorreto.
– É verdade, mas eu passei a atacar o problema com uma diferencial modificada – escreve a nova equação – estas a ver...
Ora professor e aluno, ora aluno e professor, discutem sem parar por um bom tempo. O quadro está repleto de equações tão complexas que somente os dois entendem. Finalmente têm de parar, porque o intervalo terminara há algum tempo.
– Professor, o senhor não devia estar aqui – diz Daniel retirando-se – sabe demais, mas o seu método para resolver equações diferenciais parciais de segunda e terceira ordens é demasiado primitivo. Em outra ocasião, ensiná-lo-ei melhor...
André fica pasmo, fazendo uma careta, pois acaba de encontrar o maior matemático que jamais conheceu ou conhecerá. De boca aberta, acompanha o caminhar do aluno para fora da sala, enquanto principia a fazer o mesmo.
― ☼ ―
Chegando à aula, Daniel vê que a namorada não está presente. Pede desculpa e vira-se, saindo a correr para o bar da piscina. Ela está lá, mas a sua cara não promete boa coisa.
– Amor, por que não estás na aula?
– Daniel, senta aí. Tem algo demasiado errado no ar – fala em cantonês – o que tu e o meu pai conversaram ontem? E trata de não me enrolar porque eu vi o ar de preocupação dele.
– Dani, resumindo tudo, ele tem medo que te aconteça algo. Desconfia que meus pais foram assassinados, assim como eu, e tem medo que me tentem matar e que tu também sejas ferida devido ao que faço na Cibercomp.
– Ele quer proibir que nos vejamos? – Pergunta desesperada, já com os olhos completamente cheios de água.
– Acho que no inicio sim, mas depois mudou de ideia, pois eu prometi-lhe que te protegeria com a minha própria vida.
– Ai, meu Deus – geme, desesperada – eu não aguentaria tudo de novo.
– Tudo de novo o quê, minha Danizinha do coração? – Ela começa a chorar baixinho.
– Isso, essas palavras, por exemplo. – Faz silêncio por quase um minuto, tentando controlar-se, e continua. – Eu não sei o motivo, mas tem algo errado comigo e contigo, principalmente contigo. É como se tu fosses dois em um, um de agora, outro de antes, mas a separação dói muito. Doeu em Hong Kong e dói agora, só de pensar.
– O que doeu em Hong Kong? – Ele treme de nervosismo e o seu coração dispara.
– Eu tinha oito anos e vi o garoto mais lindo do mundo. Ele chamava-se Daniel, como tu, e só agora me lembrei do seu nome. Nós nos vimos por um mês e essa lembrança estava embotada na minha mente até começares a usar as mesmas palavras que ele. Foi a melhor época da minha vida, mas, depois, quando voltei para cá, sofri muito. – A garota chora mais. – Até agora eu nem pensava em ninguém, até tu apareceres...
– E se eu fosse ele? – Daniel treme um pouco e está preocupado com ela, achando que é melhor que a verdade aflore.
– A única coisa que vocês têm em comum é a beleza e o nome... Mas eu sempre achei que seria dele para sempre, e agora, depois de todos estes anos, tu apareces, o mesmo nome, belo que nem ele, despertando lembranças e sentimentos que eu não posso mais controlar. Não sei se posso continuar contigo pois parece que estou traindo outra pessoa mas, ao mesmo tempo, sei que vou morrer sem ti. Eu estou muito perdida, Daniel. – Começa a soluçar demonstrando todo o seu desespero. – Não me lembro do rosto dele. Não me lembro de quase nada dele.
Soluça sem parar, agarrando-se a ele e enterrando o rosto no seu ombro. Daniel abraça sua namorada com carinho.
– Calma, olha para mim. Pensa bem, qual a probabilidade de haver dois Daniéis do Brasil, em Hong Kong, na mesma época e com a mesma idade?
– Pensando bem é muito baixa mesmo... Mas existe, a prova está aqui... – Ergue o rosto para o namorado, com os olhos vermelhos de choro.
– Em Hong Kong, a tua reação frente aos garotos da rua foi de auto proteção. Eu não queria machucá-los, Dani, por isso dei o dinheiro a eles. – Ela está atenta, tremendo muito, mal conseguindo controlar-se com a revelação que se apresenta para si, pois começa a lembrar das coisas. – Nunca me esqueci de ti, Daniela, e eu te amo desde que te vi pela primeira vez, quando tinha oito anos, Danizinha. – Dizendo isso, tira a carteira e abre-a na foto, mostrando-a. – Esta era a nossa outra vida, esta era a minha Danizinha do coração lá em Hong Kong e ela parece muito contigo, não achas, minha princesa?
As cartas foram lançadas e agora tudo o que ele podia fazer era esperar a reação da namorada, que não demora a ocorrer.
― ☼ ―
De olhos arregalados ela vê a fotografia que deu para o seu pequeno grande amor e, como uma luz que se acende, todas as lembranças voltam instantaneamente. Chorando convulsivamente, atira-se a ele, lavando todas as tristezas, tirando todas as máculas. Quando para de chorar, ambos olham-se e vê Daniela lágrimas nos olhos dele.
– Fui ruim, não fui? – Soluça ela, descontrolada. – Desculpa, fui horrível. – Volta chorar, tal como uma criança desamparada.
– Dani, éramos crianças e tu estavas-te protegendo. Minha amada, esquece isso que eu não sei viver sem ti!
– Mas por que será que eu não me lembrava direito? – Pergunta em meio aos prantos, voltando a soluçar.
– Segundo o teu pai, foi um mecanismo de defesa da tua cabeça. Chega disso. Vamos, vamos para casa. – Ela ouve Daniel ligar para Paulo, pedindo que guarde as coisas deles. – Não podes ficar aqui assim nesse estado. Espera que vou pagar a conta.
No caixa do bar, a moça, uma bela mulata dos seus vinte anos, observa o casal no fundo da lancheria, os únicos presentes àquela hora. Nota a atenção e carinho dele com a moça, que chora desalmadamente, assim como estranha a língua que falam. Está acostumada a ouvir gente falando espanhol e inglês, mas chinês nunca havia visto exceto desde que ambos começaram a aparecer juntos, pois o rapaz sempre frequentou o local... sozinho. Ela vê o jovem levantar-se e caminhar até ao caixa. Sem segurar a curiosidade, pergunta:
– Está tudo bem? Precisam de ajuda?
– Não, obrigado – responde delicadamente – ela está um pouco abalada mas já passa. Acabou de descobrir que teve duas vidas.
– Essa língua que estavam falando – continua – é chinês?
– É sim – responde com um sorriso cortês, enquanto pega o troco – obrigado.
– De nada. – A garota, com um suspiro, olha para o rapaz e pensa. – "Que gato mais lindo, que garota de sorte!"
― ☼ ―
Daniel pega delicadamente na sua namorada e puxa-a contra si, levando-a para a saída. Ela permanece encostada nele, com o rosto enterrado no seu ombro, ainda chorando um pouco.
Leva-a para o estacionamento e põe-na no carro, deitando o banco para que fique mais confortável. Vão em silêncio e esta ainda soluça um pouco, tremendo pelo corpo todo, como se tivesse frio. Poucos minutos depois, estão em casa, cujo portão abre automaticamente com a aproximação do veículo. É a primeira vez que ela vai para a sua casa, situada num terreno enorme à beira do Rio Guaíba. O jardim, muito bem cuidado, é grande e arborizado. No centro, uma casa grande com dois andares, de tijolo à vista e janelas de madeira envernizada, com um varandão de lado a lado. Ela é bela e imponente. À frente da sala, que fica virada para o rio e levemente para a esquerda, há uma piscina, churrasqueira e um salão de jogos. Já do lado direito, uma quadra de esportes do tipo polivalente e uma academia de invejar. Do outro lado, no rio, um ancoradouro e os canis. Há muito espaço e muitas árvores, a maioria frutíferas. Acompanhando o carro, cinco enormes e alegres cães boxer latem para o dono, que entra numa garagem grande onde há, pelo menos, oito carros dos mais diversos tipos. Quando desliga o veículo, nota que a Daniela está adormecida. Gentilmente, pega nela ao colo, que se enlaça ao seu pescoço e leva-a para o quarto, deitando-a na cama. Tira-lhe os sapatos e a calça para a deixar mais confortável, cobrindo-a com um lençol. Fecha a porta, pega no telefone e liga para o pai.
– Senhor Chang? – Informa. – Dom dia, doutor... Sim senhor, está tudo bem, mas ela acabou de descobrir... isso, praticamente sozinha. É muito inteligente e bastou ligar as coisas. Sim... Teve um grande choque... sim, senhor, muito grande mesmo. Eu não fazia ideia do quão profundo foi. Trouxe-a para a minha casa pois chorava sem parar... sim... ela adormeceu. Estou ligando para que vocês não se preocupem... Claro, ela ligará assim que acordar. Zài jiàn (tchau).
Enquanto a sua pequena descansa, dispensa todos os funcionários e dá um passeio pelo jardim relembrando-se dos últimos dias, os melhores da sua vida.
– "Quanto tempo irá durar?" – Pergunta-se a si mesmo. – "Melhor parar de pensar nisso!"
A Daniela dorme por algum tempo até que acorda repentinamente. Ainda de olhos fechados, fica quieta na cama, sentindo-se muito bem, como se uma grande carga tivesse saído das suas costas e, devagar, começa a lembrar de todo o passado. O lugar onde está tem um cheiro diferente, mas completamente familiar pois é o cheiro do seu gatinho. Não é o quarto dela, mas parece como se sempre tivesse vivido ali, sentindo-se muito confortável. Sorrindo, espreguiça e abre os olhos, vendo que está num quarto grande e deitada em uma cama maravilhosa. Ao lado, nota a mesa de cabeceira com o retrato original que deu para o seu namoradinho, oito anos antes. Sorri e faz um carinho na imagem do seu rosto, levantando-se. Para seu espanto, ouve uma voz.
– Daniela Chang, bem-vinda. É esperada em frente à piscina.
– Quem é? Onde você está?
– Senhorita Chang, sou o computador da casa e recebi instruções para avisá-la assim que acordasse. Basta descer as escadas à sua esquerda e, na sala que está toda aberta, verá a piscina.
– Obrigada. – Diz automaticamente, sem pensar, e o computador silencia. Desce as escadas e vê uma sala bonita, com portas de vidro abertas de par em par e misturando-se com o jardim. A poucos metros avista uma piscina grande onde, sentado na relva em posição de lótus e de costas meditando, vê Daniel.
Encostada à porta, fica admirando o seu namorado de tronco nu, sem sentir o menor frio, parado como uma estátua. Acha estranho pois está cerca de onze graus, uma temperatura muito baixa para alguém ficar seminu e tão tranquilo. Parece imponente como um deus grego, desafiante, poderoso, e ela já viu um pouco do que aquele ser que tanto ama pode fazer.
– "Que bom que ele não os machucou." – Pensa. Esse é o seu Daniel, mas agora contempla-o com outros olhos, mais adultos, conciliando os dois amores: o de menina e o de mulher.
Após alguns minutos encostada à porta observando-o, dirige-se para ele, em silêncio de modo a não estragar a sua meditação. Os cinco cães, que estão por perto e vendo a moça desconhecida aproximar-se pelas costas do dono, atacam simultaneamente sem sequer darem o menor aviso.
Mais rápido ainda que os cães é Daniel que, com um salto, coloca-se entre eles e grita.
– Não! Amiga. – Os animais param imediatamente, mostrando o excelente treino.
– Que susto – comenta – como são lindos! Estende a mão para os cães cheirarem e, tão logo vêm que é inofensiva, deitam-se por perto e o casal senta-se lado a lado no gramado, de frente para o Guaíba. Ela deita a cabeça no seu ombro.
– Que paz, meu amor, é como se eu tivesse sido perdoada de todos os pecados do mundo.
– De certa forma, anjo, foi assim mesmo. Tu estavas carregando um peso muito grande por um longo tempo. – Afirma, afagando os seus cabelos. – Eu nunca te culpei, nunca. Aqui, dentro do meu coração, sabia que te ia ter de novo e o meu amor jamais se apagou. Agora, aqui estamos, novamente juntos. Como te amo, Danizinha.
– Eu também. – Beijam-se longamente e ela olha para os seus olhos, pondo os braços em volta do pescoço, enlaçando-o e dizendo ao seu ouvido, com um sussurro que o deixa totalmente arrepiado. – Quero fazer amor.
Pega-a ao colo e leva-a para o quarto.
– Computador, desejamos privacidade total.
– Sim, senhor. – Responde a máquina.
― ☼ ―
– Precisas ligar para o teu pai pois ele está preocupado. – Diz, enquanto a afaga delicadamente.
– Então ele sabia, no jantar! Por isso começou a falar em mandarim, porque eu não sei.
– Quer dizer que tu estavas escutando – sorri alegre e cheio de paixão – minha espoletinha, como é bom não precisar mais de esconder isso.
– E tu guardaste essa foto todo esse tempo!
– Guardei e guardarei para o resto da minha vida. – Pegando o telefone, ela liga para o pai.
– Pai... sim estou bem... é, foi um choque sim, mas agora estou muito bem. Pai, eu vou passar o fim de semana aqui – diz de supetão. Parece ter amadurecido muito naquelas horas, deixando de ser uma adolescente para ser uma jovem mulher. – Ora, pai, se estás preocupado com sexo, fica tranquilo, pois já fiz a minha escolha. Afinal não sou mais criança e sei me cuidar. Ele é o homem da minha vida e não o quero perder outra vez. Esta foi a melhor semana da minha vida e temos muitas coisas para reencontrar. Além disso, ele sente o mesmo por mim... que bom que entendes, pai, porque nunca estive tão feliz na vida... Obrigada... também te amo.
– Quer falar contigo. – Estende o fone.
– Senhor Chang... pode ficar descansado. Agora ela está bem, senhor... Muito obrigado pela confiança. – Desliga o telefone e olha para a namorada. – Que tal irmos tomar um gostoso banho e jantar fora. Dei folga para todos os empregados e estou sem vontade de fazer seja o que for.
Saltando para a cama e abraçando-se ao Daniel, pergunta:
– E o que vamos comer?
– Eu gostaria de comida japonesa. – Responde. – Que tal?
– Pode ser. Onde?
– No Shopping Iguatemi há um excelente restaurante japonês.
– Do outro lado da cidade! – Ela faz uma careta para o namorado.
– Ora, vamos na Lamborghini – propõe Daniel, rindo – mas eu não tenho pressa alguma!
– Nem eu – admite, aconchegando-se nos seus braços, pois tinham voltado para a cama – só que, por mim, mandava vir uma pizza e não saía daqui.
– Que seja – concorda Daniel – e que sabores tu gostas?
– Portuguesa e frango com catupiri – afirma rapidamente, como se esperasse a pergunta.
– Ok. – Erguendo ligeiramente a voz diz. – Computador: procura na internet uma pizzaria com tele entrega. Queremos uma pizza grande com os sabores de frango com catupiri, portuguesa, champignon e brócolis. Faz o pedido, debita na minha conta bancária de débito ou de crédito conforme for a opção oferecida e, após, informa o tempo de espera. Se não houver atendimento via internet, usa o telefone, como se fosses eu.
– Sim, senhor.
– Dan, como funciona este computador? Eu adoro computadores e entendo bem deles, mas nunca vi nada igual!
– Ele, na verdade, é eles. Uma gigantesca rede neural, baseada em tecnologia de IA que centra todos os conhecimentos da Cybercomp. É o Complexo III, o mais secreto da companhia. Posso mostrar-te na segunda-feira, se quiseres ir comigo ao trabalho.
– Claro que quero – responde, feliz – todos os dias.
– Mas e a escola, Dani – pergunta-lhe – não terás notas ruins? Eu não quero que pensem que te levei para o mau caminho.
– Ora, amor – brinca ela – não és o único super gênio e nunca precisei de estudar. Basta ouvir a aula. Moleza!
– Então está combinado. – Daniel ri, alegre. – Falaste com a Cláudia?
– Falei, mas ela vai-me encontrar na minha casa.
– Liga para ela e diz que iremos buscá-la.
– Senhor – interrompe o computador – o seu pedido foi efetuado e deverá ser entregue em, no máximo, trinta e cinco minutos.
– Obrigado.
– Falar obrigado para um computador não é meio estranho?
– Sim e não. Neste caso, significa que não desejo mais nada, que ele pode considerar terminada a tarefa.
– Esse computador é muito tri.
– É sim, amor – Daniel levanta – vamos. Pretendia uma hidro, mas não dá tempo pois a pizza virá rápido.
Ela fica vendo o namorado ir para o chuveiro, enquanto se espreguiça na cama. Daniel olha para a sua garota e sorri.
– "Engraçado" – pensa ele, observando-a atentamente – "ela é bela; mas, depois que fazemos amor, fica muito mais linda como se brilhasse intensamente."
– "Tu também, seu tonto." – Ecoa a resposta na sua mente.
– Eu também, o quê? – Pergunta, distraído.
– Ora, também ficas mais bonito.
– Dani, sabes que eu não falei nada? Apenas pensei!
– E daí, eu também. – Afirma preguiçosamente, sem se atinar para o fato.
― ☼ ―
A manhã de sábado é de céu límpido e ensolarado, quase quente como uma primavera antecipada, pois Porto Alegre tem muito disso.
– Oi, amor – diz Dani, agarrando-se a ele e beijando-o ternamente. – Estou com fome, vamos tomar café? E também preciso de ir à minha casa trocar de roupa.
– Nada disso – afirma Daniel – se esta é a nossa casa, também terás de ter o teu enxoval aqui. Por isso, vamos ao shopping gastar um pouco.
– Ei – emenda a garota, sorrindo alegre – posso me acostumar com isso, só gastar.
– Minha princesa, já disse que, se ficar só gastando, vai levar mais de mil anos para terminar a grana. Mas, como a Cybercomp está dando lucro, devemos precisar de bem mais do que isso.
Ela ri e vão para o shopping center, onde escolhe, junto com ele, algumas roupas. Não é muito dada a vestidos, mas Daniel seleciona uns três, que acha bem nela. Enquanto a namorada vê mais umas coisas, ele decide ligar para a assistente.
– Oi, lindinha – afirma a título de cumprimento – achei o cientista que o Hans deseja. Ele é o meu professor de física e sabe muito, mas muito mesmo. Quero que o contates, mas não me relaciones com ele até eu entrevistá-lo. Podes contratá-lo imediatamente, contudo quero que ele continue lecionando. O nome é André. Não sei o sobrenome, só que basta acessares o banco de dados da escola para descobrir. Como eu já fiz isso antes, o computador saberá agir... isso. Ele deverá ser o chefe da sessão de física nuclear. Com ele, eu tenho a certeza que resolveremos os nossos problemas... Assistentes? Dá-lhe quantos quiser; mas, pela sua personalidade, creio que desejará trabalhar sozinho. Não duvido nada se ele não se deu mal em algum centro de pesquisas por esse ou outro motivo, pois é autoritário e individualista, só que é muito bom mesmo, talvez o melhor que exista... Não me importa o preço e quero aquele sujeito na minha equipe, pois estou certo que resolverá os problemas do reator portátil. Quando instalar-se e eu estiver por lá, mandá-lo-ei chamar... Quero divertir-me um pouco com a cara dele ao descobrir quem sou... não. Só isso... ah sim, mais uma coisa, faz um convite formal, em meu nome, ao doutor Nelson Chang para visitar o complexo. Deverá ser pessoal... isso... escuta, tá tudo bem contigo, querida? É que estou achando a tua voz ruim... se é cansaço, tira uma semana porque o mundo não vai acabar... está bem, mas não estou gostando nada da tua voz, Suzi, adeus... outro. – Desliga a tempo de ver a namorada provando um biquíni que o deixa completamente sem fôlego. Quando chegam a casa, encontram Paulo sentado no chão junto à porta, lendo um livro sobre cães.
– Olá, cheguei cedo demais. Estava passeando – diz, mostrando o livro – daí comprei este livro. Como eu sou o churrasqueiro de plantão, decidi vir mais cedo para arrumar as coisas. Trouxe o vosso material da escola – aponta as duas mochilas.
– Oi, Paulo, obrigado por tudo – agradece o amigo – entra. Vai indo para o salão de festas que eu já te vou encontrar. Está tudo na geladeira. Deixa-me só ajudar a Dani a descarregar as coisas dela. Devias ter entrado direto, maninho.
– Sem problema, Dan.
Assim que os cães veem Paulo, fazem uma algazarra enorme pois adoram-no e ele a eles. Daniel, ao chegar para ajudar o amigo, encontra uma cena digna de uma foto: Paulo está preparando as coisas na mesa e, à sua volta em semi circulo, estão os cães a guardá-lo.
– Estes cães são mais teus do que meus – ri o amigo – acho que, se alguém levantasse a mão para ti, era dilacerado no mesmo instante.
– Com esta raça não se brinca, Dan. O boxer é extremamente fiel, amigo e corajoso. Tem uma agilidade impressionante, uma inteligência muito aguçada e é muitíssimo brincalhão. A índole é excelente, tornando-o perfeito para as crianças.
– É mesmo!? – Espanta-se o amigo, incrédulo. – Sempre pensei que fosse o labrador ou o golden retriever.
– Ah sim, o labrador e o golden são ótimos, mas nada se equipara a um boxer em se tratando de crianças. São considerados os melhores cães do mundo para elas.
– Eu também gosto dos boxers. – Comenta Daniela, que chega sem ser notada. Viram-se e Paulo não resiste, dando um assobio. Ela está muito bonita, com um vestido vermelho que contrasta com os seus cabelos. Sentindo-se bem apreciada, abre um sorriso e dá uma volta. – Estou bonita?
– Caramba, Dani – diz ele, brincando – se soubesse que eras tão gata assim, já tinha dado em cima de ti mais cedo. O Daniel que se ferrasse!
– Sem chance, Paulo – afirma, manhosa – eu não seria capaz de roubar o amor de uma amiga...
– O quê? – Pergunta ele, bem atordoado com a informação inesperada. – Amor de uma amiga? Mas a tua amiga é a...
– Cláudia – diz o casal ao mesmo tempo – só que vocês são tímidos demais, não é? – Continua ela. – Por isso larguei esta deixa. Vê se te ligas, tchê!
– Paulo, não te importas de ficar aí um pouco, enquanto passo na casa da Dani? – Pede o amigo. – Volto em vinte minutinhos.
– Vão tranquilos. Vocês não acham que é carne demais? Até parece que vem mais gente!
– Não, meu velho, faz tudo. Se sobrar, sobrou. Não pode é faltar. Além disso – diz o amigo enigmaticamente – a Dani precisa de se alimentar melhor. Está muito magra.
– Deves estar maluco. – Espanta-se o amigo que recebe em troca um sorriso trocista. – Acho que precisas de lentes de contato!
– Vamos, Dani. – Diz Daniel, rindo. Abre a garagem e escolhe uma linda BMW conversível, para sair. Quando chegam à casa da moça, esta aproveita para dar um beijo nos pais e pegar umas coisas que deseja levar. Na rua, Cláudia e Daniel conversam:
– E tudo aquilo era amor enrustido – comenta a garota – bem que eu achei a reação dela, naquele dia na aula de inglês, muito exagerada.
– Na verdade, Cláudia, já nos conhecíamos – explica – mas apenas eu me lembrava disso. A Dani sofreu um pequeno trauma, quando nos separamos e, por isso, o seu subconsciente apagou a minha imagem da memória dela.
– Mas quando foi isso!?
– Há muito tempo – informa, sonhador – tínhamos oito anos e ficamos muito apaixonados. Claro que foi aquela paixão de criança, mas foi muito forte, lá na China. Eu vivi em Hong Kong até quase aos treze anos, quando voltei para o Brasil.
– É mesmo? Que bacana! – Diz a amiga. – Por isso ela disse que tu falas cantonês com perfeição, até melhor que ela.
– Sim, Cláudia, mas peço-te encarecidamente que nada digas a respeito disso, pois gosto de ficar no anonimato. Quanto ao resto da história, ela conta-te depois – afirma ao ver a namorada chegar. Avista os pais na janela e faz um aceno acompanhado por uma reverência respeitosa, que é correspondida.
– Nelson – comenta a senhora Chang com doçura na voz – a nossa filhinha está crescendo e, em breve, não será mais nossa. Mas que genro adorável nos arrumou, muito educado e dedicado. Olha como ele abre a porta para ela! Pensei que isso não existisse mais!
Daniel dirige calmamente para casa e estaciona na garagem. Por dentro está doido para ver o que vai acontecer com o amigo, pois sabe que este sonha com a Cláudia dia e noite. Ele caminha na frente, enquanto Dani e a amiga vão um passo atrás, conversando calmamente. Quando aproximam-se do galpão, a garota avista Paulo de costas, cortando e limpando as carnes tranquilamente. Muito assustada, diz, segurando o braço da Daniela:
– Ai meu Deus, puta que o pariu, o que faço agora?
Paulo ouve os amigos aproximarem-se e vira-se. Quando vê quem é, deixa cair a tábua que tem nas mãos, fazendo um estrondo e assustando os cães que saltam imediatamente para o lado. Estes, ao verem o dono, correm para cumprimentá-lo e cheirar a nova convidada que, de repente, esquece de tudo e ajoelha-se para os cachorros como se eles fossem dela a vida toda, sem sequer cogitar a hipótese que poderiam tê-la morto no ato.
– Boxers – diz, sorridente, abraçando os animais – eu amo boxers.
– E eles a ti – afirma Dani, vendo os cães altamente treinados comportarem-se como se ela fosse a dona deles há anos.
– Caramba – comenta Daniel – nem precisei usar o comando de amigo como usei contigo! Ela deve ter uma empatia enorme com os animais. Só vi outra pessoa assim: o Paulo.
– Quando acabar o ensino médio, vou prestar exame para veterinária. – Explica aos amigos, exibindo um sorriso juvenil. – Sou louca por animais.
– É mesmo? – Questiona Paulo, que se aproxima devagar, muito tímido. – Onde? Eu também vou!
– UFRGS – responde com olhos muito brilhantes – é a melhor da área em todo o Brasil, uma das melhores do mundo.
– Então seremos colegas, se Deus quiser.
– Claro – afirma ela, totalmente envolvida, feliz pela oportunidade de finalmente conversar com Paulo – tu vais-te especializar em cães?
– Certamente, e gatos, também. Gosto muito dos siameses e persas.
– Sério? Eu também!
– Dani – diz o namorado em cantonês, pegando sua mão – acharam-se e foi bem mais fácil que nós.
– É mesmo – ela dá uma gargalhada – muito mais. Vamos pôr uma música?
Daniel ergue a voz e diz:
– Computador: põe uma música. – Ao mesmo tempo, Cláudia questiona para Paulo:
– Que diabo eles estão falando? – Franze o sobrolho.
– Sei lá – responde o outro – mais parece uma porrada de consoantes monossilábicas. Queres vir comigo? Tenho ali um livro novo, que acabei de comprar, só que está em alemão. É sobre os boxers.
– Eu leio alemão muito bem – diz, feliz – sou de origem alemã.
– Eu também. Só espero que não sejamos primos – acrescenta, brincando.
– Por quê? – Pergunta a garota, distraída.
– Bem, é que... – Paulo fica travado e Cláudia, inocente, não se atina. Olha para ele erguendo uma sobrancelha.
– B... bem, sabes que primos não... tipo... bem, não podem... não, não devem... ah...
– Bah, não tô entendendo nada. – Interrompe a moça, enquanto Daniel e a namorada seguram o riso. Criando coragem, Paulo dá um suspiro profundo e diz:
– Por... por... por... porque te amo demais, Cláudia. Pronto agora já disse. – Responde, gaguejando e suando frio, mas muito aliviado. – Te amo desde o oitavo ano.
A garota aproxima-se dele, tremendo, e beija-o nos lábios.
– Eu também. Desde o primeiro dia de aula que frequentamos juntos, Paulinho. – Ambos abraçam-se e beijam-se longamente até que Daniel, muito sacana, provoca:
– Ei, Paulo, e o churras?
– Pô, tchê, dá uma folga. – Reclama em meio aos beijos. – Bem sabes quanto tempo faz que espero por isto.
– Claro, cara, tava de sacanagem. Deixa que eu assumo. Isso foi tudo premeditado, só não contava com a ajuda dos cachorros.
– Nem penses em assumir pois vais dar uma tremenda indigestão nas garotas. – Emenda Paulo, alarmado, entre beijos e abraços. Pega na mão da garota. – Vens comigo, Cláudia? Ele faz o pior churrasco do mundo e só ele consegue comer!
Cláudia dá uma risada e, de mãos dadas com o novo namorado, vai ajudá-lo a fazer o churrasco que, como sempre, fica excelente. Comem, brincam e conversam. Entre trocas de beijos e carícias, falam sobre animais, quando Cláudia comenta:
– Vocês sabem que eu ouvi dizer que a Cybercomp maltrata os animais. – Dani vai falar, mas o namorado faz um sinal. – Dizem que sujeitam as cobaias a maus tratos. Eu tenho a maior vontade de ir lá com uma turma e fazer um manifesto. Pena que é tão longe!
– Não seria mais jogo – questiona Daniel – pedir para falar com um representante deles e conversar? Diálogo sempre é a melhor solução.
– Ora – afirma Paulo, sério – decerto que eles vão negar, etc, etc, etc... até parece que não sabes como é esse tipo de gente.
– Não concordo pois conheço o dono e posso garantir para vocês que é exatamente o contrário. – Riposta Daniel. – Claro que há cobaias lá, mas são tratadas com extremo carinho. Por exemplo, há um cão que estava morrendo de ataque cardíaco e foi salvo por eles, que implantaram um coração mecânico experimental. Também há um macaco que perdeu a vista em uma briga com outro e colocaram um olho artificial no bicho. Eles dependem dos animais para as suas experiências e jamais iriam tratá-los mal.
– Mas quem te garante isso, Daniel? – Pergunta Cláudia exaltada, levantando a voz. – Viste esse cão? E o macaco?
– Cláudia, o cão é o pai de alguns desses que estão aos vossos pés e o macaco foi um acidente. Colocaram-no junto com outro que não era da mesma espécie, um erro de um estagiário.
– Meu Deus – espanta-se Paulo – como podes saber disso, por acaso conheces assim tão bem o dono da empresa?
– Eu sou o dono da Cybercomp, Paulo, e juro para vocês que não permitirei, enquanto for vivo, que um animal ou qualquer ser vivo seja maltratado.
– Minha nossa, Daniel! – Exclama Paulo. – Nunca me contaste!
– Paulo, somos muito amigos, mas há coisas a meu respeito que nem sonhas e não te contei porque não me ocorreu ou porque pretendo manter um certo segredo, não que tu vás contar para alguém é claro, mas apenas porque quero que seja assim e nem por isso sou menos teu amigo. Tu sabes que nunca minto, tanto que sou sincero, mas peço que guardem segredo absoluto quanto a isso.
– Dan – pede Cláudia, empolgadíssima – podemos visitar o centro?
– Claudinha – afirma Daniel, rindo – vocês são bem-vindos sempre que quiserem.
Enquanto Cláudia e Paulo brincam com os cães, o outro casal vai para o trapiche, à beira do rio, apreciar a tranquilidade das ondas minúsculas batendo na areia.
– Que dia gostoso – diz ele, bastante alegre – temperatura ótima, sol agradável, bons amigos, um bom churrasco...
– É mesmo, quase que dá praia. Pena que é tão longe!
– Ora, se tu quiseres ir para a praia, podemos ir agora. Tenho uma casa maravilhosa sobre um penhasco, linda demais. E lá é sempre quente, até no inverno. – Diz Daniel com a voz alegre.
– Mas claro que quero. Vou ver se eles querem ir.
– Danizinha, é no norte do pais, no Pará, e teremos de ir de avião. Não tem problema pois tenho o meu próprio avião, mas precisas ver se eles podem ir.
Daniela vai falar com os amigos, que ligam para os pais. Ambos conseguem autorização e os dois casais, após pegarem os itens necessários para irem passar o resto do fim de semana na praia, seguem para o aeroporto Salgado Filho. Entram por um portão destinado a aviões particulares e seguem para o hangar da Cybercomp. Daniel pede que esperem, pois precisa de apresentar o plano de voo e a lista de passageiros. Ao retornar, pouco depois, convida os amigos a entrarem em um bonito jato azul e branco, que está perto deles.
– Cadê o piloto – pergunta Dani, rindo – sumiu?
– O meu avião eu mesmo piloto. Vamos?
– Daniel – pergunta Paulo, preocupado – é seguro?
– Tchê, eu tenho mais de quinhentas horas de voo solo, só neste avião. – Responde ele, sorrindo para os amigos. – Piloto aviões há mais de três anos. Fiquem tranquilos.
Na cabine de passageiros, espaçosa e muito agradável, o pessoal senta-se, enquanto Daniel segue para o cockpit. Após a decolagem e ele informar que as cadeiras podem ser destravadas os três amigos começam a bater papo em um pequeno circulo.
Daniel aparece com uns sanduíches e refrigerantes para todos e começa a conversar. Não demora muito e Cláudia começa a berrar, desesperada.
– Meu Deus, vamos todos morrer! Não, NÃO.
Preocupado, Daniel pergunta:
– O que houve?
– Vamos cair, volta pra lá, pelo amor de Deus.
Rindo, Daniel diz:
– Claudinha, não te preocupes que ativei o piloto automático. Eu não seria leviano a ponto de abandonar os controles a Deus dará.
– Bah, gente, eu não sabia que tinha isso. – Desculpa-se, envergonhada. – Nunca andei de avião. Me perdoem.
– Nem esquenta.
Cláudia acalma-se e vão conversando por quinze minutos quando Daniel diz:
– Gente, para chegar cedo mandei o piloto voar muito rápido. Eu vou para a cabine controlar porque devemos pousar em breve e estamos a umas quantas vezes a velocidade do som.
― ☼ ―
Mahjong é um jogo chinês maravilhoso que pode ser definido como um tipo de canasta com nuances de poker.
Inteligência Artificial - N.A.
UFRGS – Universidade Federal do rio Grande do Sul
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