Capítulo 3 - parte 1 (não revisado)

"Há momentos em que a maior sabedoria é parecer não saber nada."

Sun Tzu – A Arte da Guerra.


Aquela manhã está particularmente gelada, propícia para se ficar na cama em baixo das cobertas, mas Daniel levanta-se bem disposto, ignorando completamente o frio intenso e escutando o Minuano soprando forte. Apesar de estar um grau positivo, o vento glacial de mais de noventa quilômetros por hora faz a sensação térmica ser de menos dez graus, especialmente na região da casa dele, que fica perto do rio Guaíba, mas Daniel nem parece notar isso, sentindo-se alegre. Dormiu aproximadamente seis horas e teve um sonho delicioso, que não lhe sai da cabeça, mas, por praticidade, põe-no de lado e concentra-se nas prioridades, pois sabe que foi uma premonição e, se tiver que acontecer, será na hora adequada. Uma vez arrumado segue para a sua escola que fica relativamente perto de casa, uma bela mansão em Ipanema na zona sul de Porto Alegre. Apesar do tempo estranho, opta por ir a pé, já que sabe que durante a manhã o tempo vai estabilizar e ele adora caminhar ou correr.

Daniel Moreira é um adolescente de dezesseis anos, alto, cerca de um metro e oitenta, bonito, com corpo atlético e musculoso, cabelos e olhos castanho-claros, geralmente bastante quieto e triste. Fala muito pouco a não ser com os amigos, mas é educado e polido. Gosta de esportes, sendo da equipe de atletismo da sua escola e considerado um dos melhores atletas. É um inimigo ferrenho da violência, evitando por isso todo e qualquer tipo de confronto, fazendo com que muitos colegas julguem-no como um covarde, sem compreenderem o seu ponto de vista, embora ele não se preocupe com isso, já que também não gosta de chamar a atenção.

O jovem moreira não sabe explicar nem a si mesmo os motivos de estar tão bem e tão-pouco procura soluções para isso, embora acredite que seja por causa do sonho, a coisa que mais deseja há muitos anos.

Enquanto caminha, empurrado pelo Minuano que lhe chicoteia as costas com suas rajadas intensas, começa a pensar no alvo das suas atenções, uma colega de classe por quem é perdidamente apaixonado. Ela senta-se perto dele, mas não lhe dá bola a não ser para debochar do jovem, que sente tristeza quando isso ocorre. Daniel é tão bom em ocultar as suas emoções que ninguém nota, mas ele sofre bastante com essa rejeição.

Já no pátio, encontra um amigo, o único amigo na escola que tem intimidade com sua vida pessoal, o Paulo. Tem outros colegas que o respeitam e até gostam dele, mas não são amigos e a maioria dos demais, acham-no um boiola.

Ainda há um forte nevoeiro que dá um aspecto londrino à cidade e Paulo, um grande amante da fotografia, não dá descanso para a máquina tirando fotos umas atrás das outras.

– Caramba, tchê – Paulo diz para o amigo – hoje tá frio pra renguear cusco!

– De fato está meio fresco. – Responde Daniel, rindo do comentário, pois Paulo adora os termos gaúchos. – Ainda não cansaste de tirar a mesma fotografia dez vezes?

– Tudo pela arte, meu irmãozinho, mas tô preocupado com a bateria que esqueci de carregar. Agora vou-te dizer uma coisa: fresco é o cacete. Tá frio, muito frio mesmo! Por acaso tu só sentes frio se fores para o polo sul?

– Foi só uma forma de falar, amigão. – Responde após se rir do Paulo, que está todo encarangado, vestindo até um gorro e cachecol de lã. – Eu sou muito resistente ao frio, mas deixa pra lá.

Pouco tempo depois o sinal toca, no exato instante em que Paulo solta uma sonora praga porque termina a bateria da máquina. Ambos vão para a sala, sentando-se no fim da mesma. Mal entra, Daniel observa a garota da sua vida, que está conversando com uma amiga e não o viu chegar. A primeira aula é de física e o professor entra, fazendo com que os alunos calem-se, pois temem-no um pouco.

O jovem Moreira nota logo que ao contrário de si, o professor André não acordou com bom humor. De fato, ele raramente apresenta algum traço de alegria, mas nesse dia em especial está péssimo. É um homem alto e forte, na casa dos trinta para quarenta anos, cabelos lisos e pretos, mal penteados, nariz aquilino e olhos sérios, dos quais nada escapa. Está tão mal humorado que os alunos acautelam-se enquanto ele olha em volta, fazendo o jovem pensar que procura uma vítima para descarregar a sua frustração. Quando os olhares de ambos encontram-se, Daniel conclui que foi eleito a vítima do dia. André começa a falar com a sua voz grave e profunda. Suavemente diz:

– Senhores, péssimas provas. Com essas notas, não chegarão a lugar algum. – Aponta o dedo para o Daniel, dizendo em tom de acusação. – Tu, Daniel, não tens vergonha de copiar os resultados da prova?

– Eu copiar, professor? – Questiona o jovem levantando-se e ficando impassível, como sempre. – Eu não copiei os resultados, escrevi-os. Há uma sutil diferença nisso.

– Sutil diferença? – Vocifera o professor. Não vejo nada de sutil nisso. Negas que colaste na prova?

– Mas é claro que nego, senhor – fala com tanta calma e tranquilidade que conclui que isso irrita ainda mais o mestre – eu não preciso colar. Isso é tão básico que simplesmente calculei e escrevi o resultado. Simples assim.

– Simples assim? – Quase berra. – Simples assim? Ninguém conseguiu acertar toda a prova, nem mesmo a senhorita Chang, que é uma das melhores alunas, e o senhor vem com essas mentiras? Onde estão os cálculos?

– Olhe professor. – Daniel decide dar o troco pois achou um exagero a atitude. – Se eu fosse o senhor acalmar-me-ia, pois seu pescoço está bastante vermelho. Olhe a pressão. Para sua informação, eu jamais minto e tenho muito orgulho disso. Se o senhor não concorda, coloque aí no quadro um problema que eu resolvo tal como fiz na prova, mas escolha algo mais decente, por favor.

Tal comentário rende uma gargalhada da turma, que faz com que André fique de olhos esbugalhados. Furioso o professor decide complicar a vida do rapaz e pega na caneta, escrevendo um problema bastante complicado para o período atual. Antes mesmo de terminar, ouve Daniel dizendo:

– Raiz de pi sobre r vezes omega.

– C... co... como? – Questiona cada vez mais vermelho.

– Professor – Daniel fala docemente, sabendo que isso ainda o enfurece mais – esse problema está na página duzentos e trinta e um do livro didático. Eu conheço todos os exercícios do livro, pois dei uma lida nele no início do ano. Olhe a sua pressão que senhor está muito vermelho e não desejo que tenha uma síncope por culpa minha. Eu disse que isso é trivial, quase como a tabuada, professor, e por isso sugeri algo mais complicadinho.

Esse comentário rende nova gargalhada da turma, que não imaginava que a situação ia ter esse desfecho.

– Como tu ousas... – Acalma-se e pergunta com a voz baixa, falando tão docemente quanto Daniel. – Por acaso sua excelência deseja algum assunto em particular? Que tal a fusão nuclear a frio, essa está boa para si?

– Bem, caro mestre – responde o jovem, professoral – creio que o assunto seja meio complexo para este local, mas eu andei tendo umas conclusões interessantes a respeito da fusão a frio e adoraria trocar umas ideias a respeito disso com alguém que entenda do assunto.

Desta vez ninguém consegue segurar a turma, que rebenta numa gargalhada homérica. O professor, de boca escancarada, verdadeiramente espantado por ver o garoto quieto e tímido pôr repentinamente as garras para fora, fica desnorteado. Segundos depois, vocifera nm berro:

– Ah é? – A turma cala-se no mesmo ato, assustada. – Pois então quero em cima da minha mesa um trabalho completo sobre fusão a frio até ao fim do mês. Onde é que já se viu um fedelho de dezesseis anos querer discutir um assunto que no máximo dez pessoas conhecem a fundo em todo o planeta. Vejamos, hoje é dia vinte... Muito bem, tens dez dias ou o zero mais redondo do mundo se não me trouxeres nada.

– Está bem, senhor professor – Daniel encolhe os ombros, humilde – mas como o senhor mesmo disse, apenas um grupo pequeno de pessoas sabem isso a fundo. Assim, como o senhor irá reconhecer a legitimidade do meu trabalho? Além do mais, o zero já é um círculo perfeito e não há como o fazer mais redondo.

Nova explosão de risos, mas mais calmos que antes.

– Tu – diz André, apontando para um aluno e entregando-lhe as provas – distribui esta vergonha. E tu, Daniel, fica sabendo que faço parte do rol de pessoas que conhecem a fusão a frio como a palma da mão, então nem penses que me enganas.

– Folgo muito em saber disso, senhor professor. Assim poderemos realmente trocar umas ideias interessantes. – Dizendo isso, Daniel volta a sentar-se, dando a palestra como encerrada.

– Onde diabo tu aprendeste a falar assim, garoto?

Em troca, o cansado professor recebe apenas um sorriso tímido e Daniel nota que ele sente-se irremediavelmente derrotado.

As notas estão tristes e mais tristes ficam os alunos. Mas, como bons adolescentes que são, isso não dura muito e, em pouco tempo, já estão brincalhões e barulhentos, o que lhes rende uns berros do André.

– Bah, cara – Paulo cutuca Daniel, que se vira para trás – será que isso foi boa ideia, irmãozinho? Esse teacher vai-te trucidar quando receber um trabalho simples, ainda mais com o teu último comentário, tchê.

– Sem stress, Paulinho, vou deixar o cara doidão. – Daniel ri.

– Tchê, diz aí de onde tu arrancaste tanta vontade de enfrentar o velho?

– Nem sei – volta a sorrir – não tinha intenção, mas não gostei do jeito que me tratou. Na verdade, apenas defendi-me.

– Bah, deixa pra lá, irmãozinho. Que nota tu recebeste? Eu dei-me mal, tomei um seis, mas pelo menos passei.

– Precisa falar? – Daniel mostra a prova! – Zerinho, mas ele engole essa, pois a prova tá certinha.

– Pelo jeito – continua o jovem – o dia vai ser longo.

– Pior que é. – Paulo suspira. – A próxima aula é inglês e temos outro resultado de prova.

– Não esquenta. É apenas uma prova. Só espero que aquele veado do Marcos esteja de bom humor.

– Para ti é fácil, mas eu não estou tão certo.

– Sem stress. Se aprendeste o que te ensinei, foi moleza.

– Assim espero. Bem, pelo menos depois da aula de inglês, estamos liberados pois é conselho de classe.

– VAMOS PARAR COM AS CONVERSAS! – Grita André.

― ☼ ―

Na aula de inglês, as coisas também não vão muito bem e Daniel começa a achar que todos os professores da escola acordaram de mau humor e pior: conjuraram para elegê-lo como alvo. Marcos, o professor de inglês, não é exceção:

– Senhor Daniel, vejo a sua prova toda bonitinha – fala docemente o professor – você respondeu tudo em cinco minutos sem errar nada! – Engrossando a voz, continua. – É pouco provável. De onde arrumou o gabarito?

Daniel volta a levantar-se, enquanto ouve Paulo murmurar às suas costas:

– Epa, vai começar tudo de novo!

– Por que acha que eu arrumei um gabarito? – Novamente o Daniel está impassível, ignorando o comentário do amigo. – Para isso eu precisaria de invadir o seu computador, o que não é do meu interesse e tão-pouco do meu feitio.

– Ah sim? – Questiona Marcos. – E o que o faz pensar que o senhor conseguiria invadir o meu micro?

– Como vejo, o senhor está confiante que não posso invadir o seu computador, logo não poderia ter o gabarito, não é? Então, para quê persistir no assunto? Isto é o que se chama de raciocínio lógico.

Irritado, o professor questiona:

– É mesmo? E se pudesse invadir o meu computador, em quanto tempo seria isso?

– Olhe, professor, não vou negar que posso porque jamais minto. Sou capaz de quebrar a segurança qualquer computador em um minuto ou pouco mais, simples assim. – Daniel encolhe os ombros e sorri. – Só que é totalmente contra a minha natureza. Isso seria incorreto!

– Simples assim? – Quase grita o professor. – Simples assim? Nesse caso, teremos de confiscar o seu micro e fazer uma auditoria nele.

– Caramba, professor, já lhe disse que não minto. Além do mais, o meu computador é completamente inviolável, pode ter a certeza disso. Porém, forneço-lhe o meu acesso para o senhor, se quiser. Mas veja bem, já lhe ocorreu que há uma outra alternativa, muito mais simples?

– Garoto, para responder esta prova em cinco minutos sem errar nada só se falasse fluentemente inglês. Melhor até do que eu.

– E o que diabos me impede disso? – Pergunta Daniel, já meio irritado. – Por acaso acha-se o único capaz de falar uma língua estrangeira?

– É mesmo? – Questiona o infeliz do professor. – Fala inglês e quantos idiomas mais?

– Vejamos... cerca de nove idiomas e quatro dialetos... Sei lá, uma porrada deles.

– Engraçadinho não é, senhor poliglota? Agora só falta me dizer que sabe falar chinês.

– Óbvio que sei e muito bem...

Nova gargalhada na sala de aula. Sem se conter, Daniela Chang, uma menina muito bonita, mas impetuosa e debochada, decide divertir-se às suas custas e fala algo incompreensível. O jovem nota novamente a sua atitude e pensa que motivos ela terá para tratá-lo tão mal e por que esse forte implicância consigo. Já até cogitou a hipótese dela fazer isso por ser atraída por ele e não querer admitir isso nem em sonhos e o que mais gosta de expôr é a pretensa covardia do rapaz. Só que o seu comentário foi demasiado cruel.

Levantando-se da cadeira e com um ar zangado, Daniel aproxima-se dela, falando algo ao seu ouvido. Fala tão baixo que ninguém ouve, mas ela torna-se muito vermelha. Antes que alguém reaja e rubra de cólera, ergue a mão com uma velocidade impressionante e tenta acertar uma bofetada nele. Por isso fica de olhos arregalados quando o jovem segura seu pulso, tendo o cuidado de não a ferir, e fala alto o suficiente para ser ouvido à sua volta.

– Nós não queremos isto, não é, Daniela? – Embora esteja zangado, não há maldade no seu olhar. Este é firme, mas transmite-lhe algo tão inexplicável que ela cede, olhando para ele, completamente desarmada, transtornada.

– SENHOR DANIEL – berra o professor – como se atreve a uma coisa dessas?

– Eu nada fiz, professor – diz, mantendo segura a mão dela e erguendo os olhos – exceto por responder à ofensa. Da minha parte já está tudo esquecido. Além disso não há motivo para me chamar à ordem, uma vez que não agredi ninguém, da mesma maneira que ela, que não obteve sucesso. Por isso, devíamos esquecer o assunto já que foi só um mal-entendido.

Irredutível, o professor continua:

– Acho que devo mandar chamar o seu pai...

– Creio que isso será difícil, realmente muito difícil, senhor, senão impossível!

– É mesmo? – Pergunta Marcos, apanhado de surpresa – e por quê?

– Porque ele está morto e a minha mãe também – responde com uma grande dor na voz, largando suavemente a garota – satisfeito ou deseja saber algo mais? Talvez fazendo uma sessão espírita...

Faz-se silêncio sepulcral, pois ninguém exceto Paulo, sabe da tragédia da família do rapaz e estas palavras soam como uma bomba que tenha estourado no meio da sala de aula, uma vez que nenhum deles esperava tal desgraça. Antes que possam reagir, a garota sai da aula de tropel, com a mão no rosto e deixando escapar um soluço.

– Senhor Daniel, eu sinto muito pelos seus pais, mas se o senhor foi o responsável pelo que aconteceu à senhorita Chang, pode ter a certeza de que sofrerá as piores consequências que possa imaginar – diz o professor, zangado – agora, sente-se no seu lugar e fique quieto. Você, Cláudia, é amiga da Daniela não é? Então faça o favor de ver se pode ajudá-la e descubra o que houve.

Daniel encolhe os ombros e senta-se na sua cadeira enquanto Cláudia sai. Paulo comenta:

– Caramba, achei que não quisesses que soubessem disso, tchê!

– Eu não queria, mas entre isso e mentir... melhor isso.

– Irmãozinho, desta vez exageraste – acrescenta o amigo, preocupado – mesmo depois desse banho de água fria que a notícia dos teus pais trouxe, acho que vai sobrar pra ti.

– Talvez, mas deixa pra lá. – Responde. – Dane-se. Eu devia ter ficado quieto, mas ela magoou-me muito.

– Xi, vais dizer que entendeste toda aquela montoeira de consoantes e monossílabos que ela disse! É sério, tu sabes chinês? Puta merda!

– Sim, sei chinês, mas vê se não espalhas. Além do mais, o que ela falou é um dialeto chamado cantonês, que é originário da província do Cantão, muito falado em Hong-Kong e não um monte de consoantes monossilábicas.

– Mas bah, tchê, onde raio tu aprendeste isso?

Numa tentativa de relaxar, responde, sorrindo:

– Em filmes de Kung-fu, onde mais poderia ser?

– Fala sério!

– Deixa pra lá, Paulo. Vivi em Hong-Kong. Ela não se lembra, mas já nos vimos antes.

– Tchê, não é por nada, mas a mim me parece que estás caidinho pela Daniela. Melhor olhar para outro lado, cara, pois ela só te trata mal!

– Eu sei, Paulo – diz com um suspiro – eu sei. Mas o que posso fazer se a amo tanto! Vê se ficas na tua.

Conhecendo o amigo, este respeita-lhe a privacidade, pois sabe que Daniel contará tudo mais cedo ou mais tarde.

― ☼ ―

Cláudia procura pela amiga já tendo ido a vários lugares sem sucesso. Esta é uma garota muito bem feita, não muito alta, com dezessete anos, loira, olhos azuis, cheia de belas curvas do tipo que todos desejam e uma grande paixão do Paulo. Fica pensando no colega geralmente tão quieto e na dor que o pobre coitado deve sentir, pois jamais imaginou uma tragédia assim. Já desistindo de procurar a amiga entra no sanitário e acaba por encontrá-la num canto, chorando bastante.

– Meu Deus, Dani, o que aconteceu? – Pergunta, assustada. – O que ele disse para te deixar assim? O "velho" tá tri puto com ele.

– Ele não tem culpa, eu fui horrível. Disse algo muito ruim que deve tê-lo magoado demais. Eu não sabia, eu não sabia – afirma esta, em prantos – que droga, que droga.

– Mas, Daniela, ele não deve saber nada de chinês para entender o que tu disseste...

A jovem levanta o rosto, por onde correm muitas lágrimas, manchando seus olhos de vermelho e argumenta, com uma risada chorosa:

– Ah sabe sim e muito melhor que eu, melhor até que os meus pais. Ele falou um cantonês sem sotaque algum. Eu nasci aqui no Brasil e os meus pais vieram para cá pequenos. O nosso sotaque está influenciado, mas ele não. Fala cantonês como se tivesse nascido e vivido na China a vida toda.

– Tá bom – afirma Cláudia, abraçando a amiga – nada deve ser tão ruim assim e eu acho que ele não é de guardar ran...

– Foi sim, eu falei dos pais, brinquei com seus sentimentos, dizendo que ele era um filhinho de papai querendo aparecer, que era a segunda afronta que ele fazia aos professores e que logo logo ia correr para as saias da mamãe assim que a coisa apertasse. Eu não sabia que ele era órfão, como me sinto mal. – Irrompe novamente em lágrimas.

– E o que ele disse para ti? – Cláudia acha a reação da amiga exagerada, como se algo não combinasse. – E por que no teu ouvido?

– Ele tava muito zangado. Disse que eu não passava de uma menina mimada e que não espelhasse a imagem dele na minha. E disse algo que não entendi. Disse que estava na hora de crescer e parar de agir como antigamente, como se ele me conhecesse! Depois, disse que conhecia o meu pai e que ele era honrado demais para ter uma filha com esse comportamento. Caramba, como eu me zanguei mas, quando soube dos pais dele, fiquei muito abalada.

– Bah, nem fala. Coitadinho dele esse lance dos pais...

– Ele tava segurando meu braço quando disse isso. – Afirma Daniela, interrompendo a amiga. – Primeiro eu senti como se a mão dele me estivesse queimando e depois, quando ele falou aquilo, juro que senti toda a dor dele, como se nós compartilhássemos as nossas mentes. Foi tão forte que era como se tivesse acontecido comigo. É uma coisa que não sei explicar.

– Daniela, eu acho que tu estás é muito apaixonada por ele e não admites – afirma a amiga, sorrindo gentilmente. – Afinal, não sei por que tens tanta implicância com ele. Pode não ser nenhum herói, mas é lindo de morrer. E tem mais, eu acho que ele gosta muito de ti, pois vejo os olhares que te deita, embora seja muito discreto. Quem sabe tu metes a mão na consciência e assumes logo isso? Olha só, o velho tá louco para crucificá-lo. Eu tenho que voltar para lá. Vais estar bem?

– Nem sei o que sinto, mas não faz sentido ficar apaixonada de um segundo para o outro. – Diz, sem convicção. – Bah, não deixes o Marcos pegá-lo. Vai lá e fala com ele...

Cláudia entra na sala de aula e dirige-se para o professor. Após falar com ele caminha para o seu lugar, mas por um caminho mais longo, que passa ao lado do Daniel, e segreda-lhe algo ao ouvido.

– Senhor poliglota – diz o professor, debochado – para sua sorte, a senhorita Chang não só afirmou que não foi culpa sua, como também pediu para expressar as suas desculpas e condolências.

– Obrigado, senhor – responde o rapaz, levantando-se com uma pequena mesura – por favor, preciso de sair uns minutos. Acho que também lhe devo desculpas e, já que não retornou, gostaria de falar com ela. Se não se importa, considere o meu pedido!

– Onde raios você aprendeu a falar assim! Isso não é jeito de um garoto da sua idade falar, mas vá lá. Acho muito louvável a sua atitude. Só que não pense que isso vai mudar sua nota. Vamos lá, vamos lá, não a deixe esperando.

O professor demonstra que é boa pessoa, apenas fazendo-se de durão. Para manter as aparências, lança um berro na aula:

– Vamos lá gente, isto aqui é uma aula de inglês, não um consultório sentimental. Vejamos esta sentença composta...

― ☼ ―

Vai encontrá-la no bar da piscina, tal como Cláudia orientara. O colégio é enorme e tem uma piscina olímpica, coberta e climatizada. No subsolo, entre vestiários e salas de ginástica, há uma lanchonete, sendo um lugar um tanto afastado do movimento. Está muito nervoso, pois ela é a garota dos seus sonhos e não sabe exatamente como vai agir ou falar. Ao vê-la, fica mais sereno, já que sabe que o nervosismo só piora. O rosto dela ainda está marcado pelo choro e, ao aproximar-se, ela abraça-se a ele, apertando-o com força e voltando a chorar.

– Desculpa, Daniel, me desculpa – sem dar conta, fala em cantonês – eu não te queria magoar, fui tola.

– Calma, pequena – acalanta-a, falando suavemente na mesma língua e afagando-lhe os cabelos negros, lisos e sedosos. A sua mão treme ligeiramente e o perfume que ela emana deixa-o completamente inebriado. Tentando controlar-se, continua. – Já passou. Deixa pra lá que também não fui muito delicado. Esquece isso. Tu não tiveste culpa, não sabias.

– Mas eu...

– Mas chega. Vamos pôr uma pedra nisso, ok? – Ela faz que sim com a cabeça, ainda soluçando. Ergue o rosto para ele e esboça um sorriso. Os seus olhos amendoados estão vermelhos do choro e Daniel pega um guardanapo de papel, limpando-os. Faz um carinho suave no seu rosto e diz. – Vem, vamos dar uma volta, que isso ajuda a relaxar.

Gentilmente, ajuda-a a levantar-se e leva-a para a rua. Caminham em silêncio por algum tempo e Daniela vai ficando mais calma, andando abraçada a ele e alheia a tudo, sentindo algo que lhe é completamente novo, mas que lhe dá a sensação de que não é a primeira vez que está assim, o que a deixa muito confusa. O prazer daquele contato é tão intenso que decide aproveitar o momento e deixar o resto para depois.

Já ele está em total êxtase. Passa o braço em volta da moça e mantém-na muito próxima a si, contato que ela não só não evita como encoraja, apoiando a cabeça no seu ombro e um dos braços na sua cintura. Daniel sente aquele toque como uma descarga elétrica percorrendo o seu corpo e o coração do jovem bate em um ritmo acelerado. Após uns minutos de silêncio, ela pergunta:

– Como podes falar cantonês com tanta perfeição? – Tem a voz espantada, olhando para cima, direto nos seus olhos. – Nunca vi alguém falar assim tão perfeitamente, especialmente um ocidental. Somente quem nasceu lá e veio para cá já adolescente ou adulto!

– Quando eu tinha seis meses, os meus pais foram para Hong-Kong. Eu falo cantonês, mandarim, hakka e xangaiês.

– Caramba! Todos eles assim, sem sotaque?

Rindo, Daniel confirma:

– Sim, mas eu gostaria de manter isso discreto, pode ser?

– Claro, só que eu já contei para Cláudia! Então, por que disseste na aula que sabias falar chinês?

– Quem falou foi o professor – corrige, sorrindo – eu apenas confirmei porque realmente nunca minto, mas também tinha a certeza que ninguém acreditaria em mim. Marcos precisava mesmo de ouvir aquela. Viste como ele ficou vermelhão?

Daniela esboça um sorriso ao lembrar da cara do professor.

– Quanto à Cláudia – continua Daniel – é só não conversar sobre o assunto que ela logo esquece, pois tem outros interesses. Além do mais não é um segredo; apenas não desejo chamar a atenção.

Daniela está espantada porque o garoto que ela tanto espezinhou é de caráter forte, firme, bondoso e confiante. Nada disso combina com a imagem que fazem dele, um covarde, e isso deixa-a com a consciência pesada.

– O que quiseste dizer com o fato de conheceres meu pai, Daniel? – Pergunta de supetão.

– O teu pai é um médico famoso. Acontece que o meu pai era médico pesquisador e eu lembro-me de eles terem-se encontrado mais de uma vez.

– Sim ele foi para Hong-Kong muitas vezes. Eu estive lá uma vez, quando era criança. Foi uma época que jamais esquecerei. Pena que há partes dela que não me lembro direito, como se fosse um filme ou um sonho meio apagado, mas lembro-me que aconteceu algo muito bom, muito especial, que me traz uma sensação de amor muito grande – um semblante de sorriso aparece no rosto dele – mas também uma enorme sensação de perda e tristeza. Por que falaste como se me conhecesses há anos?

– Eu falei? – Pergunta o rapaz, enigmático.

Continuam caminhando em silêncio por um pouco mais. O passeio aproxima-se do fim, pois já se dirigem de volta para a escola e ambos vão caminhando cada vez mais devagar, como se estivessem tentando protelar o momento de voltar para a realidade. Finalmente chegam às portas da escola.

– Por que és tão tímido e quieto? – Pergunta a garota à queima roupa.

Desorientado, ele para e olha-a nos olhos, procurando uma resposta. Num ímpeto tipicamente feminino, esta atira-se aos seus lábios e dá-lhe um tremendo beijo, lânguido, cheio de ternura. O seu coração quase sai do peito de tão forte que bate e os braços tremem. Sente os lábios queimando onde os dela o tocam e a respiração fica totalmente ofegante. Depois, quase com a mesma velocidade com que o beijou, ela afasta-se, correndo. Desnorteado e consciente daquele contato tão íntimo e maravilhoso, decide caminhar mais um pouco. O cheiro dela está impregnado na sua mente e nunca esteve tão consciente da sua presença exceto quando criança.

– "Nem te lembras de mim!" – Pensa, fechando os olhos. Sua memória retorna oito anos, quando vivia em Hong-Kong.

Tratava-se de uma criança branca em um mundo que não gostava muito delas, mas este garoto era diferente. O Daniel era muitíssimo mais inteligente que a média, jamais se esquecia de alguma coisa e era muito bondoso. Sua maior qualidade, sempre foi a bondade. Ele tinha um professor chinês especialmente contratado para lhe ensinar coisas que não aprenderia na escola. Nessa idade, já era um perito em Kung-fu e exercitava Tai-chi com desenvoltura, além de Ioga e meditação. Tratava-se de uma criança alegre, apesar das perseguições na rua, que não eram tantas assim. Ele, porém, vivia como se aguardasse algo acontecer. Às vezes, na beira da praia, olhava para o horizonte com olhos sonhadores, como se em breve algo viesse de lá até ao seu encontro. Certo dia, o pai trouxe para casa um colega de profissão, anunciando que passar um mês na China, o doutor Nelson Chang, que veio acompanhado da esposa e da filha, Daniela. Eles vieram do Brasil e foram convidados a passar esse período na casa dele. O pobre garoto jamais se esqueceria daquele dia quando a coisa mais linda que ele havia visto, surgiu à sua frente. Foi amor à primeira vista, um amor de criança, mas tão puro e intenso que o marcou para sempre.

Ela também reagiu do mesmo jeito e foi um mês memorável que esse par viveu. Sempre juntos, de mãos dadas, ou abraçados, sempre brincando, nunca se desentendendo. Atônitos, os pais acompanhavam a paixão das duas crianças tão novas, mas aparentemente tão maduras.

O mais incompreensível era o silêncio que os rodeava. Falavam pouco, mas riam muito, como se conversassem por intermédio de algum código completamente desconhecido de todos, exceto para ambos. Os pais brincavam entre si dizendo que estavam prometidos.

Mas, infelizmente, um mês passa rápido, especialmente para uma criança que tivesse ganho um brinquedo novo.

Daniela era impetuosa e vivia intensamente as emoções, sentindo a separação iminente. Já Daniel, apesar de saber, era mais inocente e acreditava que isso ia "sobreviver às eras". Um dia antes dela se ir embora, as duas crianças caminhavam de mãos dadas pelas ruas de HK quando foram surpreendidos por cinco garotos chineses com idades entre dez e doze anos, que afrontaram Daniel.

Daí, branquinho – disse o líder do bando – roubando as nossas garotas?

Sabendo que de nada ia adiantar uma resposta, Daniel ficou quieto. Em português, a garota perguntou:

Não vais fazer nada?

Não vale a pena – respondeu este – eles só querem chamar a atenção. Deixa pra lá que não os quero machucar.

Ei, branquinho, passa a grana – ameaçou-o o líder. Virando-se para os amigos, disse, maldoso. – Esqueçam a garota que está contaminada.

O Daniel deu-lhe o dinheiro que tinha no bolso e eles foram-se embora, rindo.

Furiosa a Daniela olhou para o namoradinho e disse:

Como podes permitir isso? Que covardia! Eu não posso acreditar. Contaminada? Nunca mais quero olhar para a tua cara.

Saiu correndo para que ele não visse que estava chorando. Estoicamente, este aguentou quieto a agressão, mas ficou parado ali mesmo, louco para gritar, explodir tudo, cheio de dor no pequeno coração.

Depois desse dia nunca mais se viram. A família Chang foi-se embora sem que ela o procurasse para se despedir e ele ficou quieto, esperando. Tudo o que sobrou foi uma foto que tiraram deles, de mãos dadas em que ela escrevera no verso: "Para ti, Daniel, jamais te esqueceres de mim. Te amo para sempre". Escrito em letras infantis e em português.

No dia seguinte, muito triste, ele perambulava pelas ruas da cidade, quando deparou-se novamente com os garotos. Estes, ao verem-no, foram direto ao ataque.

Ei, branquinho. Manda mais grana. Cadê a garota? Te largou, frouxo?

Furioso, Daniel respondeu:

Queres o meu dinheiro, vagabundo? Vem pegar!

O chefe da turma, muito maior e mais pesado do que o garoto, avançou sobre este; mas, antes mesmo que pudesse esboçar um gesto que fosse, Daniel pegou-o no ar como se fosse um trapo e atirou-o violentamente sobre os amigos.

Voltando ao presente, o rapaz abre a carteira que tem no bolso e olha uma cópia miniatura da foto que guarda no quarto há oito anos.

– "Será que devo contar, minha Danizinha?" – Pergunta-se em pensamento. – "Como eu te amei. Era um amor de criança, eu sei, mas ficou para sempre. Se tu soubesses o choque que foi para mim ver-te na sala de aula quando entrei pela primeira vez aqui na escola!"

Ao retornar para a aula, ela já está sentada no seu lugar, bela e misteriosa, como se nada houvesse acontecido. Mas, no seu e-mail, Daniel encontra um recado em chinês. Lê a mensagem e seus olhos brilham intensamente.

– Cara, eu queria ser uma mosca para seguir vocês os dois, pois sinto cheiro de coisa no ar. – Diz Paulo, baixinho. – Que lance é esse que está escrito aí? – Pergunta, olhando o texto na tela do amigo.

– Sai dessa, meu. – Diz Daniel. – Paulo, somos amigos, por isso vou-te pedir uma coisa: não te metas que isto é muito antigo e pessoal. Eu prometo que te conto oportunamente, ok?

― ☼ ―

Minuano: Vento polar sul muito forte, que eventualmente assola o Rio Grande do Sul e arredores. A sua força é tão intensa que pode fazer alguns estragos. Por se tratar de um vento gelado, no inverno contribui para tornar a sensação térmica muito menor que a temperatura real, chegando mesmo a menos de dez abaixo de zero, embora seja incomum.

Lago Guaíba, que banha Porto Alegre. Embora no final do século passado tenha sido catalogado como lago, o autor discorda, considerando-o um gigantesco rio ou estuário, assim como muitos outros da região.

Boiola: Covarde, Afrescalhado, Gay...

Renguear Cusco: Termo regional do Rio Grande do Sul, Renguear = mancar; cusco = cão pequeno. Quando está muito frio, os cães, ao correrem pelos campos, começam a mancar por conta das baixas temperaturas afetarem as patas. Daí o termo.


Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top