Capítulo 10 - parte 4 ( não revisado)

– Doutor Chang – diz João – estou muito honrado em assisti-lo numa cirurgia tão importante.

– Aproveite para aprender, jovem. Em geral, um residente nem chega perto de um transplante de coração. Teremos de ter muito cuidado com este paciente.

– Por quê?

– Verá, meu jovem.

Entram na sala de cirurgia e João fica apavorado ao ver o estado do paciente.

– Santo Deus – exclama – este cara está todo rebentado. Até parece uma galinha desossada! Quem foi o monstro que fez isto?

– O único monstro responsável pelo seu estado é ele mesmo. Este rapaz é um criminoso terrível. Temos aqui uma menina de quinze ou dezesseis anos em coma que ele drogou, violentou e abandonou na Ponta Grossa. Tememos que seja irreversível.

– Meu Deus, mas quem fez isto só pode ser um grande mestre. Nenhum órgão vital foi atingido, exceto o coração, pelo que vejo.

– Nem o coração foi atingido. Foi uma overdose de drogas que o destruiu.

– Mas então, por que Daniel vai gastar tanto para salvar este traste. Eu tê-lo-ia morto.

– Ele sofreu o "Castigo Supremo."

– "Castigo Supremo!" O que é isso?

– Na China, há muitos séculos, quando os monges Shaolin criaram o Kung-Fu, alguns deles eram lutadores excepcionais.

– Sim, os Dragões; sou um Dragão Azul e conheço a história, mas não o "Castigo Supremo."

– Parabéns. São muito poucos os Dragões ocidentais. Bem, como os budistas não aceitam matar a não ser em casos muito especiais, para castigar os mestres que se tornassem criminosos, criaram o "Castigo Supremo" que, de acordo com alguns, é pior que a própria morte. Este, consiste na destruição completa da capacidade de lutar do criminoso. Para tal, ele deverá ter o seu corpo parcialmente mutilado, quebrando quase todos os ossos do mesmo. Além da recuperação ser muito lenta, o criminoso jamais conseguirá de volta as suas habilidades, pois, em geral, fica deformado. Daniel faz questão que este monstro não morra para poder enfrentar a justiça e pagar pelo que fez.

– Minha nossa, mas quem foi o mestre que fez tamanho estrago com tanta precisão. Nunca ouvi falar de outro Dragão aqui em Porto Alegre!

– Mas há mais Dragões em Porto Alegre. O mestre Lee, chefe da segurança daqui, é um Vermelho. Somente os Grandes Dragões sabem aplicar este castigo.

– Foi ele quem fez isto?

– Não, não foi.

– Mas então quem foi?

– Em tempo saberá.

A cirurgia dura pouco mais de três horas e é um sucesso. O doutor Chang já está habituado e o João sente-se radiante por ter tido uma oportunidade única. Mais ainda, por ter sido elogiado pelo orientador. Quando saem, a Suzana aguarda por eles.

– Doutor Chang. Daniel tomou a decisão de tornar público o transplante de coração biônico. Já convoquei a imprensa para amanhã e precisaremos do senhor. Depois, ele disse que vamos tirar uma semana de férias na casa dele na praia, todos nós, que é para o senhor contatar a sua esposa. Mandou dizer que não é negociável pois andamos trabalhando demais.

– Claro, minha querida – Chang dá um sorriso amável – será ótimo rever aquele pedaço de paraíso. O médico de plantão pode dar acompanhamento a este caso.

– Ótimo. Tenho de ir. – Diz ela despedindo-se e piscando para o João.

– Você faz-lhe bem, João. Ela está feliz.

– Como sabe sobre nós?

– Ora, sei muitas coisas. Tive uma filha adolescente. Acredite. Ela está feliz consigo. Não estrague a sua chance.

– Pode ter a certeza, senhor, ela é a melhor coisa que já me aconteceu.

― ☼ ―

– Mestre, chamei-o porque vou divulgar para o mundo o coração biônico. A fábrica já está trabalhando, devagar, mas indo. Em função da última reunião com o senhor Tanaka, acredito que nós podemos ter um impacto forte. Gostaria que o senhor avaliasse a situação e pudesse adotar as medidas preventivas. Afinal, o senhor é um grande general e seguidor assíduo de Sun Tsu.

– Como sabe? – O espanto do mestre é tão genuíno que Daniel cai na gargalhada.

– Mestre, perdoe-me. – Diz ele, ainda rindo muito. – Foi a segunda vez em toda a minha vida que o vi perder o rebolado. A primeira foi no cofre da minha casa. Eu sei porque, quando era criança e comecei a praticar a telepatia, não tinha a moral necessária para entender os limites do meu dom, até que o senhor, muito generosamente me ensinou.

– Eu devia ter imaginado. – Lee sorri para o pupilo.

– Mestre, vou levar para umas férias na praia algumas pessoas da nossa elite. Fique livre para tomar as decisões que achar necessárias. Com eles afastados, talvez a sua tarefa seja mais fácil.

– Sim, meu filho. Fique tranquilo.

– Ótimo, vou ver o doutor Isaac. Até amanhã, mestre Lee. – Daniel inclina-se para ele, que corresponde.

– "Vamos, amorzinho." – De mãos dadas o casal desce pelo elevador e Lee olha com aprovação. Está contente pelo seu aluno, pois temia que Daniel jamais se recuperasse da perda sofrida.

Chegando ao prédio da biotecnologia, Daniel localiza o doutor Isaac. Falando em inglês que é muito mais confortável para o sogro, põe-se a par do que está acontecendo. Aprova com satisfação todas as decisões tomadas. Através das universidades, conseguiu vários alunos da pós-graduação para trabalharem como assistentes.

– Doutor – diz Daniel – amanhã, o senhor está convocado para tirar uns dias de férias.

– De novo? Eu estou bem. Ainda mais agora que Natália está trabalhando aqui comigo. Não tinha ideia como ela é tão perfeita como assistente.

– Não se trata disso. Nós vamos todos para a minha casa na praia. Considere como uma comemoração pela nossa primeira vitória. Além do mais, eu quero conhecer melhor os pais da mulher que eu amo. Hoje, só nos conhecemos profissionalmente.

– Bem, Daniel, fico feliz com sua decisão. Realmente, acho que temos que nos conhecer melhor.

– Combinado. Tragam roupas de verão para dez dias. A minha casa fica no norte do país e lá a temperatura média é de trinta graus.

O resto do dia é tranquilo. Quando o casal vai embora, ainda cedo, encontram o Paulo e a namorada aguardando na casa dele, pois este ligara ao saber do ocorrido, já que, na escola, não se fala de outra coisa. Cláudia, ainda não acreditando no que se passou, abraça a amiga com força.

– Puxa vida, Jessy – diz ela – deve ter sido horrível.

– Claudinha, não imaginas como. A pobrezinha da Bianca foi me ajudar e quase é estuprada ali mesmo, na frente de um monte de gente. Ainda bem que saíste cedo, pois ele queria te pegar também. Eu estava apavorada. Rebentou com todo o mundo. Quando Daniel apareceu, eu já achava que nada ia nos salvar.

– Meu Deus!

– É, mas não sobrou muito do cara para contar história. Agora eu entendo quando o senhor Lee disse que ele só podia estar cansado da vida para querer bater no Daniel...

Elas continuam conversando, enquanto Paulo e o amigo também debatem.

– ... e como ela está agora, Dan?

– Não sei, meu velho. O trauma foi muito grande e espero que supere. De manhã estava melhor, mas ontem à noite foi feio, muitíssimo feio.

– Tu cumpriste a tua promessa, não é?

– Sim, Paulo. Nunca faltei com a minha palavra. Ele estava tão alucinado com drogas, que era mais forte que um Dragão Verde. Estava parelho com um Vermelho para mais. Nunca vi isso.

– Devias tê-lo morto.

– Não, cara, senão eu ia ser igual a ele. A minha vida e a delas não corria mais perigo. Se corresse, matava-o.

– Irmãozinho, essa história tá rolando direto na escola e todo mundo tá sabendo. O professor de atletismo está muito ferido, com traumatismo craniano. Só retorna depois das férias.

– Por falar em férias, amanhã vamos para a praia. Quero que vocês venham junto.

– Mas claro. Vamos falar com os velhos, vai ser ótimo.

– Combinado. Ao meio dia vocês almoçam e vão para a Cybercomp. Como vão várias pessoas, vamos de helicóptero para o aeroporto.

Conversam mais um pouco e vão-se embora. O dia acaba e o Daniel olha para Jéssica, cheio de desejo e paixão. Ela adivinha e dá uma risada. Pega no celular e liga para a mãe.

– Mãe, vou dormir com Daniel... Claro, depois da aula vou para a Cybercomp com ele e daí vamos para a praia. Deixa que eu passo em casa antes e pego as minhas roupas. Beijo, mãe. Te amo.

Vira-se para o Daniel com um ar manhoso e atira-se ao seu pescoço.

– "Sou toda tua, amor. Vamos?"

– "Vamos sim. Vais ver estrelas. Fazer amor com a mente sintonizada é uma delícia. Ainda mais nós dois que não nos cansamos fácil!"

Ela dá uma risada.

– "Vou te matar..."

– "A tua mãe ia ficar escandalizada com o que tu estás pensando."

– "Acho que não, mas isto é só nosso."

Depois de muito tempo, deitados lado a lado ele diz:

– Eu te amo, Jéssica Silverstone.

– Eu te amo, Daniel Moreira.

Adormecem juntos, muito abraçados. De manhã, chegam ligeiramente atrasados, de mãos dadas, caminhando pelo pátio. Quando os alunos da escola veem o casal, Daniel é aplaudido aos gritos. Toda a escola aguarda para os receber e o jovem está completamente sem jeito, pois a última coisa que ele quer é chamar a atenção. As aulas começam e o professor André dá a primeira aula. Mal esta inicia, o alto-falante interno chama o rapaz para ir à direção.

Este levanta-se e vai de encontro ao senhor José. Quando entra na sala, vê o pai da Bianca e sente que algo está errado.

– "Amor, vem para cá. Diz para o professor André que eu pedi."

– Daniel, Bianca está muito mal. – Principia o diretor. – O senhor Francisco quer tirar uns dias de folga e levá-la para o Uruguai. Ela não dorme e fica apavorada, gritando pelo seu nome. Diz que o monstro está chegando e só o senhor pode salvá-la.

– Senhor – diz Daniel, falando em espanhol para o pai da Bianca – se isso é verdade, acho que a levar para o Uruguai, só vai piorar as coisas.

– Mas então, o que podemos fazer? – Pergunta o pai, exasperado, esfregando as mãos uma na outra e cheio de olheiras por não ter dormido. – A minha esposa está com ela em casa, que não dormiu a noite toda aos gritos. Nem parece a minha filhinha.

– Senhor José – pede Daniel – eu posso ajudar a Bianca. Vou pedir licença para o senhor me dispensar das aulas a mim e à Jéssica.

– Claro, filho, esta menina não merece este sofrimento.

– Senhor Francisco, vamos resolver isso. O senhor consegue tirar umas pequenas férias?

– Já liguei para o meu jornal, no Uruguai. Eu só preciso fazer uma cobertura na Cybercomp e, depois, estou livre. Mas largo tudo agora, se for preciso. Afinal, é da minha filhinha que estamos falando.

Nesse momento, Jéssica entra na sala.

– Não será necessário abandonar nada. Vamos, senhor Francisco, vamos pegar Bianca e a sua esposa. Ligue para ela e peça para fazer uma mala de roupas para vocês que chegue para uma semana. Inclua roupas de praia. Nós amamos muito a Bianca e eu resolvo isto nem que seja a última coisa que faça. Ela é como uma irmã para nós.

Os três entram o carro e vão pegar a garota e a mãe. Antes, passam na casa da Jéssica para ela apanhar as suas roupas. A mãe, previdente, já tinha deixado a mochila da filha pronta. Quando o Daniel vê Bianca, fica assustado, pois ela está cheia de olheiras, abatida.

Ele nem pensa duas vezes. Pega-a no colo e abraça-a. Ela, tremendo muito, diz:

– Daniel. – Logo após, adormece instantaneamente.

– Vamos – diz o jovem – entrem no caro. Eu sei quem pode ajudá-la.

– Onde vamos? – Pergunta Francisco.

– Para a minha empresa. Eu tenho uma psiquiatra especializada em traumas. – Pega o telefone e faz uma ligação. – Suzi, meu anjo, liga para a doutora Ana e diz que tenho uma emergência. Bianca não está nada bem. Chego em uma hora, no máximo.

– Onde vamos? – Pergunta o pai da Bianca, desconfiado.

– Para a minha empresa, a Cybercomp.

– Ma... ma... mas não é possível.

– É sim. Sou o diretor presidente da Cybercomp, senhor Francisco, mas mantenha segredo absoluto disso. Eu ajudo a sua filha mediante esse preço, aceita?

– Meu rapaz, por ela, até com o Diabo eu faço um pacto.

– Então, está combinado. O senhor terá a sua entrevista e, além disso, estará nos bastidores. Dou-lhe uma exclusiva, mas não se esqueça: a prioridade é a Bianca. Nós a amamos muito e não podemos permitir que ela sofra.

Quando chegam à empresa, Daniel segue direto para o hospital. Pára o carro em frente e, gentilmente, acorda a amiga.

– Onde estamos?

– Na minha empresa, Bianca. Vem, vou levar-te para uma pessoa que te vai ajudar.

Dirige-se com ela para a ala psiquiátrica. Atrás, vêm os pais e a Jéssica. Ele para em uma sala onde se lê "Doutora Ana Cruz, Psiquiatria Traumática". Bate na porta e alguém manda entrar.

– Doutora, esta é a Bianca, que precisa muito de ajuda.

– Eu já estou a par e vi o vídeo. – Diz a doutora Ana levantando-se e caminhando para Bianca. – Vem querida, vamos sentar ali e conversar. Senhores, desculpem mas a conversa não inclui vocês.

– Ok doutora, estarei na minha sala.

– Mandarei chamar quando ela estiver pronta.

Ele sai acompanhado dos pais da Bianca e da namorada. O casal uruguaio não acredita no que vê. A Cybercomp é uma mega empresa e ainda por cima pertence a um adolescente. Eles descem até ao subsolo e veem uma rede de esteiras rolantes e corredores que vão em várias direções. O Daniel convida-os a subirem em um deles e seguem para o prédio da administração. Param no andar da Suzana e Daniel pergunta para a Patrícia se ela está lá. Após confirmar, entra, convidando os demais.

– Suzana, Este é o senhor Francisco e a esposa, pais da Bianca. Ela está com a doutora Ana e eles virão conosco para as nossas pequenas férias, pois Bianca está em um período complicado e precisa muito de ficar entre amigos. – Virando-se para os convidados, diz. – Esta é Suzana Silveiro, vice-presidente da empresa.

– Muito prazer. – Diz Francisco.

– O prazer é meu – Suzana levanta-se – mas já nos vimos no restaurante mexicano, no aniversário do Daniel.

– Suzana. – Daniel decide falar espanhol, facilitando para os uruguaios. – O senhor Francisco é correspondente estrangeiro de um jornal Uruguaio. Em vista das circunstâncias, prometi-lhe uma exclusiva. Podes providenciar um tour pelo lugar? Só informa o que pode e o que não deve ser publicado, ok?

– Claro, Daniel – responde Suzana, na mesma língua – será um prazer. Ainda falta bastante tempo para a coletiva. Queres vir Jessy?

– "Vai sim, meu amor." – Reforça Daniel. – "Assim temos como nos comunicarmos instantaneamente."

Preocupado, Daniel senta-se na sala dele, pois não esperava que a sua amiga fosse ficar daquele jeito. Sem aviso, a porta do elevador abre e Fonseca sai dele. Este é um dos poucos que tem essa liberdade, pois são muito amigos.

– Manoel! – Sorri para o amigo. – Saíste da caverna, sua ratazana?

– E daí, parceiro, tudo tri?

– Ótimo.

– Cara, deixaste-me chocado com aquele serviço.

– Amigão, era necessário e só confio em ti e na Suzana para uma coisa daquelas.

– Cara, mas ele levou a maior surra que já vi ser possível alguém receber. Meu Deus, tu és um demônio quando estás zangado.

– Fonseca, conheço-te muito bem para saber que estás rondando. O que te aflige?

– Cara, tô completamente apaixonado.

– Mas que porra tenho eu a ver com isso? – Alega Daniel, fingindo-se sério. Encolhe os ombros e continua. – Não sendo por mim... tudo bem!

– É sério, Daniel.

– Desculpa, estava brincando. Mas tu, o inveterado solteirão, caíste nas garras de uma garota! Quem será a felizarda?

– Aquela tua colega, Bianca. Desde que a vi, não me sai da cabeça. Estou perdidamente apaixonado por ela.

– Entendo – diz Daniel ficando muito sério – isso pode ser complicado, tchê. Já te ocorreu que podes ter ficado assim por instinto de proteção, pelo choque do que viste?

– Já pensei nisso, mas tenho a certeza de que não. Quando a vi pela primeira vez, fiquei abobado com ela e nada ainda tinha acontecido.

– Há quanto tempo não tiras férias? Acho que andas a trabalhar demais.

Porra, Dan, eu a falar sério e tu a tirares onda com a minha cara. Não tiro férias há uma porrada de tempo. E daí, não tô a fim de tirar!

– Que pena, cara, pois nós vamos tirar cerca de dez dias na minha casa da praia e Bianca vai junto.

– Mas que merda, será possível que tu... dez dias? Vou pegar umas roupas, vira-se e sai para o elevador.

– O helicóptero para o aeroporto sai às quinze horas, daqui de cima – grita para o amigo. – No rosto, tem um sorriso de orelha a orelha.

Uma hora depois, doutora Ana chama.

– Chefe. Venha para cá e traga os pais dela.

– Estou indo. – "Amor, vão para o hospital. A doutora Ana quer nos ver. Encontro vocês lá." – Suzi – usa o comunicador – vão para o hospital.

Ele desce para o subsolo vai para seu destino. No saguão, encontra todos à espera.

– Vamos lá? – Entram na sala e Bianca dorme em um sofá.

– Ela sofreu um choque. – Principia a explicação. – Não é grave mas, na sua mente Daniel é a única pessoa no mundo que a pode proteger. Associou o salvamento a algo maior, provavelmente uma pequena paixão. Quando dorme, tem pesadelos com o rapaz que a atacou. O mecanismo de defesa dela automaticamente clama pelo Daniel. Precisa de enfrentar o medo, o monstro que a assola. Mas antes de mais nada, precisa de muito cuidado. Tomem. – Estende um frasco para o pai. – Estes comprimidos podem ajudá-la no caso dos pesadelos, mas ela não pode tomar mais do que um por dia e jamais por mais de trinta dias, senão acabará dependente.

– Doutora, se ela visse o agressor reduzido à impotência, ajudaria?

– Talvez, se ela estiver consigo de modo a sentir-se protegida e conseguir convencer-se que está segura. Mas pode entrar em pânico e terror.

– O senhor entendeu senhor Francisco?

– Sim, mas como confrontá-la com o agressor?

– Ele está aqui neste hospital, no quinto andar em coma induzido. Está com quase todos os ossos do corpo quebrados, o coração dele rebentou com o esforço.

– Seria bom que esse monstro morresse.

– Não, não seria pois escaparia da justiça. Eu quero vê-lo na cadeia e por isso demos-lhe um coração biônico, só que um coração de criança. Ele não terá nunca mais a capacidade de fazer força ou correr, será como um homem de noventa anos.

– Ela vai dormir mais umas horas pois dei-lhe um sedativo leve. Avisarei quando acordar.

– Importa-se se ficar com ela? – Pergunta Jéssica. – Somos amigas e acho que vai sentir-se melhor se tiver alguém conhecido quando acordar.

– Com certeza, minha querida. Diga-me, você está bem?

– Felizmente sim, doutora, não precisa de se preocupar comigo, mas foi por pouco.

– Almoça alguma coisa antes, meu anjo. Eu vou levar os pais da Bianca para almoçarem no restaurante, embora ainda seja meio cedo.

– Certo, amor, vou comer na lanchonete daqui mesmo e depois fico aqui. Chamo quando ela acordar.

Daniel leva os pais da Bianca para almoçar e, após, para a coletiva. Eles não se cansam de agradecer.

– Não precisam de agradecer. Eu tenho muito carinho pela vossa filha. Hoje à tarde, nós vamos para a minha casa na praia e vêm conosco. É uma mansão, então tem espaço para todos e será bom para ela, pois vai estar longe do lugar onde aconteceu o ataque e entre amigos. Considerem um retiro de tratamento. Depois da coletiva, forneço a vocês um computador e o vídeo gravado da Suzana. Só peço que não divulguem nada que não seja o que ela falar. As nossas outras descobertas serão apresentadas mais tarde. Temos que fazer uma coisa de cada vez.

– A doutora disse que viu um vídeo. Que vídeo é esse?

– Nós pegamos as imagens da câmera de segurança de tudo o que aconteceu. Se ele não for a julgamento, vamos tornar público e assim obrigar o governo a processá-lo. Suzana forneceu o vídeo para a doutora de modo a não perdermos tempo com explicações.

– Eu quero ver.

– Senhor, o vídeo é muito chocante. Se levarmos em conta que ele não conseguiu ir até ao fim, acho melhor não o ver.

– Eu quero ver. Pelo menos saberei o que ela passou e entenderei melhor a minha filha.

– Se pensam assim, venham comigo.

Leva-os para a sala dele e manda o computador exibir o arquivo secreto. Quando termina, a mãe levanta-se com lágrimas nos olhos e abraça Daniel.

– Obrigada, jamais esqueceremos o que fez pela nossa filha.

– Só tenho pena de não ter chegado cinco minutos mais cedo.

– Mas, pelo menos, não chegou cinco minutos mais tarde. A essa altura ele já teria violentado a nossa menina.

Descem para a coletiva que já tinha começado. Após a mesma, Daniel dá uma entrevista exclusiva que eles enviam para o jornal. Em todo o planeta é o único jornal que publica uma entrevista com o presidente. Os demais tiveram que se contentar com a vice-presidente.

– "Amor, ela acordou. Está bem, agora."

– "Estamos indo" – Venham comigo. A Jéssica diz que a Bianca acordou e está-se sentindo bem.

Ainda muito preocupados, não notam que o chamado é telepático. A filha abraça os pais e sorri timidamente para todos.

– Bianca. – Diz Daniel após uma troca de olhares com o pai dela. – Quero que tu vejas uma coisa, vem comigo.

Sobem até ao quinto andar e Daniel leva-a a uma sala com dois policiais de guarda. Quando ela vê o seu pesadelo, dá um grito desesperado e tenta sair correndo, mas Daniel abraça-a.

– Calma, Bianca – diz, mantendo-a perto – calma. Ele não pode fazer mal a ninguém, nunca mais. Jamais terá força para repetir o que fez. Até uma mulher poderá bater nele. Tem todos os ossos quebrados, pois cumpri a minha promessa que, se tocasse em vocês, ia transformá-lo em um inválido. Jamais voltará a fazer mal e daqui vai para a prisão. Sabes o que fazem com estupradores na prisão? Violentam-nos. Vai receber o que tentou fazer-te, mas não haverá ninguém para os impedir de chegar até ao fim e serão muitos. Ele não será capaz de se defender. Está acabado.

A respiração dela acalma-se aos poucos. Enquanto Daniel fala, ela arrisca um olhar. Geovâni está deformado. Para respirar tem tubos que entram pela garganta. Como que por encanto, o terror dela desaparece.

– Vamos – diz, decidida – esse cara me dá nojo.

Daniel olha o relógio e vê que está quase na hora de irem para o heliporto. Saem da UTI e vão para a administração. Lá, os demais passageiros aguardam na sala da Suzana. Paulo e Cláudia abraçam Bianca.

– Prontos para as nossas férias?

– Eu mandei vir dois helicópteros de passageiros, pois um, ia ficar apertado – diz Suzana, alegre. – Daniel, vais tu, a Jessy, a Bianca, os pais delas, no primeiro e eu no segundo com o resto.

– Cadê o Fonseca? Ele vinha junto!

– Presente – diz este, entrando jovial e bem humorado – tinha esquecido meu violão. Olá a todos, para quem não me conhece, eu sou Manoel Fonseca, humilde escravo deste safado do meu patrão, Daniel, mas do qual não me separo.

A jovialidade dele acaba contagiando a todos.

– Vamos? – Suzana chama o elevador. A primeira metade entra, e sobe para o heliporto. Embarcam no aparelho que, uma vez cheio, decola e ruma para o aeroporto. O segundo helicóptero pousa e os demais entram.

As aeronaves descem junto ao hangar da empresa e Daniel conduz a turma toda para o avião que já está fora aguardando para o voo.

– Gente, vão-se sentando que tenho de apresentar o plano de voo e a lista de passageiros. – Dizendo isto, sai para o interior do aeroporto, carregando um computador de mão. O avião do Daniel é muito confortável e mais parece uma sala do que uma aeronave. Quando este retorna, todos estão bem acomodados e descontraídos com a presença sempre agradável do Fonseca que, sem cerimônia alguma, senta-se ao lado da Bianca e diverte-se, tentando aprender espanhol.

– Prontos? – Pergunta. – Apertem os cintos e virem as poltronas para a frente. Vamos acelerar forte para chegarmos cedo. O tempo de voo será cerca de trinta e cinco minutos.

Fecha a porta do aparelho e dirige-se para a cabine do piloto.

– Ele vai pilotar? – pergunta Isaac, meio preocupado.

– Não se preocupe, doutor – diz Suzana em inglês – Daniel é um piloto experiente e muito bom. Sempre que pode, pilota o avião dele pois é uma das suas paixões.

Os passageiros começam a ouvir o barulho das turbinas de hidrogênio sendo acionadas, enquanto Daniel faz o check list, desnecessário naquele aparelho cheio de equipamentos de diagnóstico, mas um hábito útil.

A aeronave começa a rodar em direção à pista. A Jéssica está sintonizada no Daniel, que lhe diz:

– "Vem para cá, amor." – Ela levanta-se e vai para o cockpit. Senta-se ao seu lado e põe o cinto, auxiliada por ele. O belo avião de cores azul e branca e com asas em delta capazes de se retraírem para atingir velocidades supersônicas, desloca-se majestoso na pista em direção à cabeceira. Ao receber a liberação da torre, Daniel empurra lentamente o manete dos motores, de modo a não forçar uma aceleração demasiado forte para os passageiros, já que a pista é longa. O rugido das turbinas, abafado pelo isolamento acústico, faz-se ouvir dentro do aparelho e os passageiros sentem-se pressionados contra a poltrona. Corre pela pista, cada vez mais veloz, até que a roda da frente não mais toca o chão, seguido das rodas de trás, três segundos depois. O pássaro de metal azul e branco dispara para o céu, acelerando loucamente até atingir uma velocidade estonteante. Quando o aparelho nivela, Daniel aciona o piloto automático e levanta-se.

– Vamos, amor, vamos ver como está a turma.

Os passageiros estão tranquilos e descontraídos, com as poltronas destravadas e Suzana servindo bebidas e sanduíches. Ao ver o Daniel e Jéssica tranquilos e junto com eles, João pergunta, meio assustado.

– Daniel, se tu estás aqui, quem diabos pilota o avião?

– Simples – responde Daniel, debochado e apontando para o Fonseca – ele.

– Ah tá... O QUÊ? Mas ele está aqui conosco, tocando violão!

– Apresento-te o Fonseca – diz Daniel com uma risada – o homem que projetou o sistema de piloto automático mais avançado do planeta. Ele é o diretor do Complexo III, que cuida de toda a tecnologia da informação da Cybercomp. Este avião poderia sair de Porto Alegre e pousar na minha casa da praia com uma simples ordem vocal. Eu só não uso, porque adoro pilotar. Saúdem o grão mestre dos computadores.

– O escravo de sempre ao seu dispor – afirma Fonseca, falando sério e com uma reverência profunda, para gargalhada geral – explorado até ao último neurônio.

– Eu adoro informática – diz Bianca – vou fazer ciências da computação e gostaria de conhecer o Complexo III.

– Minha adorável dama, o teu desejo é uma ordem. Faço qualquer coisa pela mais formosa moça aqui presente, mas o Complexo III é um dos maiores segredos da Cybercomp. Terás de pedir ao mestre esclavagista ali.

– Ora, Fonseca. Daqui a pouco vão pensar que eu sou um monstro – diz Daniel, rindo um pouco. – Claro que podes conhecer tudo, Bianca, desde que não se divulgue nada. – Finaliza o diálogo, olhando para o pai dela que concorda com um aceno discreto.

– Isso merece uma música especial – diz Manoel, que é um excelente músico e grande amante da bossa nova – para ti, formosa moça.

Começa a tocar uma canção criada há mais de cento e trinta anos, mas que ainda é apreciada por todos: "Garota de Ipanema."

– Piloto automático chamando piloto. A sua presença é requerida com urgência. – Diz o computador de bordo.

– Com licença. – Daniel sai rapidamente.

– Haverá algum problema? – Pergunta João, apreensivo.

– Quando o piloto automático pede a intervenção humana, certamente que há. – Diz Fonseca, parando de tocar e fazendo-se de sério. Olha para Bianca e, piscando o olho, continua. – Mas eu morrerei feliz por ter-te conhecido.

– Meu Deus, será que vamos cair?

– Calma, amor – diz Suzi – ele está brincando.

Sentando-se no assento, Daniel ouve um chamado no rádio.

– ... aeronave desconhecida, identifique-se. Aqui é a Força Aérea Brasileira. Se não responder seremos obrigados a abatê-lo.

– Aqui aeronave civil, particular, desarmada, PAACB001. Saindo de Porto Alegre rumo ao Pará.

– Acione o seu vídeo. – Diz o piloto da FAB.

– Oficial – Daniel, irritado, aciona o vídeo – este aparelho está devidamente registrado e em voo regular com o transponder ligado. Transmitindo informações para o seu computador.

– Recebidos os dados, perdoe-me. Estamos procurando um avião de traficantes.

– Tenho as minhas dúvidas que um avião de traficantes possa voar a esta altitude e velocidade.

– Concordo, senhor, mas ordens são ordens. Mais uma vez perdão e boa viagem.

– Boa sorte, oficial.

– Obrigado. Câmbio e desligo.

Daniel volta para os amigos.

– Era uma equipe da FAB procurando um avião de traficantes que invadiu o nosso espaço aéreo. Preparem-se para o pouso que chegaremos em três minutos. – Dizendo isto, volta para a cabine com a Jéssica.

– "Amor, o teu amigo está perdidamente apaixonado pela Bianca. E ela está gostando disso."

– "Eu sei, lindinha. Por isso ele está aqui. Espero que dê certo."

– "Vai dar, ela balançou e ele é cativante. Até os pais dela gostaram dele."

– "Não devias olhar a mente deles."

– "Eu não costumo olhar, mas queria ter a certeza que é genuíno. Afinal, ela já sofreu o bastante."

Pousam suavemente. O avião rola na pista até parar junto a um hangar. Quando saem do mesmo, encontram dois carros de passageiros que os levam para casa.

– Nossa, Daniel – diz Natália – este lugar é um paraíso. E como é belo!

– É sim e o nascer do sol é um dos espetáculos mais fascinantes que há nesta casa. Vale a pena acordar às cinco horas só para o presenciar. O mar fica tingido de vermelho. É muito lindo.

– Como descobriste isto? – Pergunta Jéssica.

– Meu bisavô comprou este lugar. Ele disse que ia se aposentar aqui. Esta era uma área improdutiva e estava na mira do governo. Tem três mil hectares, mas como só interessava este canto, a floresta e a pista de pouso, alugava o resto para pequenos agricultores a preço simbólico. Assim, a terra ficou produtiva, o bosque preservado e este cantinho de paraíso é a nossa casa de praia. Quando quero fazer um retiro, venho para cá.

– É um sonho e a mansão é imponente.

– A vista dos quartos é ótima e vão adorar. Agora está ficando escuro, mas amanhã verão.

Entraram em casa onde três funcionários esperam para os receber e cada um arranja o seu quarto. Às oito horas descem para jantar em uma sala grande o suficiente para acomodar mais do que o dobro das pessoas que ali estão. Esperto e atento como sempre, Fonseca dá um jeito de ficar ao lado da Bianca e Daniel diverte-se a observá-los. Eles apreciaram um jantar maravilhoso, feito de frutos do mar. A um sinal do Daniel, o garçom traz uma mesinha móvel com champanhe e taças. Quando estão servidos, levanta-se.

– Senhores. Estamos aqui para passar umas pequenas férias, mas também estamos comemorando uma grande etapa na nossa empresa. Em breve, não existirão no mundo filas de transplante de coração. Ainda somos pequenos e temos uma produção reduzida, mas esta irá crescer mais a cada dia que passa. Um brinde à Cybercomp, especialmente à nossa querida Suzana que soube administrar tão bem a criação da nova fábrica.

– Um brinde. – Dizem em uníssono. Suzana fica bastante corada, mas contente por ter o seu esforço sempre reconhecido.

Após jantar, cada um faz o que deseja. Alguns vão ver a novela, mas os mais jovens sentam-se no jardim, junto à piscina, e ficam muito animados com uma roda de violão. Bianca não tira os olhos do Fonseca.

– "Isso promete." – Pensa Daniel.

– "O que promete, meu amor?" – Pergunta a namorada. – "Ah sim, Olha como ela está encantada. Ainda não é amor, mas é meio caminho andado. O tonto do teu amigo não notou, pois está demasiado ocupado em agradá-la." – Os dois dão uma risadinha e beijam-se. Suzana olha para eles e adivinha no ato que têm o mesmo dom da comunicação mental que ele tinha com Daniela.

– Alguém aí anima-se a tocar? – Pergunta Fonseca – senão eu começo a cobrar couvert artístico. Afinal, um músico tem que sobreviver, pô!

– Eu sou canhoto - diz Daniel, rindo – e péssimo. Logo, estou fora, senão vocês vão sair correndo. Segundo Paulinho, só há uma coisa que faço pior que tocar violão: é o churrasco. – Eles riem.

– Eu toco um pouco – afirma Bianca, tímida – mas só sei cantar em castelhano.

Imediatamente, Manuel entrega-lhe o violão.

– Vamos ouvir esta voz de anjo cantar – diz, afoito. Fazendo-se de sério, avisa – quem não concordar comigo leva porrada.

Bianca começa a tocar uma música com uma melodia linda. Quando canta, Fonseca até derrete, pois ela tem uma voz muito agradável.

Da sala, o pai dela observa todos.

– Madalena – diz para a esposa – foi bom termos confiado neste rapaz; Olha Bianca, está sorrindo de novo. Acho que se tivéssemos voltado para o Uruguai teríamos cometido um grande erro. Parece-me que ela está gostando do rapaz.

– É sim. Seria bom mesmo, pois ficar presa a um amor platônico com Daniel, seria um desperdício para a nossa criança. O rapaz é muito agradável e deve ser muito inteligente para ser diretor de um dos principais departamentos da empresa, ainda mais tão jovem.

Os doutores Chang e Isaac conversam animadamente sobre medicina e genética, como não pode deixar de ser, enquanto as esposas ainda vão se conhecendo. Elas veem a novela, assim como o Francisco que aproveita para melhorar o seu português e considera a televisão um excelente instrumento de ensino para isso. Aos poucos, os convidados vão para os seus quartos dormir. Os mais novos ainda ficam no jardim mais uma hora, tocando violão e curtindo a noite muito agradável, já que a temperatura é de vinte e quatro graus e o céu estrelado está límpido. Ali, longe das cidades, vê-se milhares de estrelas no firmamento. É uma daquelas noites tão adoráveis, que acabam sendo guardadas nas nossas memórias como algo de muito especial que aconteceu nas nossas vidas. A primeira a bocejar é Bianca, que não dormiu muito devido aos pesadelos. Sentado ao seu lado, está Fonseca que, apesar de cansado, não tem muito sono pois sua cabeça está num turbilhão e ele nunca sentiu algo assim. Cada átomo seu está consciente da presença da bela uruguaia. Ele vê que a garota está meio cambaleante e passa gentilmente o braço em volta dos ombros dela, para que se encoste a si e descanse. Ela, que está gostando muito dessa atenção, deixa-se embalar e acaba encostando a cabeça, adormecendo de leve.

– Acho melhor levar Bianca para o quarto dela – diz ele, ao fim de mais algum tempo conversando – vou aproveitar para me retirar também. Estou cansado. Boa noite para vocês.

Sacode ligeiramente a Bianca.

– Vem, eu te acompanho ao teu quarto. – Levantam-se e com o braço em volta do ombro dela, acompanha-a. Na porta, dá-lhe boa noite. Não resistindo a um impulso, beija-a nos lábios. Ela não foge ao beijo, mas o sono é tanto que não vai mais além. Entra e ele vai para o seu quarto, nas nuvens. O contato leve com os lábios dela, quase um roçar apenas, é como um choque elétrico. Ele, o grande conquistador, solteiro declarado, está completamente fisgado pela garota e adora a ideia.

Pouco tempo depois, João e Suzana vão para o quarto deles. No pátio, sentados no gramado, estão apenas os quatro amigos mais íntimos. Conversam baixinho, para não acordarem ninguém. Às vezes, nem isso fazem e ficam apenas ouvindo o rebentar das ondas a bater nas rochas, na base do penhasco. A lua nasce muito tarde e está no horizonte, uma bola amarelada enorme, quase três vezes maior que o normal.

– Por que a lua, quando está no horizonte, é tão grande? – Pergunta Cláudia, observando-a – nunca entendi isso!

– Simples – diz Jéssica – refração da luz na atmosfera. Na verdade, a lua ainda está abaixo do horizonte, mas a luz dela ao entrar na atmosfera é desviada e sofre uma ampliação. É como um copo de água em que se põe uma colher dentro. Não parece que a parte imersa é torta e maior? O mesmo ocorre com o pôr do Sol, aliás, a única hora em que se pode olhar para ele sem riscos para a vista.

– Mas bah – diz Paulo – nunca tinha imaginado isso. Bem, amor vamos dormir? Eu tô com sono.

– Vamos. Boa noite, gente.

– Boa noite – diz Daniel. Abraça Jéssica e pergunta-lhe. – Tens sono?

– Não. Isto aqui é um paraíso. Bem que a minha mãe disse que o Brasil é um dos países mais belos do mundo. – Ela está tão distraída que fala em inglês. Ele, que nem dá pela troca, continua no idioma dela.

– Todos os países têm as suas belezas. O Brasil tem uma quantidade enorme, mas não podemos esquecer outros lugares. A China, por exemplo, é lindíssima.

– Gostavas de viver lá?

– Eu gostava sim. Tinha alguns problemas de perseguição com garotos; mas, em geral, eram pessoas agradáveis e bondosas. A filosofia deles é muito diferente e é preciso entendê-los. Entretanto, são simples, gentis e educados.

Ficam juntos por horas, conversando e curtindo a noite, quando o ouvido apurado do Daniel capta gemidos e choro, além de alguém chamando o nome dele.

– Bianca está com um pesadelo.

Levanta-se e corre para o quarto dela bem a tempo de ver o pai entrando. Ela está deitada, toda encolhida, tremendo e dizendo:

– Socorro Daniel, salva-me. – O jovem entra e abraça-a.

– Calma, pequena. É só um pesadelo. – O pai estende um comprimido que a médica receitou, mas Daniel faz um sinal negativo e continua. – Olha para ele. Encara-o. Vês? Ele não pode mais fazer mal a ninguém. Nem mesmo pode alimentar-se sozinho! Calma, relaxa, isso, isso. Estamos muito longe dele, que nem pode andar.

Ela volta a respirar normalmente e Daniel finaliza:

– Pronto, meu anjo. Dorme. Ele jamais voltará a fazer mal, eu prometo. Juro para ti.

Embalada pela voz monótona que ele imprime, volta a adormecer. Ele dá-lhe um beijo na testa e deita-a. Ao lado do pai, estão o Fonseca e Jéssica. Daniel sai do quarto e leva os três para fora.

– Senhor Francisco. Eu não quis dar o comprimido agora porque a doutora disse que são muito fortes. Se ela voltar a passar mal, daremos, mas acho que isto que fiz é o suficiente.

– Obrigado, Daniel, muito obrigado.

– Não se preocupe que ela ficará bem. Vá descansar. Se passar mal, eu escutarei. Vou ficar cuidando dela pois não preciso de dormir muito.

– Foi uma barra grande, não é, tchê? – Pergunta Fonseca.

– Sim, ela está bastante traumatizada. Esta tarde, levei-a para ver a doutora Ana. Ela acha que isto é passageiro, mas o que Bianca precisa agora é de muito amor e amigos. Vai descansar, cara. Amanhã é outro dia.

– Boa noite, Dan. Boa noite, Jéssica.

– Boa noite.

Daniel volta para o pátio com a Jéssica, que diz:

– "Sabes amor, eu tenho uma dívida grande com a Bianca. Ela podia ter fugido quando ele me agarrou. Mas não, atirou-se a ele com as garras de fora, como um tigre enfurecido, mandando-o me largar. Jamais me esquecerei do que ela fez."

– "Nem eu, minha princesa, nem eu. Só de lembrar o que eu vi naquela noite, fico arrepiado. É difícil imaginar tanta crueldade em uma pessoa." – Vira-se para ela e beija-a. – "Temos de ficar atentos à Bianca. Como tu bem disseste, devemos isso a ela."

– "Tudo bem, mas o que faremos para passar o tempo?"

– "Vou ensinar-te meditação que é bom para nós que não dormimos muito. Senta-te como eu e acompanha meus pensamentos..."

― ☼ ―

Ficção.

Cockpit: cabine de pilotagem.

Transponder: Equipamento dos aviões que transmite por inpulsos de rádio identificação do mesmo.

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