Capítulo VIII: Igreja de todas as almas
Capítulo VIII
"Igreja de todas as almas"
Quando Adams deu por si, deslizava de costas sobre o piso do corredor central da igreja. A força do ataque de Baltazar realmente conseguiu arremessá-lo a uma considerável distância. Seus olhos de meio-vampiro viram o teto decorado se deslocando e as fileiras de cadeiras, de ambos os lados da passagem, ficando para trás. Freou pouco antes do altar, conseguindo colocar-se novamente de pé num jogo de pernas para cima. Espada em mãos, voltou-se de imediato para a entrada arrombada. O inimigo estava vindo.
Para surpresa, e preocupação, do agente do FBI, Baltazar adentrou correndo o santuário. Não diminuiu sua velocidade ou ímpeto nem mesmo um pouco quando seus pés pisaram o solo sagrado, demonstrando claramente não ser afetado pelo ambiente do templo. Ou ele fingia muito bem, conseguindo suportar as consideráveis dor e fraqueza que uma igreja e seus símbolos poderiam causar em vampiros, ou algo ali se encontrava terrivelmente errado...
Ao término de seu impulso na direção do oponente, Baltazar brandiu mais uma vez a adaga. Tentou rasgar o peito e em seguida o abdômen de Ernest num ataque duplo, sem sucesso. Este reagiu com um golpe da Katana que poderia ter decapitado novamente o amaldiçoado... se ele não houvesse se esquivado com velocidade fora do comum. Ao que aparentava, estava ainda mais ágil e forte que do lado de fora. O efeito do lugar no desgraçado parecia estar sendo o contrário.
Adams tentou cortá-lo novamente, cerrando os dentes numa demonstração de impaciência e raiva. Logo algum curioso acabaria adentrando também o templo, piorando a situação. Quanto antes partisse o adversário ao meio, melhor. Poderia conseguir interrogar algum outro vampiro depois: não havia tempo!
Mas o careca desviou mais uma vez, rindo. Seu revide foi apanhar uma das cadeiras ao longo do corredor e quebrá-la nas costas de Adams. Este não sentiu tanta dor por conta do impacto, mas foi o bastante para confundi-lo. Baltazar aproveitou-se do momento para agarrá-lo num laço com um dos braços e, usando o outro, enterrou seu punhal no peito do inimigo... errando o coração por míseros centímetros.
– Ahhhhh! – Ernest berrou, sentindo a lâmina fria perfurar sua carne e destruir suas artérias.
Continuando a rir, o vampiro cravou ainda mais a arma no corpo do antigo rival, torcendo-a. Adams estremeceu, sangue se esvaindo pelo ferimento em profusão e tingindo o piso do lugar santo. Suas mãos fraquejaram... e os dedos soltaram o cabo da espada, que caiu sonoramente no chão. Lutando para se manter de pé e assim reagir, o federal norte-americano notou sua vista começar a embaralhar por trás dos óculos escuros, tomada por uma névoa que quase inutilizou seus sentidos aguçados de meio-vampiro. Baltazar não o soltou, continuando a abraçá-lo como se desejasse sentir de perto seu suplício. Ernest ergueu a cabeça. Tinha de haver algo ali que pudesse usar para ao menos escapar vivo.
Só então notou que o interior do santuário se encontrava parcialmente iluminado. Devido a conseguir se orientar no escuro com facilidade, às vezes levava algum tempo para perceber se um local possuía ou não fontes de claridade. Naquele caso, elas constituíam as lâmpadas nos lustres pelo teto, emitindo uma luminosidade fraca e esparsa, como se houvesse problemas no fornecimento de eletricidade e não conseguissem produzir nada além de uma lôbrega irradiação avermelhada – remetendo ao sangue que Adams derramava e que estava em vias de derramar ainda mais. Aguardando as próximas punhaladas de Baltazar, o agente do FBI, ainda que com a visão embaçada, passou a perder-se nos detalhes da igreja. Ao menos assim se distrairia com algo, minimizando um pouco a dor – e procuraria um meio de fuga.
O corredor central, delimitado por dois grandes conjuntos de cadeiras enfileiradas, terminava no altar atrás de si, mais elevado um ou dois degraus que o resto do ambiente. Este era cercado por parapeitos de aproximadamente três metros de altura, ladeados por imponentes colunas douradas. O aspecto todo era um encontro do clássico com o moderno, o primeiro representado pela arquitetura antiga manifestada em tons de branco e ouro, e o segundo por aspectos como os assentos individuais substituindo os antigos longos bancos de madeira frequentes em igrejas como aquela, além do piano e o arrojado púlpito junto ao altar.
Um belo local para sua morte, ao menos.
– Você deve estar cheio de dúvidas, não é mesmo? – Baltazar sussurrou petulante junto a um dos ouvidos do meio-vampiro, tirando-o de sua contemplação.
Ainda sem soltar o inimigo, o sanguessuga aproveitou sua incapacitação para girar-lhe o corpo, voltando-o na direção do altar. O ferimento da adaga latejou, Adams gemendo e cuspindo sangue. Pôde, no entanto, manter-se equilibrado sobre as pernas. E, fitando o término do corredor, finalmente compreendeu.
O altar era dominado, atrás de uma pequena estrutura de madeira para pregação dos sacerdotes, por um nicho em arco contendo um grande quadro de Cristo sendo apresentado aos judeus após ser açoitado por Pilatos. Aos pés da pintura havia uma pequena mesa de pedra – o altar em si – contendo uma cruz. Bem, essa seria a descrição do lugar em seu estado normal. Não naquele caso...
Apesar de o autor do quadro ter originalmente representado um Cristo limpo, sem as marcas das chicotadas, a figura do Filho de Deus estava agora toda salpicada de vermelho. Isso se dava por conta do cadáver que, pendurado ao teto por uma corrente de ferro, balançava para lá e para cá de ponta-cabeça suspenso a alguma altura do chão. A batina ensanguentada revelava se tratar do reverendo responsável pela igreja, as lacerações pelo corpo inteiro e principalmente na cabeça levando a crer ter sido espancado até a morte. Líquido rubro ainda pingava de seus ferimentos, criando uma poça sobre o solo bem diante da mesa de pedra... ostentando agora, em seu topo, uma cruz invertida.
Aquela igreja não constituía mais uma área sagrada. Fora profanada até suas raízes. Baltazar planejara tudo com antecedência. O terreno favorecia a si, não a Adams.
Como se houvesse cronometrado o tempo que Ernest levaria para assimilar a verdade, o vampiro chutou-o pelas costas logo que ele concluiu seus pensamentos, fazendo-o cair de peito sobre os degraus do altar. A ferida causada pelo punhal, que por algum motivo obscuro continuava aberta e sangrando, ardeu como brasa, mas mesmo assim o caçador tentou se reerguer, apoiando as mãos com dificuldade... e recebendo logo em seguida mais um golpe, agora na cabeça. Seus óculos escuros se partiram em dois, os olhos brancos leitosos agora à mostra. Sua real forma – humilhada e moribunda.
– Pater noster, Qui es in caelis, sanctificetur nomem tuum...
– Rezando, homenzinho? – debochou Baltazar. – Reze mesmo! Os mortais que você tanto defende precisarão de ajuda quando o Mestre chegar!
– Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra...
– Quer falar em outras línguas, é? Também quero brincar disso!
Em seguida o vampiro se afastou de sua vítima, abrindo os braços... e, como um pregador louco, começou a bradar voltado para as cadeiras vazias, tal qual falasse a uma plateia invisível de fiéis:
– Allahu Akbar!
Estava usando árabe de novo. Qual o sentido, afinal de contas? O imbecil teria confundido o nobre Alá – apenas um nome diferente para o supremo Jeová, como Adams bem sabia – com Satã, e agora utilizava a língua predominante entre os muçulmanos para exaltar o anjo caído? Aquilo tinha de ter alguma lógica. O meio-vampiro, em trapos e sangue, já subestimara Baltazar demais aquela noite para duvidar que cada um de seus passos fora minuciosamente programado.
E ele seguiu gritando a plenos pulmões pelo templo, como se fizesse questão que alguém não podendo ser enxergado o ouvisse e entendesse:
– La ilaha illa Allah! Allahu Akbar!
Riu, girando sobre as próprias pernas com a cabeça voltada para o teto do templo num incompreensível êxtase. Diante dos olhos oscilantes de Adams, o corpo de Baltazar, ainda gargalhando, passou a se desfazer gradativamente na forma de uma nuvem negra, conforme rodava... até se converter em névoa escura composta por centenas de morcegos. A mesma, criando altura, seguiu rodopiando em torno de si mesma como um pequeno ciclone, até finalmente se direcionar com todo ímpeto contra um dos vitrais da igreja, rompendo-o numa tempestade de vidro e por fim desaparecendo na noite.
Agora sozinho, Ernest, procurando mais uma vez se levantar, questionou-se a respeito da razão do inimigo tê-lo deixado ali. Devia haver um motivo que o meio-vampiro não estava conseguindo decifrar. Aliás, estava louco para saber o porquê de o ferimento causado por Baltazar não ter regenerado. A dor não o fizera pensar até então com clareza, mas o rasgo causado pela adaga, ainda que quase houvesse lhe perfurado o coração, deveria ter se fechado logo após aberto. Era uma de suas habilidades, e Adams há anos sabia disso... Teria algo a ver com a arma do vampiro? O ambiente profanado? Alguma outra explicação?
A dor de um ferimento mortal. Há muito tempo ele não sabia o que era aquilo.
Não conseguiu se levantar. As pernas, afetadas pela lancinante dor no tórax, não o obedeciam. Se elas mesmas não conseguiam obter firmeza, erguer o tronco seria então incomparável suplício. Suspirou, tossindo sangue. Tinha de encontrar uma maneira de sumir, antes que a polícia invadisse o local. Não podia, infelizmente, converter-se num monte de morcegos como seu inimigo. Seu limitado campo de visão não mostrava nada que pudesse auxiliá-lo. Fechou então os olhos, colocando sua audição sobre-humana para funcionar. O que os olhos não viam, seus outros sentidos poderiam encontrar...
Focou-se como podia. Além das sirenes, o clamor dos curiosos do lado de fora e o balançar metálico da corrente com o reverendo morto do lado de dentro, Adams pôde captar algo mais... Uma espécie de ruído repetitivo, eletrônico. Forçou-se a discerni-lo. Uma série de bipes. E vinham, aparentemente, de trás do quadro no altar...
– Merda...
Deduziu tudo. Agitado, fez um último esforço para se levantar, mas o tórax ardeu e o fez deitar de novo sobre a escada...
Simultaneamente, a explosão veio.
O clarão flamejante partiu justamente de trás da pintura às costas de Ernest, onde havia sido instalada considerável quantidade de explosivos plásticos C-4, com detonador cronometrado. A própria moldura do quadro no nicho parecia ter sido besuntada com a massa das bombas, revelando o trabalho de alguém que sabia manusear bem tais materiais. Baltazar andara fazendo um curso ou dois a respeito, pelo visto...
A baforada de fogo tomou toda a igreja, incendiando-a em poucos segundos. As cortinas dispostas sob os parapeitos de cada lado do altar e os objetos de madeira ajudaram a alastrar as chamas mais rapidamente. Adams viu o piano à sua esquerda ser tomado pelo elemento destruidor enquanto sentia a temperatura do santuário subir ao ponto de convertê-lo numa filial do inferno. Logo a fúria incandescente atingiu-o, desintegrando suas roupas e destruindo sua pele enquanto continuava tentando em vão se reerguer. Notou algo que o aliviou, ao menos: as queimaduras, ao contrário do ferimento causado pelo punhal, regeneravam-se tão logo eram causadas. Bingo. O fator estranho encontrava-se mesmo na arma de Baltazar.
Deitado enquanto era assediado pelo fogo sem verdadeiramente queimar – uma visão bizarra a qualquer um que ali estivesse – Adams foi incentivado a tentar mais uma vez mover-se. Conseguiu, a duras penas, colocar-se sentado, erguendo o tronco. Nisso já se via nu, os artefatos e equipamentos que trazia consigo, assim como as roupas, inutilizáveis. O crucifixo de ferro e prata que pertencera a seus avós começava a entrar em fusão, Ernest vendo-se obrigado a deixá-lo ali. Sua preocupação, porém, era outra. A espada. Não poderia perder a Katana. Sua cruzada estaria liquidada se aquela arma derretesse.
Estreitou os olhos na direção do corredor, onde ela caíra. Viu-a ainda nele, jogada no piso enquanto as cadeiras ardiam ao redor. Estendeu-se para frente, tendo em mente se arrastar até ela. Nem que tivesse de escapar pela porta da frente e encarar os policiais e a imprensa, poderia lidar com isso. Só não poderia perder aquela espada.
Ignorando a dor da ferida no peito e o sofrimento causado pelas queimaduras – que, apesar de sumirem, eram sentidas – o aflito Adams pôs-se a engatinhar pela escada rumo ao corredor central. Vigas do telhado começavam a cair, revelando que logo toda a estrutura do templo viria abaixo. Não tinha muito tempo.
Quando já ganhava a área plana junto aos assentos, a alguns metros da Katana, o meio-vampiro teve seu corpo subitamente erguido pelas axilas, por inesperadas mãos enluvadas. A pessoa, quem quer que fosse, parecia na verdade usar um traje tático completo numa cor escura, a julgar pelos dispositivos e equipamentos acoplados aos braços logo abaixo dos pulsos. A misteriosa figura também exalava um cheiro característico, que conseguia se sobrepor ao próprio fogo... Algum tipo de perfume. Adams, em seu limitado conhecimento de fragrâncias, logo o identificou como bálsamo. Reconfortante, sem dúvidas.
– Vamos embora, meninão! – a voz era feminina e, embora adulta, revelava personalidade típica de alguém mais jovem.
Ernest aceitou o socorro de bom grado, nem se importando com o fato de estar nu nos braços de uma mulher que sequer conhecia. Incomodava-o um pouco achar-se incapaz de se virar para fitar-lhe o rosto; mas, a julgar pelo risco que corria sem aparentemente se ferir, ela não devia ser humana.
– Minha espada! – ele balbuciou, apontando como podia para o corredor. – Não saio daqui sem minha espada!
– Mas que coisa, hem? – ralhou a jovem, embora num tom de brincadeira.
Ela amparou-o de lado, fazendo com que pudesse caminhar envolvendo-a com um dos braços. Ele pôde então lhe contemplar as feições: era mesmo uma mulher nova, aparentando vinte e poucos anos. Pele bem clara, cabelos ruivos no mesmo tom que o fogo. Trajava realmente um uniforme especial, do tipo usado por esquadrões de elite militares. A roupa, no entanto, não possuía qualquer símbolo ou insígnia que Adams pudesse ver.
Avançando até o corredor junto com o sofrido caçador, a jovem curvou-se e apanhou a Katana, intacta, fitando-a com curiosidade por um momento antes de guardá-la num suporte às costas da roupa, onde também trazia um rifle de modelo não identificado. Ernest percebeu que sua salvadora possuía algumas brechas nas vestes, provavelmente causadas pelas chamas, embora não enxergasse quaisquer queimaduras. Viu-a abrir a boca para falar novamente e, visualizando de forma clara um par de caninos pontiagudos, tornou-se isento de dúvidas...
– Podemos ir agora?
Ele assentiu movendo a cabeça, ainda escorado na intrigante personagem. A igreja já se encontrava totalmente dominada pelo incêndio, um grande buraco aberto no telhado revelando acima de si a lua e as estrelas. Adams imaginou se a vampira tentaria tirá-lo do local por ali, quando viu que ela, demonstrando incrível força para seu porte físico, tomou-o em seus braços, deitando-o neles. Uma cena inversa à maioria das histórias de herói e princesa.
– Vamos subir, meninão?
Zonzo, Ernest percebeu que a ruiva deu um salto descomunal, de modo a atingir algum trecho ainda firme do telhado do templo pelo lado de fora. O ferimento da adaga latejou novamente, e o agente do FBI constatou que seu lado humano logo o levaria a perder os sentidos. A última coisa que presenciou, antes de apagar enquanto era carregado pelo alto das construções, foi All Souls Church terminar de sucumbir ao fogo voraz que iluminava a noite londrina.
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