Capítulo V: Sombras na noite
Capítulo V
"Sombras na noite"
Highgate, Londres.
No subúrbio de arquitetura georgiana localizado na parte norte da capital inglesa, mais precisamente na ponta nordeste de Hampstead Heath, as ruas estavam calmas e serenas naquela noite de quente inverno. Numa esquina ou outra guardas cumprimentavam os transeuntes, enquanto, fosse nos tradicionais ônibus de dois andares ou nos trens do metrô, as pessoas voltavam para casa após mais um exaustivo dia de trabalho ou estudos...
Mas nos ateremos aqui ao Highgate Cemetery, uma das principais localidades do distrito. Originalmente um dos "Sete Magníficos", uma série de sete cemitérios construídos ao redor de Londres no século XIX, em sua terra repleta de tumbas e capelas góticas se encontram enterrados diversos indivíduos conhecidos, como o filósofo Karl Marx, o físico Michael Faraday, e Adam Worth, criminoso que serviu de inspiração para Arthur Conan Doyle na criação do Professor Moriarty, arqui-inimigo de Sherlock Holmes.
Porém, com certeza, a fama do cemitério não se dá devido a seus mortos ilustres, mas por causa da conhecida lenda urbana do "Vampiro de Highgate", que teria assombrado o lugar durante a década de 1970. Segundo um morador local chamado Sean Manchester, o ser sobrenatural seria na verdade um nobre da Valáquia medieval que praticara magia negra e fora trazido num caixão para a Inglaterra no início do século XVIII. Ele então havia sido supostamente enterrado por seus seguidores no local que mais tarde se tornou o Highgate Cemetery, e então, após séculos, satanistas contemporâneos o teriam invocado. No dia 13 de março de 1970 – uma sexta-feira, por sinal – Manchester incitou seus associados a invadirem e exorcizarem o cemitério, causando um imenso tumulto de londrinos que acabaram vindo de toda a cidade para tomar parte na empreitada, tentando penetrar no local então protegido pela polícia. Na era da Internet, o Vampiro de Highgate ganhou espaço em sites sobre ocultismo e eventos sobrenaturais, sem que tal lenda urbana ainda tenha sido totalmente esclarecida...
De qualquer forma, nesta narrativa não nos importa os célebres homens enterrados em Highgate, tampouco o estranho mito do vampiro – ao menos por enquanto. Em nossa noite de inverno londrina, com temperatura um tanto incômoda devido aos evidentes efeitos do aquecimento global, interessa-nos os cinco misteriosos vultos que, sorrateiramente, escalaram há pouco o desgastado muro do cemitério...
O quinteto prossegue silenciosamente por entre os túmulos e árvores, envolto por uma súbita névoa que parece recepcioná-lo de forma macabra. Suas botas tocam o chão com bizarra leveza; seus sobretudos negros como a noite dançam ao sabor do vento, revelando silhuetas magras e pálidas...
– É este mesmo o lugar? – indaga uma insegura voz masculina.
– Sim, eu posso sentir... – responde o homem que aparenta liderar o grupo, careca e de voz arrepiante, seguindo à frente dos demais. – O solo deste lugar é amaldiçoado como nós, consigo sentir a cada passo que dou...
De repente os cinco soturnos indivíduos se detêm diante de uma tumba que se destaca entre as demais, semelhante a um pequeno mausoléu. Sob uma cruz de pedra imponente e detalhada, duas lápides situadas lado a lado revelam que na verdade há enterrado ali um casal. O careca se adianta e, lendo com rapidez as inscrições presentes nelas, sorri de maneira malévola:
Jonathan Harker
1870-1936
"Marido devotado e homem de coragem"
Wilhelmina Harker
1876-1950
"Esposa devotada, um verdadeiro anjo entre os homens"
– Nós encontramos! – afirma o líder, recuando alguns passos e contemplando as faces inexpressivas de seus comandados. – Vamos começar a cavar, ainda tenho outro compromisso esta noite!
Os demais assentem e assim, a chutes, pisadas, golpes de punhos, pás e picaretas, aquele profano trabalho noturno, sem causar grande barulho, tem início no coração do nebuloso e vazio cemitério, as soturnas sombras sibilantes dos invasores se confundindo em meio às rígidas e disformes silhuetas das sepulturas, compondo fantasmagórico conjunto.
X – X – X
– Esteja certo de que pode contar com nosso total apoio, senhor Adams – garantiu Cromwell, enquanto subia a escadaria em espiral de volta à superfície junto com o norte-americano. – Já está levando algumas de nossas armas, e também poderá nos contatar se precisar de ajuda, a qualquer momento e em qualquer lugar!
– Permite-me perguntar como isso será possível?
Sorrindo, Jack retirou algo aparentemente frágil de um bolso. Estendendo a mão fechada para Ernest, abriu-a sem pressa, permitindo que este, apesar da relativa escuridão do ambiente, enxergasse um pequeno aparelho semelhante a um fone de ouvido sobre a palma calejada de tanto enfiar estacas em corações de vampiros.
– Um comunicador? – presumiu Adams.
– Exato – respondeu o chefe da Liga. – Basta apenas acoplá-lo à orelha e pressionar o pequeno botão vermelho para entrar em contato direto conosco. É um equipamento recente e ainda não está totalmente livre de falhas, por isso é possível que ele lhe acarrete ocasionalmente alguma dificuldade quanto ao funcionamento, porém nada crucial...
– Entendido – assentiu o agente do FBI, guardando o aparelho consigo.
– Além disso, sabe como identificar nossos membros... – e, com tal observação, exibiu o dedo da mão direita contendo o anel com a representação de uma estaca.
– Certamente.
Nisso, a dupla percebeu que já vencera todos os degraus e estava mais uma vez prestes a cruzar a passagem secreta de volta ao pub. Porém, antes que um dos dois homens pudesse liberar o caminho, Cromwell repousou uma das mãos no ombro esquerdo de Adams, chamando-lhe a atenção mais uma vez, como fizera no subsolo. O experiente caçador de condenados encheu os pulmões e, fitando fixamente o aliado, disse num tom solene:
– Lembre-se de que empreendemos uma legítima cruzada, meu amigo. O mal está por aí, em toda parte, seduzindo os dóceis e inocentes corações. O vampirismo foi a maneira encontrada pelo diabo para dar a seus seguidores aquela que é a maior recompensa divina aos homens de bem: a vida eterna. Porém, como é uma verdade irrefutável que tudo aquilo que não provém de Deus é imperfeito, os malditos que receberam tal perversão foram obrigados a se alimentar do sangue alheio para continuarem enganando a morte, e pior, passaram assim a propagar a praga dos mortos-vivos por todo o mundo conhecido. Nossa tarefa é evitar que essa raça das trevas, com suas crescentes legiões de escravos da noite, subverta por completo as criaturas de Deus. Pode não concordar plenamente com nosso modo de agir, mas somos capazes de passar por cima de tudo para realizar o que é vital à humanidade.
– Desde o início dos tempos são necessários meios de equilibrar as ações do bem e do mal na Terra, Jack – afirmou Ernest enquanto o amigo abria a passagem, embora duvidasse cada vez mais de tais meios e de quem os assumia. – Apesar de nossas divergências, tem aqui um sincero colega de armas.
Trocaram então um abraço de apoio mútuo, Cromwell lançando um olhar curioso para a bainha às costas do visitante, e logo em seguida Adams voltou a pisar o assoalho do estabelecimento que servia de fachada ao esconderijo. Fred ainda estava lá, tomando um copo de uísque, e sua cara continuava amarrada. Porém, de certa forma, o barman e guardião emanava menos hostilidade do que antes. Tão decidido e misterioso como quando chegara ali, o federal viu a passagem secreta se fechar atrás do balcão e logo depois deixou o pub com uma naturalidade tão grande que chegava a assustar.
De volta a Percy Street, resolveu descer pela via sem maiores pretensões, parando no primeiro ponto de ônibus que encontrasse nas imediações do Nordic Bar. Adams apreciava muito a noite. Desde os tumultuados acontecimentos em sua vida anos antes, ele se sentia cada vez mais como parte dela, um de seus componentes. De certa forma, alguém que trazia equilíbrio à escuridão, sem medo desta.
A rua era dominada por sobrados e pequenos estabelecimentos comerciais, garantindo-lhe o típico charme da capital britânica. Deixando o "Recanto de São Jorge", percorreu um quarteirão até deter-se por um minuto na esquina com Charlotte Street e perceber algo errado no ar. Na verdade, sentiu-se de repente numa Londres totalmente diferente daquela em que se encontrava antes de adentrar o pub...
As vias com as quais estivera tão familiarizado ganharam de repente um caráter desconhecido, aterrador. Ernest via-se subitamente perdido, apesar das dimensões físicas do bairro não terem sido em nada alteradas. O problema era a aura mística que agora o dominava, embaralhando a percepção híbrida do meio-vampiro. Era como se agora pudesse notar uma presença muito forte ali, cercando-o, preparando-lhe um ataque. Tentando ignorar tais receios e passando de leve uma das mãos pela bainha às suas costas, continuou a andar. Se algo quisesse pegá-lo, estaria pronto para reagir.
Incomodado, atravessou a rua, subindo à calçada do outro lado com a tensão crescendo em sua mente. Queria sacar a espada ou munir-se de sua pistola para sentir-se mais seguro, porém acabaria assustando os transeuntes – apesar de poucos àquela hora –, causando um pânico desnecessário que somente o prejudicaria. Por pouco não esbarrando num casal de turistas italianos, passou diante de uma banca de jornais dentro da qual cochilava uma obesa senhora idosa. Em destaque nas manchetes de quase todos os periódicos pendurados à vista, uma notícia relacionada à Aliança Europeia que não interessou Adams. Seguiu caminhando. Sozinho, mas sempre precavido.
Os passos de Ernest se apressaram. Contornou a rua, ganhando uma área abundante em restaurantes, o aroma de comida tanto dos jantares recém-servidos quanto dos ainda preparados atingindo suas narinas através das fachadas e chaminés. Cada vez mais acuado por um mal invisível, o agente do FBI estava prestes a mandar para o inferno aqueles que também passavam pela rua e expor suas armas mesmo na presença deles – mas, com uma incrível força de vontade, conseguiu conter-se por mais alguns instantes.
Enquanto avançava, lembrou-se das aterradoras palavras presentes no pergaminho secular ao qual tivera acesso durante sua última viagem ao Oriente... Sim, aquela sentença jamais o deixaria em paz, e combinava e muito com aquele crescente receio que há anos o perseguia...
O homem que portar esta espada jamais conhecerá descanso.
Dobrou à esquerda, metros adiante. A estreita Percy Passage. Viu-se ainda mais oprimido por seus temores e a crescente aura maligna entre as duas maciças paredes de tijolos que formavam o beco, mas por sorte não havia demais pessoas nele a não ser ele mesmo. Respirando ofegante, parou e retirou lentamente a espada da bainha, a lâmina refletindo o brilho do luar acima dos telhados. Captando a presença sobrenatural mais intensa do que nunca, brandiu a Katana contra o nada, em seguida voltando-se para a direção da passagem pela qual viera.
Estava sendo cercado.
Como surgidos do nada, dois vultos negros passaram a se aproximar despreocupados por uma das saídas da viela, e quando Adams tornou a se virar, encarando-os, outros dois apareceram às suas costas. Conforme chegaram perto, suas feições pálidas e mortas ficaram nítidas ao norte-americano. Dois deles tinham cabelos longos e castanhos, enquanto os outros dois, um loiro e outro grisalho, mantinham-no com seus fios curtos. A pele era pálida como giz, os caninos à mostra, pontiagudos como facas. Vestiam compridos sobretudos negros, como se quisessem se diferenciar dos humanos, ter algo em comum entre si. Conhecendo a ideologia daqueles condenados, Ernest sabia que tal estilo de roupas dava-se exatamente por esse motivo.
– Sangue de longe... – murmurou um deles em tom ferino, lambendo os lábios. – Posso sentir até o sal a mais nas artérias... Viajou do outro lado do mar até aqui, não?
– Não vim até Londres para terminar sugado por indivíduos patéticos como vocês! – rosnou Adams, mantendo uma posição defensiva com a espada enquanto mantinha contato visual alternadamente com todos os quatro inimigos.
– Nem para rever um velho conhecido?
A última indagação viera de alguém à parte, ainda não visto, estando metros acima da posição do caçador de vampiros. Cauteloso, este voltou a cabeça brevemente para o alto, os demais amaldiçoados dançando sedentos ao redor de sua presa aguardando o momento certo para atacar, quando o membro restante do bando saltou do telhado de uma das construções junto ao beco, pousando de pé bem em frente a Adams.
Usava uma longa capa preta presa ao sobretudo da mesma cor, sendo que a peça esparramou-se ao redor de si quando caiu sobre o concreto, como se materializasse sua aura sombria. O vampiro, careca e igualmente pálido, permaneceu com o rosto baixo durante algum tempo, fitando fixamente o chão, até que ergueu as feições bem devagar... E, ao encará-las, Ernest sentiu um arrepio propagar-se por todas as suas juntas, uma das piores sensações de pavor de sua vida prejudicando seus reflexos e discernimento. Aquele ser cruel e medonho era inconfundível.
Baltazar Dracul.
O maldito continuava o mesmo, a não ser pela região do pescoço... ao redor da qual, sobre a pele fria e desprovida de vigor, via-se claramente marcas de costura, os pontos cinzentos de sutura compondo uma cicatriz circular que reconectara a cabeça antes decepada do vampiro ao resto de seu corpo. Liderando os outros sugadores, foi exibindo a marca cirúrgica – afastando com os dedos a gola do sobretudo – e ostentando os dentes pontiagudos na boca aberta que falou, soando zombeteiro e superior:
– Da próxima vez que decapitar um de nós, senhor Adams... Lembre-se de enterrar a cabeça bem longe do cadáver!
E, soltando um berro assustador, deu a ordem de investida aos comandados.
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