Capítulo IV: Recursos


Capítulo IV

"Recursos"

– É um relato sem dúvida interessante, senhor Adams, e intrigante – afirmou Jack, caminhando junto com Ernest pelos corredores do refúgio subterrâneo, braços agora também cruzados atrás da cintura. – Eu já ouvi falar de muitos dons sobrenaturais frequentemente dominados pelos condenados, mas é a primeira vez que fico sabendo de uma vampira profetiza.

– Rosemary sempre sofreu muito devido ao seu dom... Porém ele sempre a ajudou a proteger a vida das pessoas. Abrir mão de seu bem-estar para garantir o de terceiros é uma atitude nobre, senhor Cromwell. Algo capaz até de redimir um amaldiçoado aos olhos de Deus.

– Sou obrigado a concordar, mas isso não altera de forma alguma minha opinião em relação aos sanguessugas – disse o chefe da Liga com grande convicção.

Súbito, todos ali presentes ouviram um alto e intenso barulho se aproximando mais a cada segundo, semelhante a um estrondoso assovio metálico, até que toda aquela ala do esconderijo tremeu com intensidade, como se houvesse sido atingida por um terremoto. Vários membros da sociedade secreta tiveram de se apoiar nas paredes do corredor para não cair e, com o término do abalo após alguns segundos, Jack exclamou raivoso:

– Maldito metrô!

Adams deu uma breve risada, a qual, por sorte, não foi notada por Cromwell. Ao menos a passagem do trem noturno servira para cortar o discurso extremista do inglês. Seria curioso se os pacatos londrinos descobrissem a existência de uma secular organização antivampiros bem embaixo dos alicerces de suas casas. Logo depois, recomposto, Jack disse, dirigindo-se até uma porta de madeira ornamentada com crucifixos de bronze:

– Agora entendi tudo, senhor Adams. O senhor quer nossa ajuda para evitar a destruição do mundo como o conhecemos. Alguém aparece aqui ao menos uma vez a cada par de anos pedindo algo similar. Da última vez foi quando os muçulmanos começaram a se alastrar pelo continente feito uma praga... Oh, não, não faça essa cara! Pois bem, pode ser que Paris e outras grandes cidades agora corram o risco de perecer por esse grande mal que a vampira viu; tudo pode fazer parte de um grande plano demoníaco. Terá nosso auxílio no que for necessário e, para começar, gostaria de lhe apresentar alguns de nossos mais novos meios no combate ao vampirismo.

Sentindo-se lisonjeado e ao mesmo tempo incomodado com o convite, Ernest também seguiu até a porta, que foi aberta por Jack usando uma chave de prata. Os dois se inseriram então num novo corredor possuindo várias entradas, e Adams logo concluiu que teria muitas coisas para ver aquela noite... o que lhe exigiria o dobro de paciência para lidar com a visão limitada do chefe da organização.

Seguindo em frente, a dupla percorreu mais algumas dezenas de metros pelo refúgio subterrâneo da Liga Cromwell, passando por seu chão e paredes de aspecto neoclássico, até o momento em que Jack, que permanecera compenetrado durante alguns instantes sem proferir palavra alguma, ergueu a cabeça e, caminhando ainda com as mãos cruzadas atrás da cintura, falou após um suspiro:

– Sabe, senhor Adams, nós desempenhamos há séculos a dura função de proteger toda a criação de Deus perante as hordas de Satã representadas pelas legiões vampíricas. A cada coração morto-vivo perfurado por uma estaca, a cada cabeça demoníaca decapitada por uma lâmina sagrada e a cada corpo diabólico convertido em cinzas pela luz solar, os membros desta santa irmandade sentiram-se honrando o sangue derramado pelo Filho de Deus no Calvário para redimir a humanidade. E assim continuaremos agindo e zelando até o juízo final, quando finalmente nossa tarefa estará completa.

– Em que ponto quer chegar, meu amigo? – desejou saber Adams, dono de incrível poder de dedução e sempre incomodado diante do fanatismo religioso demonstrado pelo amigo.

– Como disse, a Liga tem séculos de idade, e com o passar do tempo nossos métodos evoluíram, tornando-se mais eficientes e, por que não, mortíferos para os malditos sugadores de sangue. Venha, queira continuar seguindo-me.

Os dois homens pararam diante de uma grande porta de madeira que possuía em seu centro uma placa dourada apresentando a inscrição "Arsenal" em alto-relevo. Jack tateou a mesma por um breve instante, como se apreciasse imensamente o que aquelas letras representavam, e girou a maçaneta, liberando passagem para que prosseguissem. Assim fazendo-o, ganharam novo corredor, repleto de pequenas saletas onde, em cada uma, integrantes do grupo de caçadores de vampiros manuseavam diferentes armas e equipamentos próprios para o combate no qual se engajavam.

– Aqui, senhor Adams! – chamou Cromwell, dirigindo-se até um pequeno cômodo próximo à porta que haviam cruzado, sobre a entrada do qual havia o algarismo romano que representava o número um. – O senhor precisa ver isto!

Ernest aquiesceu, e ao entrar, deparou-se com um rapaz loiro trajando as vestes características da Liga, empunhando uma espingarda Remington calibre 12 que apontava na direção de um manequim marrom apoiado em cima de uma coluna metálica. Enquanto o jovem membro da sociedade secreta engatilhava a arma, Adams fez questão de observar, com as mãos nos bolsos:

– Vampiros são imunes a armas de fogo...

– Como dizia o filósofo Parmênides, os olhos nos enganam, senhor Adams... – sorriu Jack astutamente. – À primeira vista essa aparenta ser uma espingarda comum, porém, vendo-a funcionar...

O comandado olhou para Cromwell com expressão interrogativa, e logo o superior assentiu movendo levemente a cabeça. O primeiro, então, demonstrando ótima pontaria, disparou contra o manequim, que num piscar de olhos estava totalmente cravado de pequenas e afiadas estacas de madeira, a espuma vazando de seu interior como se fosse o sangue e as vísceras de um alvo real.

– Uma espingarda de estacas... – concluiu o agente do FBI. – É bem engenhoso, sou obrigado a reconhecer...

– Eu agradeço seu elogio. Vindo de um homem que encarou a morte nua e crua tantas vezes, é uma honra. Já preparei uma dessas armas para que leve consigo. Agora venha comigo até a próxima sala, sem dúvida achará o ardil a seguir deveras interessante.

Adams obedeceu, e assim a dupla adentrou a próxima saleta, de número dois. Esta era um pouco maior que a anterior, e dividida em duas. Numa das partes, isolada por um espesso vidro blindado, um vampiro de vestes negras e brancas rasgadas, pálido e com os cabelos arrepiados, esmurrava loucamente a divisória tentando escapar. Sem demonstrar espanto, o norte-americano murmurou:

– Vejo que não hesitam em utilizar cobaias...

– Esse infeliz foi capturado na noite passada por um de nossos homens enquanto tentava arrombar um banco de sangue situado em King's Cross – explicou Jack. – Como ele já era procurado por nós há algum tempo desde que começara a atacar donzelas indefesas nas estações de metrô da cidade, resolvemos retê-lo para nossas experiências.

Em seguida, Cromwell, sem aparentar um pingo de hesitação ou arrependimento, fez um gesto para um subordinado próximo, que começou a inserir comandos no teclado do computador de frente para o qual estava sentado. Segundos após, o teto da área isolada da sala, onde se encontrava preso o vampiro, abriu-se automaticamente, e um objeto cilíndrico quase idêntico a uma granada de gás lacrimogêneo foi atirado dentro do local, atingindo o chão num baque metálico e rolando na direção do apavorado ser noturno. Este caiu sentado e recuou rastejando até uma parede, até que, para seu horror, um vapor amarelado começou a sair de dentro do misterioso artefato, tomando todo o ambiente.

Houve silêncio por poucos instantes, e nada pôde ser distinguido dentro da área isolada. Logo depois, surgindo de súbito em meio à neblina cor de mostarda que dominara o cubículo, língua para fora e olhos esbugalhados, o vampiro berrou, golpeando o vidro com toda sua força, sem no entanto conseguir ao menos trincá-lo:

– Oh não, é alho! Isso é vapor de alho! Tirem-me daqui!

O membro da Liga que operava o computador mostrou-se levemente transtornado diante da cena, porém Jack e Ernest permaneceram firmes e imóveis, este último reprovando por completo em seus pensamentos aquela demonstração tão deprimente. Segundos transcorreram até que Cromwell, julgando ser o bastante, fez novo gesto ao controlador, o qual por sua vez inseriu nova sequência de comandos via teclado. O resultado foi que, também automaticamente, vários dutos de ar se abriram dentro da prisão do vampiro, fazendo com que o gás que lhe era nocivo se dispersasse. Tossindo, o condenado da noite aos poucos recobrou as forças e colocou-se sentado no centro da cela, ofegante.

– Essa é a arma perfeita para atacar grupos de sugadores – afirmou Jack, orgulhoso. – Levará algumas dessas também, para prevenir-se.

Adams nada respondeu, apenas dirigindo-se até o terceiro cômodo. Embora achasse aquelas invenções engenhosas e úteis, discordava totalmente dos métodos carniceiros utilizados pela Liga. Lembrou-se de Rosemary por um instante, em como arrancaria o coração de cada um daqueles ingleses se pensassem em fazer um décimo do que faziam a seus prisioneiros a ela, até que o toque de Cromwell em seu ombro fez com que retornasse à realidade.

– Pareceu-me fora de órbita por um momento, senhor Adams... – justificou-se o líder da organização secreta.

– Apenas uma pequena onda de recordações que atingiu a praia de minha mente, Jack – respondeu Ernest de forma poética. – O que tem para me mostrar agora?

O caçador de vampiros britânico caminhou até um interruptor enferrujado presente numa das paredes do local. Acionando-o, fez com que fosse aberto automaticamente no teto um buraco quadrado, pelo qual, emitindo sons metálicos, desceu uma jaula de ferro pendurada por uma corrente. Dentro dela, encarcerada como um animal num jardim zoológico, havia uma vampira seminua, escassos trapos brancos lhe cobrindo poucas partes do corpo, cabelos ruivos de cor tão intensa quanto à de sangue recém-derramado, olhos levianos e face de imensa fúria, com os caninos pontiagudos totalmente à mostra.

– Quem é ela? – quis saber Adams, sem ocultar seu espanto perante figura tão aterrorizante e ao mesmo tempo digna de lamento.

– Uma das amaldiçoadas mais fortes e sedentas de sangue que já enfrentamos – explicou Cromwell fitando a mulher, que rosnava como um animal selvagem, puxando as barras da jaula com força. – Nós a capturamos há aproximadamente seis meses, quando tentava profanar um túmulo.

– Um túmulo?

– Exatamente, em Highgate. Desde então ela vem proferindo apenas uma única frase, incessantemente, como se quisesse convencer a todos que a cercam da veracidade contida em suas palavras...

E, fazendo silêncio, os dois homens puderam ouvir a prisioneira dizer num murmúrio, sua língua demasiadamente rubra roçando os lábios secos como num gesto de luxúria e provocação:

– Ele vai voltar, o Mestre vai voltar!

Havia tamanha lascívia em sua traiçoeira voz que tanto Ernest quanto Jack sentiram seus corações estremecerem. Quem seria o Mestre de tal miserável criatura?

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