Capítulo III: Chamado

Capítulo III

"Chamado"

Edifício Jacob K. Javits – Escritório do FBI, Ilha de Manhattan, Nova York, EUA.

Havia intenso movimento no vigésimo terceiro andar do prédio. Funcionários e agentes circulavam para lá e para cá, atarefados com casos, solicitações e burocracia. Junto a uma parede, fitando as divisórias e cubículos, o agente Ernest Adams servia-se de café com sua calma habitual, alheio a todo aquele alvoroço diário. Foi quando um de seus colegas, agente Richard Lamarck, aproximou-se também com um copo descartável da bebida em mãos, perguntando:

– Preocupado com algum caso? Parece um pouco pensativo...

– Não, está tudo sob controle – respondeu Ernest sem qualquer cerimônia.

– Então o que o atordoa?

– Nada... Eu apenas estava me lembrando de uma pessoa...

– Ah, amores passados, malandrão? – riu Richard, dando um tapinha no ombro do amigo.

Lamarck agia estranho ultimamente, e questionar os outros sobre o que os atormentava parecia estratégia para desviar o foco de sua própria inquietação. Sem querer estender-se na conversa, Adams rebateu:

– Poupe-me, OK? Ah, deixe os papéis daquela empresa farmacêutica em cima da minha mesa, quero dar mais uma olhada neles.

– Tudo bem... – o amigo parecia arrependido por ter sido inconveniente. – Te cuida, cara!

Lamarck se afastou, revelado como aquele que realmente necessitava de cuidados – deixando o colega sozinho com seu passado obscuro. Às vezes era difícil acreditar que um só homem já havia vivido tantas coisas. Em algumas ocasiões já desejara esquecer tudo, recomeçar do zero. Porém era impossível. Como já dissera a si mesmo uma vez, nada voltaria a ser como antes, por mais que quisesse. E suas memórias constituíam o novo homem que era naquele momento.

Foi quando seu celular tocou.

Surpreso, Adams retirou o aparelho do bolso, atendendo a ligação – de número desconhecido – com um estranho pressentimento, o qual se confirmou logo que ouviu a voz feminina do outro lado da linha:

– Ernest, é você?

O federal estremeceu. Aquela voz. Nem se houvessem se passado mais de cem anos desde aquele conturbado inverno ele poderia esquecê-la. Ela ecoava todos os dias em seu coração, em diferentes tons... Ora de alegria, ora de determinação, ora implorando socorro... E, naquele instante, ela se assemelhava a essa última entonação.

– Rosemary! – exclamou Adams, batimentos cardíacos acelerados.

X – X – X

O agente do FBI dirigia seu carro negro, um Ford Mustang 82 conservado, pela estrada repleta de pinheiros de ambos os lados. Aquela paisagem lhe lembrava casos passados de assassinatos premeditados, os corpos sendo abandonados em meio a cenários de florestas similares. Porém, dessa vez Adams não estava ali para solucionar algum mistério doentio. Viera atender a um pedido de auxílio. Sim, como quando ela clamara para que ele a salvasse de sua desgraça quase vinte e cinco anos antes...

E pensar que nenhum de nós envelheceu sequer uma célula... Por conta da maldição. Aquilo que nos uniu.

Ernest se encontrava, mais precisamente, numa área florestal um tanto isolada no estado da Virgínia. O brilhante sol se punha no horizonte para, dentro de poucos instantes, ceder lugar à escura noite, mãe dos amaldiçoados. Segundo o mapa marcado a caneta sobre o painel do veículo, o federal se aproximava de seu destino: um refúgio para vampiros sem família.

Era sabido no submundo – como Adams gostava de se referir ao meio "sobrenatural" de nossa sociedade, que foge aos olhos ingênuos dos céticos e descrentes – que um vampiro ancião chamado Julius Ashford, nobre inglês perseguido que viera para a América séculos antes no próprio Mayflower, fundara décadas atrás um abrigo para condenados desgarrados na área de uma antiga vila protestante. Para o resto do mundo o lugar não passava de um sanatório falido, mas Ernest sabia muito bem que inúmeros vampiros criminosos, em boa parte regenerados, lá residiam em contato direto com a natureza, vivendo austeramente à base do sangue dos animais da floresta. E Rosemary estava entre eles.

Era no mínimo pitoresco encontrá-la novamente depois de tanto tempo. Um amor de outra vida. A vampira que o havia transformado no que era hoje. Aliás, mesmo após tantos anos, Adams ainda não havia compreendido totalmente seu novo ser. O indivíduo implacável e muitas vezes sanguinário que vivia sob a pele daquele que um dia fora um idealista agente federal de olhos azuis, agora apagados.

Quando as casas de madeira do refúgio surgiram à frente do carro, o astro-rei já havia se despedido por completo e o céu ganhara um tom azul-escuro propício para que os vampiros deixassem seus abrigos protegidos da luz solar. Adams estacionou perto de um velho salgueiro, e apenas nesse instante percebeu que o lugar estava localizado às margens de um grande lago. Deixando o veículo, caminhou até um tronco de árvore caído sobre o qual um casal de jovens pálidos e quase raquíticos, vestindo roupas negras, contemplava o início da noite.

– Eu estou procurando o senhor Julius Ashford – informou o agente, mostrando suas credenciais do FBI.

– Ele está dentro da casa principal – respondeu o rapaz sem vontade, apontando a uma construção maior do que as outras, em formato de chalé.

– Muito obrigado.

Ernest seguiu até o local indicado, a trilha não deixando de atiçar sua curiosidade. Além das moradas dos vampiros, a propriedade abrigava extenso armazém de madeira – para dentro do qual, apressados, alguns residentes conduziam sacos de estopa sobre os ombros, guardando o que pareciam suprimentos para a noite. O visitante de nada suspeitaria, se não fosse a urgência nos olhares em sua direção conforme trabalhavam...

Estariam escondendo alguma coisa?

Adams logo chegou à casa do líder, cuja porta estava aberta. Olhando para o escuro interior sem penetrá-lo, capaz de distinguir os móveis e objetos dentro dele graças a seus sentidos aprimorados, o federal fitou um homem de costas sentado, aparência idosa e poucos cabelos brancos, que lhe disse, sem ao menos se virar – dado que se encontrava ocupado naquele momento escrevendo no que aparentava ser um diário embolorado:

– Rosemary o está aguardando na colina com vista para o lago. Basta seguir pela trilha que tem início atrás do salgueiro onde o senhor parou o automóvel.

– Obrigado, senhor Ashford – agradeceu Adams sem demonstrar qualquer espanto em relação aos evidentes dons cognitivos do ancião, comuns a muitos vampiros.

– Vá logo, ela tem algo muito importante para lhe falar!

O agente assentiu com a cabeça, voltando por onde viera. Passou mais uma vez pelo galpão – os sacos já todos recolhidos e seus carregadores fora de vista – e pelo casal de vampiros, avistando o caminho citado por Julius, que adentrava a floresta de pinheiros. O ar do ambiente era agradável, e Ernest fez questão de encher os pulmões com ele, sentindo-se bem e um pouco mais disposto. Ouvindo o som dos grilos e o piar dos últimos pássaros, Adams percebeu que o trajeto aos poucos começou a se elevar, conduzindo até a colina onde a vampira o esperava.

Um reencontro, após tantos acontecimentos... Não podia deixar de sentir latente ansiedade.

E lá estava ela. Sentada sobre uma pedra, admirando a bela vista do lago que se tinha dali de cima, as águas límpidas refletindo a luz da lua crescente. A jovem, de cabelos negros lisos um tanto compridos e pele demasiadamente alva, usava um sobretudo preto com um cinto da mesma cor, fivela prateada, pulseiras de metal e um par de botas também negras, cano alto. Seu olhar parecia perdido na paisagem, e ela nem viu Adams se aproximar lentamente, sentando-se numa pedra ao lado. Podendo examiná-la mais de perto, o agente do FBI concluiu que ela continuava linda e frágil em seu exterior, mas combativa e forte em seu espírito. Como quando a encontrara desmaiada numa rua anos antes, debilitada tanto física quanto emocionalmente, mas aguardando para introduzi-lo a um mundo completamente novo.

– Já faz um bom tempo... – murmurou ele após mais alguns instantes de silêncio. – Você nunca mais deu notícias, achei que havia seguido com a vida, e agora eu a descubro aqui, numa espécie de asilo para vampiros que se desgraçaram...

– Todos os vampiros são desgraçados por natureza – afirmou ela, olhos ainda fixos no lago e nas montanhas mais ao longe. – As vítimas de uma maldição nunca poderão viver felizes por completo.

– Eu entendo isso muito bem... Na verdade, até hoje eu não entendo se o que recebi foi uma maldição ou benção.

Rosemary voltou o rosto levemente para seu conflitante salvador, dizendo num tom suave como a brisa que os atingia naquele momento:

– Na Idade Média, os pobres e leprosos eram acolhidos nas abadias, onde recebiam comida e calor humano. Bem, esta é nossa abadia. O senhor Ashford faz a mesma coisa neste lugar, tratando como filhos vampiros cujas esperanças caíram por terra. Após você ter me libertado de Baltazar, vaguei sem rumo pelo mundo, buscando um sentido para minha própria existência. Uma razão para viver após ter tido meus sonhos destruídos na noite em que meus pais foram mortos e eu fui transformada numa condenada. Mas nada encontrei de virtuoso. Apenas dor e frustração. E acabei vindo parar aqui, onde, para meu alento, fui recebida de braços abertos por Julius e os outros. É aqui onde terminarei meus muitos dias, refletindo sobre meu destino.

– No telefone, você disse que aquilo que tem para me revelar tem algo a ver com meu destino – lembrou Adams, ajeitando discretamente seus óculos escuros na face. – Pode me contar o que é?

A vampira levantou-se da pedra e, caminhando em direção ao penhasco, parou junto à borda, contemplando a vista com as mãos cruzadas à frente da cintura. Dado o ar soturno da jovem nesse instante, Ernest chegou a pensar que ela estaria prestes a se jogar, porém tal temor foi dissipado quando Rose, sem se virar, retomou a palavra com a mesma entonação de antes:

– Ontem à noite eu tive uma visão enquanto dormia. Vi-me em Paris, na Champs-Élysées, quando de repente um míssil nuclear atingiu a cidade, propagando destruição e morte por todos os lados. Este meu dom é um inegável fardo, Ernest, mas ele tem se mostrado infalível ao longo de todos esses anos. Uma grande catástrofe está para acontecer!

– Um míssil nuclear? – surpreendeu-se o federal. – Rose, você tem certeza?

– Sim, eu tenho total certeza do que vi e senti! E o pior: acredito que essa visão seja um presságio do juízo final, Ernest. O fim dos tempos. Dentro das famílias de vampiros, tal ocasião é descrita desde os primórdios como o dia em que os amaldiçoados se voltarão contra os humanos, iniciando uma guerra que culminará na aniquilação das duas raças. Isso precisa ser evitado a qualquer custo!

– A ascensão dos vampiros...

Certamente Adams já ouvira falar daquela sombria profecia. Ela até já havia sido usada para assustar crianças à noite, mas era mais séria do que qualquer humano jamais poderia imaginar. A maioria dos vampiros, orientados pelos mais velhos e sábios, buscara desde o início dos tempos uma coexistência pacífica com os seres humanos. Entretanto, também sempre existiram os imortais incapazes de aceitar tal preceito. E o primeiro realmente notável desse grupo vivera no século XV de nossa era...

Vlad III, o Empalador, príncipe da Valáquia. Mais conhecido como Vlad Tepes Drácula, o "Príncipe das Trevas". Um dos mais nefastos seres que já haviam caminhado sobre a face da Terra. Tirano cruel, dedicara sua vida a tornar a existência dos mortais um inferno. Sua índole sádica e doentia não lhe conferira um status maligno apenas no submundo, mas também nos livros de História. Pertencendo ao grupo de cavaleiros cristãos conhecido como "Ordem do Dragão", combatera as invasões otomanas aos Bálcãs com extrema crueldade sobre seus inimigos e súditos, empalar pessoas constituindo sua maior fixação.

Após vender a alma devido a seus insucessos em conter a expansão muçulmana e culpar Deus por suas desgraças, fora autor de uma obra intitulada "Livro de Profecias dos Vampiros", a qual se tornou uma verdadeira bíblia para os condenados dispostos a enfrentarem o sistema vigente de coexistência pacífica, obra por isso terminantemente proibida pelos líderes das famílias. Durante sua existência morta-viva, estivera em todos os núcleos da civilização humana tentando disseminar seus ideais destruidores, em diferentes séculos. Roma, Paris, Londres... Inúmeros vampiros tentaram seguir seus passos, iniciando levantes contra os humanos, os quais fracassaram graças à ação rápida das famílias.

E um desses rebeldes fora Baltazar Dracul.

Adams se lembrava como se houvesse sido no dia anterior. A determinação em vingar Rosemary por tudo que Baltazar fizera a ela. A luta no armazém. Os planos de Dracul de iniciar um levante contra a raça humana. Sua derrota perante Ernest, e o livro que este encontrara em seu cadáver: justamente a obra profética escrita pelo príncipe Drácula.

As palavras que o reverendo dissera a Adams na catedral vazia, durante a mesma noite, latejaram então em sua mente, mais vivas do que nunca. Deus tinha uma missão para ele. O juízo final estava próximo, e ele tinha de lutar contra o mal. Era sua sina na Terra. Precisava aceitá-la. Nesse momento Ernest compreendeu o que Rose queria dizer quando mencionara que aquilo que falaria estava relacionado com o destino do agente.

Nisso, a vampira havia caminhado para junto dele e, segurando suas mãos com força, disse, fitando-o fundo nos olhos:

– Você precisa evitar isso, Ernest! Tem de impedir que uma guerra entre vampiros e humanos comece! Se isso acontecer, será o fim para todos nós! Foi o escolhido para combater as forças das trevas que pairam sobre o mundo!

– Eu tenho conhecimento de minha missão, Rose... – murmurou Adams, cabisbaixo. – Desde a noite em que a salvei de Baltazar, sempre soube que este dia chegaria. Agora tudo se encaixa. Você foi o caminho para que eu soubesse na hora certa. Por isso nos conhecemos, por isso nossos antepassados se amaram. Tudo faz sentido agora...

Pensativo, Ernest se levantou, soltando as mãos de Rosemary. Caminhou até a beirada da colina e, olhando para o lago de águas brilhantes e calmas, retirou seus óculos escuros. Depois se voltou para a jovem que, apesar de já ter visto o agente sem eles, recuou brevemente ao mirar aqueles olhos totalmente brancos, uniformes e sem vida, os quais outrora possuíam a cor anil do céu diurno.

– Será que, séculos atrás, meu antepassado Peter Adams já previa isso? – questionou Ernest. – Saberia ele que, se não deixasse que sua notável fé fosse abalada, um de seus descendentes, ao ser mordido por uma vampira, ficaria protegido da maldição e adquiriria o vampirismo apenas em parte, tornando-se um meio-vampiro? Um ser híbrido que teria a tarefa de evitar o fim do mundo?

– Uma coisa que aprendi em minha vida, com o auxílio de meu dom, é que tudo já está escrito – afirmou Rose, tom firme.

– Estará mesmo? Eu vencerei ou perderei? Quem garante que não acabarei morto durante essa nova cruzada contra os seguidores de Drácula?

– Para que o destino se cumpra, você deve seguir a direção que indicar o ímpeto de bravura que sempre possuiu! – sorriu a vampira, tocando o peito de Adams com a palma de uma de suas mãos. – Sei que não falhará, Ernest, e que abraçará esta missão...

Nota do autor: Para mais informações sobre como Adams e Rosemary se conheceram, ler a história "Adams", disponível em https://www.wattpad.com/story/133199048-adams

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