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Mas Matheus, como você começou a morrer se tudo ficou melhor?

A vida tem dessas coisas, né?

Aliás, acho que essa é a primeira vez que você ouve meu nome. Prazer. Não senti necessidade de me apresentar antes porque não é importante para a história. Não era, até agora. Até aqui, eu era o menino preto, nada mais. Aqui, quando eu entrei na sala da escola nova e conheci Gabriela, meu nome passou a ser a coisa mais importante do mundo. Pelo menos era como eu me sentia, e hoje vejo que não faz o menor sentido.

Olhando para a versão minha de quinze anos, tive vontade de me sacodir até criar juízo. Mas, naquele momento, aquela menina que possuía olhos tão azuis quanto o mar fez com que eu sentisse que a vida valia a pena. Foi com Gabriela que dei meu primeiro beijo, foi com ela que passei tarde a fio estudando depois da aula, foi com ela que reencontrei o meu sorriso. Ela, por um momento, me resgatou de mim mesmo quando olhou para mim e enxergou a pessoa que eu era, pela primeira vez na vida, não me julgando pela cor de minha pele.

Bem absurdo, né?

Minha autoestima estava tão baixa que me agarrei naquela garota e em tudo que ela representava, e deixei que sua atenção e seu carinho por mim determinasse o meu valor. Com ela, eu era Matheus, o aluno novo.

Como em todo lugar, a escola tinha sua cota de idiotas racistas, mas nada que se comparasse ao lugar de onde eu antes vinha.

Você rangeu os dentes ou passou batido pela frase anterior? Absorveu as linhas lidas ou seguiu em frente, esperando pelo que vinha? Notou que é a primeira vez que usei a palavra, a tal palavra, que comove nações e revolta até o maior dos pacíficos?

Não importa.

Essa história não é sobre o seu desconforto, é sobre a minha morte.

Então vou dizer de novo: racismo. Racismo mata. Essa é a história de como o racismo me matou pela primeira vez.

Pois bem.

Onde eu estava?

Gabriela.

Os meses se passaram e a gente só fez se aproximar. Para cima e para baixo juntos, seja para estudar, seja para passear no shopping escondido depois da aula. Entre risadas, descobrimos gostos em comum. Mas não se engane, Gabriela não me curou. Belos olhos cor de mar não são poderosos o suficiente para isso.

Ainda passava a maior parte do tempo na cama, sozinho, sem querer levantar. Meu primeiro pensamento toda manhã era me questionar, em silêncio, qual o motivo de eu existir. Só há uma certeza nessa vida, só tem uma coisa que une a todos nós: a cada dia que passa, estamos mais perto da morte. Bem trágico, né?

Uma vez minha psicóloga - uma mulher bem nova, confesso que não levei muita fé nela na primeira consulta, mas fui surpreendido - me disse que quando a gente teme a morte, deixa de viver a vida. Discordei dela. Achei ridículo. Aí depois, concordei. Era verdade. Todo o tempo que passava com meus olhos abertos era um sofrimento sem fim. Minha alma parecia retalhada. Meu corpo, atacado por facas invisíveis. Respirar doía. O simples fato de existir parecia um fardo maior do que eu era capaz de carregar.

As escapadas pós-aula eram raridade comparadas com os dias que eu passava sentado na cama encarando a parede.

Lembro de uma vez que Mariana entrou no quarto, esbarrando no armário por não conseguir enxergar nada na escuridão em que o cômodo se encontrava. Ela reclamou do cheiro, da poeira abafada, escondida pelas cortinas que nunca eram abertas. Eu não reparava mais. Era meu casulo, meu lugar seguro - tão seguro quanto se podia ser. A verdade é que quando seu pior inimigo é sua mente, não há para onde fugir. Multidões eram aterrorizantes, mas estar sozinho, abandonado à própria sorte comigo mesmo, era torturante.

E é por isso que lembro com tanta clareza, com tanto carinho das tardes perdidas escondidos dentro do cinema, assistindo filmes impróprios para nossa idade. Tardes em silêncio na biblioteca, estudando a matéria que cairia nas provas. Tardes clandestinas, no quarto dela, jogando vídeo-game enquanto deveríamos estar fazendo o dever de casa.

Confesso que tive medo. A primeira vez que pisei meus pés no apartamento onde Gabriela morava com os pais, senti um pânico crescente em meu peito de tal forma que pensei desmaiar. A pulsação, intensa, ensurdecedora, fazia tremer minhas mãos que iam de encontro à campainha. Pensei em voltar. Quase não saí de casa. Meus pais me obrigaram. Disseram que me faria bem. Que eu precisava sair de casa, que precisava fazer alguma coisa para melhorar. Como se eu não estivesse tentando.

Essa é uma coisa curiosa sobre a depressão. Ninguém diz a um paciente com câncer que ele pare de frescura e enxote os tumores de seu corpo. Ninguém diz para uma pessoa com a perna quebrada que se ela jogar bola vai melhorar mais rápido. Que precisa se expor ao mundo, sair da zona de conforto, ser mais forte.

Mariana uma vez me falou que eu tinha sorte de ter nascido rico, que depressão não era doença de gente pobre. Que eu podia me dar ao luxo de ficar jogado na cama, sofrendo minhas dores, que não tinha conta pra pagar, filho pra criar, vida pra viver. Ela estava certa sobre a última parte. Eu realmente não tinha vida para viver. Aquilo não era vida.

Melhorou um pouco depois que comecei a fazer terapia. Mas terapia não faz milagre e logo minha psicóloga recomendou que eu visitasse um psiquiatra. Lembro como se fosse ontem, a expressão no rosto de minha mãe. As palavras saindo de sua boca antes que ela pudesse controlá-las.

Meu filho não é louco.

Seria engraçado se não fosse trágico, uma mulher instruída repleta de preconceitos. Essa é a maior hipocrisia da vida. Ela, mãe de um menino negro que por toda a vida sofreu por isso, que conhecia e sentia de perto a dor de ser julgado, apontado, destratado, ferido, não hesitou por um segundo antes de cuspir um estereótipo agressivo e marginalizador.

Meu filho não é louco, ela disse.

O que ela não disse, mas poderia muito bem ter dito, porque era exatamente o que passava em sua cabeça naquele momento, era que não admitiria ter seu filho tachado de maluco, que eu era melhor que isso e ela não permitiria que eu fosse rebaixado dessa maneira.

Gostaria de dizer que fiquei surpreso, mas não fiquei. A recusa inicial em ao menos aceitar que algo estava errado comigo fez com que aquele fosse exatamente o tipo de comportamento que eu esperava. Não é que ela fosse má pessoa, me pego justificando até hoje.

Esse é um daqueles pré-conceitos que a gente é criado pra aceitar e carrega pela vida afora, disseminando odiosamente.

Que nem dizer que preto é tudo bandido.

Lembra da mãe do menino da minha turma? Pois é. É assim que se cria, é assim que se molda alguém que, daqui a alguns anos, vai repetir essa mesma frase para seus filhos.

Não é que sejam más pessoas, o mundo é assim.

Ideias agarradas ao nosso ser que ali permanecem a menos que sejam desafiadas.

Não me entenda mal, de maneira nenhuma tento defender. Sou o último que poderia fazer isso, concorda?

O mundo não é assim. Ou talvez seja, e é nossa responsabilidade mudar isso.

Senti na pele o preço a ser pago pela existência de tanto preconceito.

De tanto ódio infundado.

Ódio descarado, ódio assassino.

E é aqui que entra Gabriela.

Até então, conhecia Gabriela na escola. Conhecia Gabriela em nosso tempo sozinhos. Conhecia a Gabriela que ela era comigo. Não conhecia o adulto por trás daquela garota. Tive medo, tive medo da porta ser aberta e eu dar de cara com alguém me olhando de cima a baixo, me medindo com sua própria régua, enxergando nada além da tinta que pintava meu corpo.

Talvez você esteja pensando que foi exagero de minha parte. Que nem todas as pessoas são assim, e eu concordo. Nem todas são. Não sei dizer se eu tive a infelicidade de encontrar todas as que são reunidas em um único lugar. Talvez. Talvez nem todo mundo passe pelo que passei. Na verdade, torço por isso. É algo que não desejaria nem ao meu pior inimigo. A questão é que minha experiência pessoal me levou até aquele momento, me levou a estar com medo do que me esperava por detrás daquela porta.

E foi quando a porta se abriu e um sorriso caloroso se estendeu até mim.

"Você deve ser o Matheus," uma mulher sorridente disse. "A Gabi fala muito de você, estávamos ansiosos para te conhecer."

Naquele dia, fiquei para o jantar. E muitas outras vezes mais também. Quando meu pai ia me buscar no fim do dia, eu podia ver em seu rosto, em seus olhos a esperança contida de que talvez, só talvez eu estivesse bem. Como se tudo que eu precisasse fosse ter um bom dia.

O que ele não notava - o que ninguém nota - é que, para cada dia que eu ia para casa de Gabriela, existiam dez outros em que eu recusava convites e me trancava dentro de casa. Não por odiar o mundo, mas por, principalmente, me odiar.

Para cada sessão de estudos, tinham tantos outros momentos em que eu era incapaz de me concentrar em qualquer coisa à minha frente, em que demoraria horas para conseguir ler uma frase e, ainda assim, nenhuma daquelas palavras fariam sentido.

Eu ficava cansado o tempo todo. Irritado o tempo todo. Com raiva de mim, com raiva dos outros, com raiva da vida.

O final do ano letivo estava batendo à porta e eu não tinha qualquer pretensão de passar. E o mais trágico de tudo é que eu realmente não me importava. Se eu sequer me importava em viver, o que uma nota ou um diploma significariam para mim?

Mas com o fim do ano veio também outro evento: o aniversário de quinze anos de Gabriela. Como toda boa filha de pais ricos, o aniversário seria transformado em um evento digno de primeira capa de revista. E era exatamente esse o objetivo. Eu não sabia até então, mas descobri naquele momento que a mãe de Gabriela era modelo - fora modelo -, então volta e meia aparecia, de fato, na capa de alguma revista importante dessas de fofoca, celebridades, coisa e tal.

Não achei que isso fosse mais digno de nota do que um comentário sincero sobe como devia ser legal ser filha de gente famosa. Ledo engano. Guardem essa informação.

Nos meses que antecederam o aniversário da menina, uma operação de guerra foi montada. Todas as pessoas da nossa sala queriam um convite para o que, certamente, seria o evento do ano. E, como mágica, eu passei a ser a pessoa mais benquista da história daquela instituição de ensino. Subitamente, as provocações pararam. Os olhares tortos pararam. Os sussurros e piadinhas, pararam.

Me cumprimentavam no caminho para a sala.

Começaram a se oferecer para fazer trabalhos em grupo comigo.

Foi ali que aprendi uma coisa nova: para muitas pessoas, o interesse supera os princípios.

Se é que pode ser chamado de princípio. Quase me recuso a isso.

Foram poucos os que continuaram a ignorar minha existência. E me queima a garganta dizer, mas eu quase cheguei a admirá-los. Mantiveram-se fiéis ao que acreditavam. Tinham dentro de si que eu era um pária e que não pertencia àquele lugar. O negrinho que teve sorte de ter mãe branca. O preto favelado que achava que era gente só porque podia pagar a mensalidade. Eram poucos, admito. Mas se mantiveram firmes.

O quão distorcido é isso?

O quão corrompido eu mesmo estava, o quanto ódio eu tinha por mim mesmo para chegar ao ponto de pensar dessa forma?

Os meses se passaram e, entre altos e baixos, entre crises prolongadas e visitas constantes à psicóloga, senti meus passos pouco a pouco voltando ao trilho. Passei semanas sonolento como efeito colateral dos remédios que me foram prescritos, mas meu corpo eventualmente se acostumou. O médico me avisou que os remédios não necessariamente eram a melhor escolha de tratamento para todos, mas funcionou para mim. Foi com um alívio no peito e a capacidade de voltar a respirar que percebi isso.

Passei dias, semanas, ajudando Gabriela na preparação da festa. Ajudei na confecção dos convites, vi os nomes de cada uma das pessoas ser escrita na letra cursiva arredondada da menina que usava o cabelo preso em um rabo de cavalo.

Lembra do tal primeiro beijo?

Faltavam poucas semanas para a festa.

Estava chovendo e eu esperava meu pai chegar. Estávamos os dois na entrada do prédio dela, a lua brilhava no céu. O ventinho fresco era bem-vindo já que era verão, e verão no Rio de Janeiro não é para amadores. Meu celular vibrou com uma ligação, e era meu pai dizendo para eu correr até a entrada porque ele não teria tempo de entrar no condomínio; estávamos atrasados para encontrar minha mãe. Quando virei para me despedir de Gabriela, meu encontro foi com seus lábios.

Lábios macios e rosados na menina que, na ponta dos pés, me alcançou, tocou meu rosto com seus dedos delicados e me trouxe para si. Fiquei imóvel por alguns segundos, sem saber o que fazer, sem saber como reagir.

Se você já foi um menino de quinze anos, sabe bem como é a sensação. Talvez não, talvez você soubesse mais da vida que eu com essa idade. Mas certamente fora um adolescente dando seu primeiro beijo, sem saber ao certo o que estava acontecendo.

Repentino como começou, acabou, e Gabriela saiu correndo para dentro de seu prédio, me dando um tchauzinho espevitado com a mão enquanto entrava no elevador. Lembro de ter ficado parado ali, tocando minha boca, com um sorriso idiota no rosto, sem me mover até meu pai ligar outra vez.

Gabriela naquele momento era muito mais do que a menina que me beijou - o que, vamos combinar, já faria dela uma deusa andando na terra naquele momento.

Mas não.

Me dói dizer, mas a verdade é que Gabriela era a menina branca que me beijou. A menina branca que fez com que eu sentisse que tinha algum valor. Não nego em dizer que a usava com auto-afirmação desde que nossa amizade começara. Media meu valor pelo valor dela. Afinal, se uma garota como ela estava perto de mim, alguma coisa em mim prestava.

Fico feliz em dizer que esse pensamento pertence a um passado do qual não me orgulho.

Mas naquele momento, os socos no banheiro começaram a parecer uma vida passada. Os meninos no corredor colocando o pé no caminho para que eu tropeçasse e caísse, pareciam parte de um tempo que há muito ficara para trás. A exclusão, as ofensas, as agressões, tudo isso começou a parecer fumaça que pouco a pouco se dissipava de minha mente.

"Talvez nem todas as pessoas sejam ruins," lembro de ter pensado. "É provável que eu tenha dado azar."

Os professores na nova escola me tratavam melhor.

Os meninos e meninas da minha idade pareciam não me odiar tanto.

Os pais de Gabriela me tratavam como parte da família.

Gabriela me beijara.

Pela primeira vez em muito tempo, não tive medo.

A perfeita calmaria antes da tempestade.

E a tempestade chegou naquele 04 de dezembro.

Me arrumei para a festa e insisti que meus pais não me levassem. Sabia que Gabriela ia direto para o salão de festas e queria entregar o presente que havia comprado antes, então preparei tudo para que conseguisse estar na casa dela algumas horas antes do horário. Segurava nas mãos a pequena caixinha contendo o par de brincos de água-marinha, azuis como seus olhos. Não queria nem ver a cara do meu pai quando a fatura do cartão de crédito chegasse. Valeria a pena.

Era de tarde ainda quando cheguei na recepção de seu prédio. Esperei, ansioso, enquanto o porteiro interfonava para o apartamento dela. Alguns minutos se passaram e ouvi passos vindo em minha direção. Estranhei; imaginei que me mandariam subir, mas não tive muito tempo para pensar no assunto quando me virei e dei de cara com a mãe de Gabriela.

Ela me olhou com um sorriso nos lábios, e seus olhos pousaram imediatamente no pequeno embrulho em minhas mãos. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, e foi quando o primeiro fio de preocupação percorreu minha espinha. Quando a voz finalmente saiu por sua garganta, levei alguns segundos para entender o que ela dizia. Foi só muito tempo depois de ela pegar o embrulho de minhas mãos e desaparecer, subindo o elevador, que consegui colocar sendo no que me fora dito.

"Você sabe o quanto adoramos você, de verdade," dissera a doce mulher. "Sua amizade tem feito tão bem para minha filha. Ela não estava em um bom momento antes de te conhecer. Estávamos preocupados de verdade. E eu quero muito que vocês continuem sendo amigos, está sendo muito importante para ela te ter por perto."

Ela se aproximou de mim e se inclinou levemente em minha direção, sussurrando, como se tivesse alguém por perto que pudesse ouvi-la.

"Ela vai perguntar porque você não apareceu na festa. Eu preciso que você invente alguma desculpa, querido. Diga que teve algum problema em casa. Ela não vai entender se eu tentar explicar, você sabe como é adolescente. Ela jamais aceitaria sem uma boa briga." Cada palavra que saía da boca dela fazia menos sentido a cada segundo que passava. E foi, então, que a última linha foi desenhada.

"A festa de quinze anos é uma coisa muito importante na vida de uma menina. Vamos tirar muitas fotos hoje, e essas fotos vão durar para sempre, vão sair em revistas, vão ser mostradas para nossos amigos e familiares. E sei que ela vai insistir em te ter nessas fotos. E..." ela pausou. "Você entende que isso não pode acontecer, certo? Você não... encaixa."

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