Sobre a Morte
"Que cagaço, seu Zé", assustou-se Mabel, segurando o coração com a mão para não pular do peito, "A senhora sua mãe não te ensinou que é feio chegar assim de mansinho? Credo, parece até alma penada"
Olhando para o alto, o coveiro fez um desajeitado sinal da cruz.
"Deus me livre. Nem é bom falar uma coisa dessas, pois vai que a morte escuta e acredita"
Mais calma, Mabel riu da situação, sendo acompanhada pelo próprio coveiro. Na cidade, muitos olhavam torto para o Zé, por conta da sua profissão, mas a menina gostava dele.
Por mais humilde que aparentasse ser, o Zé era muito sabido e tinha sempre as respostas certas na ponta da língua. Corria à boca pequena que, de tanta gente enterrar, ele se amigou da Morte e dela aprendeu os saberes eternos.
Para Mabel aquilo não passava de uma grande besteira.
O povo tem é inveja do seu Zé, um homem simples que sabia mais que muito doutor engravatado.
Um sujeito do interior não podia ser afeito aos livros e aos estudos?
"Às vezes eu me pergunto, seu Zé, o que te levou a seguir essa vida. Me parece uma carreira tão triste, solitária até. Ter que lidar com a morte tão de perto"
"Sabe que ninguém nunca me perguntou isso?", riu o coveiro, tirando o chapéu e ajeitando os cabelos ralos, "Estava há um ano desempregado, fazendo bicos, e vi que, assim, não daria. Tinha que escolher entre uma oficina mecânica e o cemitério. Como não queria viver engraxado, assumi no cemitério"
"Nada de vocação ou amor pelo trabalho?", gargalhou Mabel, encarando o coveiro.
"E brasileiro, lá, gosta de trabalhar? A gente labuta porque precisa dos pilas pra comprar comida e satisfazer os prazeres da carne"
"Somos servos do capitalismo afinal de contas", suspirou, enquanto voltava novamente o olhar para a fotinho da sua mãe, parafusada à lápide de granito.
"Deixa eu te perguntar, seu Zé, depois de tantos anos trabalhando aqui, você já chegou a se perguntar por que a gente morre?"
O coveiro Tragou um pouco da nicotina do palheiro e fechou-se ainda mais no casacão antes de responder:
"Olha, já enterrei muita gente nesse cemitério. Antes de você nascer, eu já havia preenchido uns três lotes desse lugar. Gente rica, gente pobre, branco, preto, amarelo, todo mundo acaba aqui"
"Mas deve haver alguma razão", insistiu a garota.
"Será que é preciso uma razão para morrer?"
"Acho que sim, ué. Se não, de que vale a vida?"
"A nossa mente procura por padrões e justificativas pra tudo, entende? Pode não haver nenhuma, mas ainda assim vamos atrás. Quem sabe a razão da morte existir seja pra vida ter um pouco mais de graça"
"Como assim?"
"Pensa como seria chato viver pra sempre"
Mabel mordeu os lábios e virou os olhos de leve para cima. Sempre fazia isso quando queria queimar alguns neurônios, pensando em algo.
"Não sei se concordo com o senhor, seu Zé"
"Na verdade, você não precisa concordar", riu o coveiro, "Nunca vamos chegar às respostas, seguindo paradigmas sólidos e soluções fáceis e imutáveis. É por isso que a filosofia me fascina. É na dialética, na oposição de ideias, que se alcança a verdade. Mas em que ponto você diverge?"
"Consigo pensar em ene coisas que eu poderia fazer se fosse imortal"
"Assim como eu. Mas aposto que a senhorita iria se cansar após alguns bilhões de anos"
"Bom, os deuses não se cansam, então acho que eu poderia me acostumar em algum momento caso eu fosse uma deusa"
"O que lhe faz pensar que eles não se cansam da eternidade?"
"Ora, não consigo imaginar uma deidade questionando a efemeridade da existência como a gente. Me parece um conceito, ou melhor, uma dor tão humana, uma fragilidade que não cabe na altivez de uma divindade"
"É difícil para a humanidade pensar como um Deus. A forma como uma deidade mensura o tempo está além da compreensão de um mortal. Está além da compreensão de qualquer ser na verdade. Eu mesmo, vejo o tempo de uma maneira fluida, como se fosse um rio, visão que, suponho, deve ser compartilhada por você também. Mas um Deus vive o tempo de maneira plena. Enquanto dá vida à sua criação, no alvorecer dos dias, Ele apaga as luzes do universo, no crepúsculo das eras"
"Isso me faz lembrar de um certo personagem de gibi. Ele vive todos os momentos da sua própria existência ao mesmo tempo. Passado, presente e futuro"
"Imagino como deve ser triste e solitário. Viver de maneira transcendental, mas sem ninguém pra compartilhar tal existência"
"Ele até tinha alguém, uma mulher incrível, mas o distanciamento dele complicou a relação"
"E o que aconteceu no final?"
"Isso é spoiler, seu Zé", ralhou a garota, "Mas talvez por isso os deuses das antigas mitologias viessem tanto para o nosso mundo. Deve ser bem chato lá do outro lado"
"A urgência da morte é a única razão que nos faz seguir em frente", sentenciou o Zé, com um sorriso triste, soprando a fumaça do palheiro no pesado ar da madrugada, "Bom, talvez não a única, mas ainda assim a principal"
"Eis aí o fardo da mortalidade", suspirou Mabel, cruzando os braços, na tentativa de se proteger do austero frio.
"Quase como se tivéssemos um reloginho que cronometra nosso tempo aqui", continuou o Zé das Almas, "Ele não para, nem retrocede, não é injusto, nem clemente. Ele apenas nos faz lembrar que nosso tempo nessas paragens é limitado"
"Pensar nisso já me ataca a ansiedade", estremeceu a menina, "Às vezes me pego ruminando sobre esses assuntos, pois é algo totalmente fora de nosso controle. Quer dizer, não escolhemos quando vamos morrer"
"Mesmo que uma pessoa queira morrer, ela ainda está atada à teia do destino"
"E ele pode simplesmente chegar e dizer 'Hoje não, parceiro, hoje não'"
"A morte é uma dor crônica que incomoda a humanidade onde mais lhe dói"
Tem razão, Zé, a morte dói e dói pra valer, pensou consigo mesma.
"No coração?"
"No ego. Como o ser humano, considerando-se soberano sobre os animais e sobre a natureza, pode ter o fio da vida cortado por uma entidade alheia à si próprio? O homem, em seu complexo de Deus sobre a Terra, não consegue aceitar a realidade, nua e crua, de que sua vida pode simplesmente chegar ao fim e que isso está fora do seu controle"
"Eu pensava que viver para sempre seria divertido, poderia fazer o que quisesse, mas fiquei pensando enquanto o senhor falava: imagina o nível da nossa procrastinação. Por que fazer algo hoje, se posso deixar para o próximo quarto de século?"
"Tememos a morte, porque há um capricho em nós que acredita que é legal viver para sempre. Mas não passa disso: uma fuga da realidade"
"Os crentes esperam pela vida eterna nos campos elíseos, ao passo que os céticos se conformam que nosso corpo é composto apenas de matéria, uma porção infinitesimal de matéria, que um dia vai virar pó e voltar às entranhas da Terra"
"E quanto a você?"
Mabel não era uma garota que costumava desabafar e a única confidente que já tivera em sua vida, jazia naquele mesmo cemitério, no túmulo à sua frente. Mas, em seu íntimo, sentiu que podia confiar no Zé das Almas.
"Sinceramente não sei no que acreditar", retrucou, tentando evitar meias palavras,
"Tudo que sei é que tenho medo"
"Medo de que, pequena?"
"Me agarro a essa realidade palpável e concreta, com afinco, pois é tudo que tenho, mas temo partir e não ser mais eu. Tenho de medo de chegar do outro lado e não ser o que eu espero ou pior de não existir um outro lado"
"É normal sentir medo, afinal só quem conhece os segredos da morte são nosso entes que já partiram e, bom, eles não estão mais aqui para nos contar o que tem do outro lado"
"O que o senhor acha que tem lá?"
"Supondo que existe um lá"
"Achei que o senhor fosse católico, seu Zé"
"Ora, eu sou mesmo! Aprendi com a minha mãezinha que se eu acreditasse em Deus e fosse uma boa pessoa aqui na Terra, teria um cantinho reservado na eternidade"
"Mas então?"
"Um homem não pode ter suas dúvidas?"
Mabel deu de ombros.
"Aliás", declarou o coveiro com um estalar de dedos, "Isso me faz lembrar do causo de uma mulher que um dia veio ter comigo. Seu nome era Mercedes, que Deus a tenha"
"É um nome de velha rica"
"De fato, era uma mulher de muitas posses. Ela veio até aqui diretamente da clínica, com um maço de papéis. Estava com as costas arqueadas, os olhos molhados e os braços flácidos lhe caíam ao lado do corpo, como um fantoche de meia vazio. Ela tinha acabado de descobrir que tinha câncer em estado avançado"
"Misericórdia"
"Estava com os dias contados, ou melhor, os meses. Sete para ser mais exato"
"Eu nem imagino o que faria se tivesse os dias contados assim. Mas continue, seu Zé"
"A dona Mercedes também não sabia e chegou até mim com um dilema: tinha gasto a vida acumulando bens e fortuna. Não tivera filhos. Nem sobrinhos ela tinha para deixar sua herança. Que faria agora, que estava às portas da morte? Poderia resignar-se ao inevitável abraço do destino e esperar pelo fim ou chutar o pau da barraca. Estava prestes a deixar esse mundo, então podia fazer o que quisesse"
"E o que o senhor disse a ela?"
"Eu lhe o conselho mais clichê do mundo"
"Não que o senhor meteu a fala do coração?"
"Exatamente. Falei para ela seguir o próprio coração que ele a guiaria pelo caminho certo"
"E ela seguiu seu conselho?"
"Ah se seguiu. Pagou algumas centenas de reais para pular de paraquedas"
Mabel arregalou os olhos. A coragem da velha!
"Bah, que ótimo então. Queria eu ter coragem para fazer um troço desses"
"Bom, é aí que vem o contra-ataque do destino. Eu não sabia que a velha dona Mercedes tinha o coração fraco"
"Meu Deus, seu Zé"
"Ela foi fulminada por um ataque cardíaco logo que o avião decolou. Morreu na hora"
"Isso é horrível! Quer dizer, se bem que se ela tivesse simplesmente esperado para morrer não teria sido muito melhor"
"Os epicuristas acreditam que a morte, para nós, nada significa e, portanto, não devemos nos preocupar com ela"
"Fale isso pra minha cabeça, seu Zé. Desde que encarei a morte de perto, meus pensamentos vivem em constante estado de ebulição. Tem algo, um sentimento, uma dúvida crescente que me incomoda, mas não sei o que é"
"E o que ela diz?"
"Ela me diz que há algo de errado com esse mundo, comigo", a garota baixou a voz gradativamente, com medo de um possível julgamento.
"Não tem nada de estranho nisso. A dúvida e o pensamento crítico são armas poderosas que nos fazem ter noção da nossa verdadeira realidade"
"Inauguramos, nesta noite, uma nova modalidade de discussão", gargalhou a garota.
"É mesmo?"
"Em contraponto à filosofia de buteco, demos início à filosofia de cemitério"
"Tem razão, pequena"
"Mas agora já está tarde e amanhã tenho aula. Foi bom conversar com o senhor. Até"
"Até, minha filha"
Enquanto a menina desaparecia na bruma, o Zé acenava e refletia. De que vale a morte, senão pela graça de viver? E de que vale a vida, senão pela graça de morrer?
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top