O Coveiro
Era tarde da noite e, lá fora, os cães latiam. Deve ser algum bicho, pensou o Zé, já calçando os sapatos para fazer a ronda noturna. Quando cachorro acha que tem bicho perto, não sossega o facho.
José Gonçalves de Assunção, o Zé das Almas, se você perguntasse pelas veredas de Monte Santo, já não era mais tão novo e carregava no largo rosto vermelho, as marcas que o tempo havia lhe deixado. De costas arqueadas, olhar taciturno e mãos atrás das costas, ele seguiu até a porta da frente.
Na cozinha, os ponteiros do velho relógio mostravam as três horas exatas.
A hora do diabo.
Para muitos, tratava-se do momento derradeiro do conflito eterno entre as forças da luz e da escuridão. Para o Zé, contudo, aquela era a hora que ele devia visitar os mortos.
Você pode ver um quê de morbidez em tal hábito e, com efeito, ele o tem. Mas, por favor, tente entender que essa é uma tradição antiga entre os coveiros de Monte Santo e, como qualquer rito ou paradigma, deve ser mantido à risca, mesmo que não se saiba sua origem ou motivação.
Para o Zé aquela era a hora em que os mortos mais se angustiavam.
É na madrugada que as almas solitárias sentem-se mais apartadas e duvidosas de si e do local para onde devem ir.
Era, portanto, dever do coveiro, zelar por tais espíritos tresloucados.
No campo, ali perto, um pingo malhado pastava descompromissadamente, sem entender porque um ser humano acordaria àquela hora da madrugada.
O vento tangia as árvores, espreguiçando as folhas e mordiscando o orvalho que espraiava-se por todo o descampado. Nos mourões que pontilhavam a mangueira, onde o gado do seu Ivo Cerrado passava a invernada, famílias de sabiás se encarapitavam e construíam seus ninhos.
Logo que saiu pela porta da frente, o frio apertou, obrigando o Zé a se enrolar no cachecol, enveredando-se dentro do pesado casaco de lã que seu velho pai havia lhe deixado. Ajeitou a boina de feltro na cabeça e começou a jornada até o cemitério.
No tempo em que subia a inclinada estradinha de grimpas secas que levava ao cemitério, aproveitou para acender um palheiro e o meter entre os lábios, um velho costume herdado dos antigos.
Quase no cume do morro, o coveiro avistou a necrópole decadente que se erguia em meio à pesada bruma da noite serrana.
O Zé das Almas se esforçava ao máximo para cuidar do velho campo santo, mas o tempo, exímio atleta, já o havia alcançado, submetendo-o a um impiedoso descalabro.
A cerca de madeira cedera em alguns pontos, ao passo que as próprias lápides possuíam rachaduras aqui e ali. Uma parcela dos jazigos desabara sobre o peso do tempo, cobrindo os caixões com destroços de cimento e cobertores de hera.
Coroas de flores secas se espalhavam por todos os lugares como um inço. O ar pesava, com um odor pungente de morte.
Três vezes por semana, o Zé subia aquele morro para limpar os matinhos que cresciam nos cantos dos túmulos e se livrar das flores de plástico que os netos levavam aos avós na primeira semana de novembro.
As flores só não eram mais artificiais que a consideração daqueles que ali subiam apenas no Dia de Finados, quando mais não fosse por rito, pois assim aprenderam com seus pais que, por sua vez, aprenderam com os deles, hoje locatários daquele sítio.
Era assim que pensava o Zé das Almas, mas ele, como o próprio vivia dizendo, já viu passar muitas gerações por aqueles terras de Deus e pensava como alguém cujas costas sucumbiam ao peso da idade.
Era tarde da noite e o portão de madeira do cemitério já estava aberto.
Alguém havia chegado antes dele.
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