01 - Moura e Bragança

Em algum lugar do tempo

A cidade de Verdes Prados era conhecida por seus eventos gastronômicos. Todo ano, no mês de janeiro, tinha o festival do milho, quando tinha as primeiras colheitas.

A pequena Valéria rodou seu vestido azul escolhido pela babá, Maria. Olhou-se no espelho, ajeitou a fita vermelha no cabelo e conferiu os sapatos escolhidos para aquela ocasião. Depois, virou-se para a babá com um sorriso falhado e deu um abraço na mulher.

— Obrigada Maria!

— Mas temos que andar rápido viu? Seu pai não quer que fiquemos até tarde porque sua mãe tem outro evento mais tarde.

— Ah, Maria! Meu pai é um chato! — A pequena cruzou os braços e fez um bico, que deixou a babá ainda mais encantada.

— Deixa ele ouvir você falando assim! Vamos antes que fique tarde!

A casa dos Bragança na cidade ficava bem próximo do local do evento, que era no bairro central Andaluzia. A enorme propriedade cercada de muros altos e grandes vidraças, muito bem localizada num condomínio fechado, estava vazio naquela noite. A mãe Regina estava numa reunião de senhoras da alta sociedade na Paróquia da Cidade, e o pai Emanuel estava na fazenda junto com o filho João.

Maria acenou para o motorista e as duas entraram no veículo preto, modelo Vectra da marca Chevrolet do ano, que Emanuel havia trazido de São Paulo. Era o único modelo que tinha na cidade até então.

Valéria tinha os olhos brilhando à medida que se aproximava do centro da cidade. Toda enfeitada de luzes e cores, e o cheiro das comidas era um convite à parte. Dizia-se em Verdes Prados que não havia festival melhor na região. E que atraía visitantes do estado inteiro para ver as atrações e saborear as comidas típicas

O motorista parou próximo à Igreja da Matriz da Imaculada Conceição. Uma construção enorme em forma de cruz com espelhos esparramados do lado de fora que parecia que a mesma brilhava de longe.

Maria conduzia a menina pela mão, se esgueirando entre a multidão, admirando o sorriso que a garotinha tinha no rosto e o brilho que carregava nos olhos.

— Olha Maria! O que é aquilo? – A menina apontou para uma aglomerado de pessoas próximas a uma barraca.

— É o concurso de melhor pamonha de Verdes Prados. Vamos lá!

O famoso concurso era a atração principal do evento. Todos os anos um grupo era escolhido como a melhor pamonha de Verdes Prados. O cheiro que se esparramava no ar era de dar água na boca. Havia outras barracas: de curau, de milho cozido, bolinho de milho. Tinha até artesanato com a palha.

Valéria olhava tudo atentamente com seus olhos escuros como duas jabuticabas e um sorriso tão grande que mal cabia na boca. Em meio aquela multidão e a vastidão de luzes e cores, seu olhar encontrou o de um menino a alguns metros de onde estavam. O menino era branquinho, tinha olhos azuis que pareciam e os cabelos loiros dourados e lisos.

O menino retribuiu o olhar, a observando atentamente. A menina tinha longos cabelos crespos e tão pretos como a noite, de olhos castanhos escuros, pele negra e dentinhos tão brancos que pareciam pérolas, estava vestida com um vestido rodado na cor azul e sapatinhos vermelhos. Ela deu um sorriso para o menino que acenou com a mão e foi gentilmente retribuído. A garotinha não se lembrava de ter visto o menino de olhos tão azuis antes.

Ela seguiu até o menino e foi se aproximando devagar com um grande sorriso no rosto. Ser gentil fazia parte dela, a mãe havia lhe ensinado a sempre sorrir. "O sorriso de uma mulher vale mais que mil palavras de um homem.". Era o que Regina havia lhe ensinado. A menina se aproximou do loiro que tinha o sorriso bobo, falhado na frente.

— Valéria! – A babá a pega pelo braço e a arrasta para longe.

— O que eu fiz, Maria? – A garota perguntou, sem entender nada.

— Fica longe daquele menino, entendeu? Nunca mais chegue perto dele, ou converse com ele.

— Mas por quê?

Maria se abaixou diante da menina e tocou seus pequenos ombros — Ele é filho dos Moura. Mantenha distância dele. Os Moura e os Bragança são inimigos há mais tempo que consigo me lembrar. Seu pai nunca vai aceitar nem que chegue perto dele! Então, prometa para mim que nunca ouviu bem? NUNCA vai se aproximar dele de novo!

A menina tinha o olhar arregalado, os lábios gelados e tremia sem parar. Ela encarava a babá tentando entender o que acontecia ali. Maria respirava acelerado, ofegante. Quando viu a expressão da menina, ela reforçou. — Prometa!

— Tá. Prometo.

Maria levou a menina embora olhando para os lados para ter certeza de que não haviam sido vistos. Valéria Bragança, na época com 7 anos, ainda não entendia o que estava acontecendo. A única coisa que ela queria era ver aquele menino de novo e perguntar para ele se gostava de pamonha e por que os olhos dele eram da cor do céu. Era apenas isso e mais nada.

[...]

Há uma música (do Metallica) que diz "Life is ours, we live it our way" (A vida é nossa, nós a vivemos do nosso jeito). Entretanto, às vezes, vivemos como se tivéssemos cordas puxadas por alguém num teatro de marionetes. Valéria só iria entender o que o encontro com o menino de olhos azuis significava muito tempo depois.

O longo sermão de Maria na volta para casa soava como uma estação de rádio que a menina não fazia questão de ouvir e muito menos de entender. Nada daquilo fazia sentido para ela. Depois daquele dia, ela foi proibida de ir à festa do milho ou qualquer outro evento sem que os pais estivessem presente. E a babá ainda foi repreendida pela mãe.

Valéria olhava pela fresta da porta da cozinha enquanto a mãe gesticulava sem parar para Maria que mantinha-se de cabeça baixa.

— Não quero saber de ficar levando minha filha por aí sem minha autorização. Ela tem que ficar longe daquela gente!

— Isso não vai mais acontecer, eu prometo. Foi imprudência minha.

— Foi mesmo! Tem sorte de ainda ter emprego. Eu devia te demitir.

Regina deixou a babá ainda cabisbaixa e saiu batendo o salto agulha no piso bege brilhante da casa. Alta, olhos castanhos, a pele negra, os cabelos volumosos e cheios, usando um vestido preto de alta costura, as unhas vermelhas e joias de ouro. O batom vermelho vivo também era uma de suas características.

— Mamãe não gosta que espia por trás da porta. — A voz de João Emanuel chamou a atenção da pequenina. O menino era mais velho, já quase adolescente. Era alto para a idade e tinha o olhar entediado do pai.

— Ela tá brigando com a Maria. Mas ela não fez nada.

— Não se intromete nessas coisas, Val. Mamãe sabe o que está fazendo.

— Eu não gosto que briguem com a Maria!

— Então vai lá! Mamãe manda ela embora e fica pior.

— Idiota! Vou contar pra mamãe que vi você e o Daniel...

— Cala a boca! Você não sabe de nada!

João saiu pisando firme e entrou em seu quarto e bateu a porta. Depois disso, Valéria correu para seu quarto, fechou a porta e se escondeu debaixo do edredom. Sentiu apenas o perfume adocicado da mãe quando a mesma abriu devagar a porta, deu um beijo na testa da menina e depois saiu do quarto.

O assunto da festa do milho foi proibido desde então.

(...)

A família morava na cidade, e nos fins de semana iam para a fazenda Cascaveis. O enorme casarão de mais de cem anos, pintado de branco com janelas de madeira azuis. O telhado recém reformado de telhas coloniais e uma varanda que contornava toda a habitação com colunas de madeira maciça paraju. A casa teve todo o piso de tábua corrida trocado por piso cerâmico e as janelas também foram reformadas por modelos mais novos, mas ainda mantendo a arquitetura rústica.

O gramado à frente da casa se estendia por quase dez metros de frente, com dois ipês amarelos dando um charme ainda maior à propriedade. A estrada tinha uma fileira de um lado e de outro de eucaliptos e tinha uma porteira de madeira também azul na frente. Dizia que o primeiro Moura era um torcedor fanático do Cruzeiro e por isso pintou tudo que podia de azul e branco naquela fazenda. As terras eram imensas, longas fileiras de café de um lado e de outro, rodeados de montanhas com vegetação nativa. E ao fundo podia-se ouvir o barulho do riacho de águas cristalinas que ali corria. O bambuzal enorme indicava a fronteira entre as fazendas Cascavéis e Carcarás, um jeito fácil de indicar até onde podia ir.

Acima da porteira, na entrada da fazenda, um arco enorme com uma placa entalhada à mão, encomendado de Belo Horizonte, o nome da Fazenda: Cascavéis, com o desenho de uma serpente. As terras foram batizadas com este nome, pela enorme quantidade de serpentes da espécie encontrada na região. Com o tempo, as cobras foram sumindo. Diziam em Verdes Prados que foi obra de Pai Joaquim, rezador muito famoso naquelas bandas.

Valéria se divertia muito naquele lugar. Mal esperava chegar os fins de semana para poder ir para a fazenda. Lá ela brincava no gramado verde ou ia até o riacho, ela subia nos pés de manga ou brincava com seu amigo Ramon, que era filho do encarregado da fazenda, Sebastião, o Tião.

Naquela manhã, a garota, entretanto, foi sozinha até o rio, porque Ramon estava ajudando o pai com algumas tarefas. O local tinha árvores por todos os lados e uma brisa fresca que deixava o lugar ainda mais agradável. Valéria pegou algumas pedrinhas e começou a jogar no rio só para ver os lambaris agitados. Ela sentou-se na beira do riacho e ficou ouvindo o correr das águas e o som do cantar dos pássaros. Até avistou um ninho de andorinhas. Despercebida, ela não notou que não estava mais sozinha, quando seu olhar percorreu pelo rio, avistou do outro lado o menino daquele dia: cabelos loiros dourados e olhos tão azuis quanto o céu.

O menino meio arredio ficou encarando a encarando. O menino era magricela, tinha uma janelinha, usava uma camisa do Atlético que a fez franzir a testa, uma bermuda de tactel e estava descalço com as canelas cinzentas, fora os ralados nos joelhos. Ele atravessou saltando pelas pedras para o outro lado e se aproximou devagar. A menina hesitou, lembrou-se da advertência da babá. Mas só falar com ele não tinha mal, tinha? Era só dizer para ele ir embora.

— Oi. — Ele disse se aproximando da menina

— E-eu não posso falar com você! – Valéria sentindo o rosto queimar e desviando os olhos

— Me disseram que eu também não posso falar com você, mas eu não ligo para isso. Você liga?

— Vai embora!

— Eu não! Vai você! Aqui também é minha casa.

— Não é nada!

— É sim!

— Não é não!

— É sim!

— Eu não vou falar com você!

— Já tá falando, uai!

— Eu... — Valéria parou e ficou pensativa. Ele não estava errado, de fato eles já estavam se falando. Será que isso conta na hora de contar para a Maria? Ele olhou para ela com os grandes olhos azuis e disse numa calma que chegava a ser palpável.

— Eu não estava no dia da briga. Não sei o que aconteceu.

— O que tá falando menino feio?

— É, uai. Eu não tava lá. Você tava? – Ele perguntou tentando levar a mão à enorme cabeleira cacheada de Valéria.

— Não... Tira a mão, moleque!

— Huuum. Minha mãe me disse pra ficar longe de você. Aí eu perguntei porquê, aí ela ficou brava comigo, aí fugi para cá. Aí te vi aqui quando andava pelo riacho.

— E o que quer?

Ele levou a mão no bolso da bermuda e tirou uma fita vermelha. — Você deixou cair isto aqui. – O rosto dele ficou levemente corado.

Valéria pegou a fita nas mãos dele e deu um sorriso de leve. — Brigada. A Maria diz que é perigoso andar por aí sozinho.

— Você também está andando sozinha.

— É, mas o Tião está logo ali consertando a cerca.

— Eu fugi de lá de casa; minha mãe... fica brigando com a gente. — Ele abaixou o olhar e ficou pensativo.

— Você tem que voltar pra lá. Seus pais vão ficar bravos com você.

— Sei não... Eles tão ocupados demais. Tão sempre ocupados.

— Mesmo assim, aqui tem muita cobra nos matos. Maria diz isso pra mim.

— Tá bom, então eu vou indo. — Ele disse com as mãos no bolso.

Valéria, então, lembrou-se de algo que ela queria muito perguntar no dia do Festival do Milho.

— Ei! Menino!

— Eu tenho um nome! – Ele disse, irritado.

— Mas você não disse, bobão!

— E você não perguntou!

Os dois desviaram o olhar. De soslaio ele viu um "bico" crescer nos lábios da menina. — Se me perguntar, eu digo meu nome pra você. – Ele disse, ainda tentando não olhar para a menina.

Ela encheu as bochechas com ar e depois soltou. — Qual o seu nome? – Ela perguntou, ainda de bico.

— É Romero. — Ele respondeu sorrindo e depois ela ficou olhando para ele, e depois franziu o cenho. — Que foi?

— Não vai perguntar?

— O quê?

— O meu nome! – Ela disse batendo o pé no chão.

— Eu? Não, pra que?

— Idiota! Bobão!

— Eu não perguntei porque eu já sei.

— Sabe nada. – Ela cruzou os braços.

— Sei sim.

— Não sabe.

— Claro que sei... É Valéria, não é?

Ela sentiu as bochechas esquentarem e depois desviou o olhar ao ver a intensidade do azul dos olhos dele.

— É...

— Viu? Eu disse. – Ele tinha um ar de deboche natural. – E o que você queria?

— Nada!

— Você que me chamou.

Ela ficou meio sem graça, mas não ia ficar curiosa. — Você gosta de pamonha?

— Era só isso? Bom, todo mundo gosta de pamonha.

— De doce ou de sal?

— Pamonha de sal nem é pamonha.

— E... por que seu olho é tão azul? – A menina perguntou enrolando a beirada da blusa e olhando para baixo.

— Não sei.Acho que o papai do céu quis assim.

A menina sorriu, depois viu o garoto se afastar e acenou de longe. Talvez fosse a última vez que o visse. Se sentiu triste, seria bom fazer um amigo, mesmo que ela não gostasse da camisa do time rival que ele vestia, mas isso não tinha problema.

[...]

Na semana seguinte ela voltou. Mal podia esperar para poder ver o menino outra vez. Mas como Maria já havia a advertido, ela pensou que seria melhor esperar mais um pouco. O pai dela, Emanoel parou a caminhonete em frente à casa e a família desceu. Regina tentava se equilibrar com o salto no gramado molhado da chuva da noite anterior, João ouvia música num discman da Sony que tinha ganhado de aniversário. Valéria corria na frente sorridente.

— Espera, Val! — Maria gritou para a menina que já subia a escadaria.

Maria era uma mulher jovem, devia ter uns trinta anos no máximo. Tinha cabelos castanhos ondulados, pele morena, era baixa, de quadris largos, braços fortes e rosto redondo. Regina sempre dizia que ela devia dar um jeito de fechar a boca para ver se perdia um pouco de peso. Mas a mulher pouco se importou com o que a patroa dizia.

— Bem que podíamos mandar cimentar essa frente. — Regina disse ajeitando a bolsa de couro nos ombros.

— Já não tem concreto o suficiente onde moramos? Vem aqui uma vez por semana e ainda reclama? — Emanoel disse ajeitando o chapéu. — Tira essa droga do ouvido, garoto!

— Deixa o menino Emanoel! — Regina repreendeu o marido. Sempre tentava amenizar a situação com João, mas na maioria das vezes o diálogo era algo muito difícil com Emanoel. Quase impossível na verdade. João ignorou o pai e seguiu para dentro da casa. Passava a maior parte do tempo calado e cabisbaixo.

A família entrou na casa que já tinha as janelas todas abertas pela Conceição, que era esposa de Tião, encarregado da fazenda. Regina entrou rebolando e se jogou no sofá da casa, e apoiando a cabeça na almofada com capa de crochê. A mulher soltou um suspiro e colocou a bolsa sobre a mesa de centro e deitou-se sem tirar os sapatos.

— Conceição! Minha cabeça está estourando! Traz meu remédio! — A dona da casa ligou para a empregada que veio logo em seguida com um analgésico e um copo d'água.

Emanoel não esquentou nem lugar e já saiu em direção à porta dos fundos que dava para a varanda e um área gourmet, onde tinha uma churrasqueira de pré-moldados, uma pia de granito preto com bojo inox e uma enorme mesa de madeira de demolição encomendada a um amigo de longa data de Emanoel. O homem pegou as esporas penduradas na coluna de madeira e calçou as botas.

— João! Vem aqui moleque! — O grito do pai do lado de fora estremeceu a casa inteira. Regina sabia que com os fones o menino jamais iria escutar e para evitar mais uma surra, ela acenou para Conceição que já sabia o que a dona queria.

A mulher correu até o quarto de João e bateu insistentemente na porta, João surgiu com o rosto assustado e tirou os fones dos ouvidos. — Seu pai tá te chamando.

— Ele sabe que eu detesto andar a cavalo e ficar no meio do mato. — O menino voltou para dentro batendo os pés.

— Anda João! Se não, seu pai te dá outra coça. — Conceição disse sussurrando.

O menino obedeceu e saiu do quarto com os ombros caídos, arrastando o pé pela casa. O pai já aguardava impaciente do lado de fora olhando o relógio de pulso de cinco em cinco minutos. — Tira esse pé do chão moleque! A gente ainda vai andar longe! Tião já até arreou os cavalos!

— Papai, eu posso ir? — Valéria chegou correndo e se jogou no colo do pai.

— Já te falei que isso é coisa de homem, meu anjo! A Maria vai te ensinar a fazer crochê, cozinhar, pintar tecido.

— Aaaahh papai. — Valéria ficou emburrada e depois Maria saiu guiando a menina para longe do pai.

Os dias na fazenda eram assim, Emanoel saía com João a cavalo e davam uma volta na enorme propriedade com quase 300 mil hectares de terra. Uma das maiores da região, todos os dias dezenas de trabalhadores desciam no ônibus do Zé turmeiro para panha, desbrota e adubação, era serviço o ano inteiro. Eles olhavam os pés de café, o terreirão e o maquinário. Enquanto isso, Regina passava o dia deitada, reclamando ou importunando Conceição. E Valéria ficava brincando no pomar no fundo da casa ou no gramado em frente à casa. Ramon já até aguardava a amiguinha para poder mostrar a ela os filhotes que tinham acabado de tirar da Gertrudes, a gansa de estimação de Valéria que ela mesmo tinha escolhido o nome.

O menino era um moreno que representava bem o contraste da genética da mãe, Conceição, negra de cabelos crespos e cheios, de braços fortes e do pai, Tião, de pele clarinha, cabelos castanhos claros e olhos "gateados". O sorriso dele se abria toda vez que via Valéria.

— Vem Val! A Gertrudes teve 10 gansinhos!

— Que legal!

— Não vão muito longe! — Maria disse ao ver a menina correr para o quintal.

Os dois ficaram de olho na mamãe ganso por um tempão quando ela seguiu para o rio. Valéria tinha os olhos brilhando. O pomar que tinha no fundo da casa tinha frutas de todo tipo e cerca de 20 pés de jabuticaba, além de manga espada, manga rosa, coração de boi, manga coquinha.

— Ramon! Vem aqui ajudar o pai! — Tião gritou para o menino que saiu cabisbaixo sem querer ir.

— Val, fica de olho nela, viu? Se não vai perder ela entrando na água.

— Tá!

A menina continuou olhando e seguindo a mamãe gansa até o rio. Quando já estava bem próxima, ela se escondeu atrás de uma moita e ficou olhando a gansinha entrar com os filhotes e depois foi se aproximando devagar, pé por pé.

— Ela já te viu há um tempão. — A voz de Romero fez a menina dar um pulo.

— Ai que susto menino feio! Tá fazendo o que aqui? Mora aqui por acaso?

— Eu vim pescar lambari.

— Duvido que sabe pescar!

— Claro que sei, meu pai que me ensinou! Olha aqui! — Ele virou o balde branco pequeno desses que vem doce de leite na direção da menina e mostrou cerca de seis lambaris menores que o dedo indicador do pescador.

— Ihhhh, pegou foi nada!

— Quer que eu te ensine? — Romero abriu o sorriso falhado para Valéria, que cruzou os braços e balançou o ombro de forma desdenhosa. Seu pai certamente jamais ensinaria ela a pescar. — Quer ou não?

— Quero!

— Então vem cá! — Romero acenou para Val que correu para o outro lado do rio, saltando sobre as pedras.

— Você só tem essa camisa feia listrada? — Ela apontou para a camisa do Atlético que era a terceira da extensa coleção de Romero.

— Ihhh camisa feia nada! É a camisa do Galo!

— Por isso mesmo!

Romero entregou a Valéria a varinha de bambu e ficou mostrando como havia aprendido. Os dedos sujos de terra de quem estava pegando minhocas no pedaço de garrafa pet cortada. Valéria fez uma careta quando o menino cortou o pedacinho da isca com o dente.

— Eca! — Valéria botando a língua para fora.

— Ihhh, se tem nojo de minhoca não vai pescar nunca!

— Mas não vou fazer isso nunca!

— Fresca!

— Você que é!

Apesar das constantes provocações, a tarde foi divertida para ambos que nem viram o tempo passar. Romero ria de Valéria que perdia todas as iscas e do medo de tirar o lambari do minúsculo anzol.

— VAL! — A voz de Maria despertou a menina do momento feliz que entregou a varinha para Romero e saiu correndo.

— Tenho que ir Romero!

— Você volta quando?

— Na semana que vem!

Valéria correu na direção de Maria tentando disfarçar a traquinagem. As mãos estão sujas de terra, a sandália branca estava o puro barro e o short rosa mais sujo ainda. Maria ao avistar a menina correu até ela desesperada.

— Onde você tava? Se sua mãe ver você nessa sujeira eu e você estamos perdidas!

— Eu fui atrás da Gertrudes.

— Tem que ter cuidado meu amor. Vamos pra dentro tomar um banho. Vai ter que ficar de molho para tirar essa terra debaixo das suas unhas!

Valéria ainda deu uma olhadinha para trás, mas já estava longe demais para ver o amiguinho. Ela manteve segredo, se seus pais soubessem que estava com Romero eles iriam ficar bravos e repreender Maria mais uma vez. E ela não queria isso.

(...)

Na semana seguinte ela voltou à fazenda. Deu um pouco mais de trabalho para despistar todo mundo e ir até o rio. Aproveitou que Maria estava entretida conversando com Conceição sobre um rapaz que havia conhecido na feira agropecuária. Quando Valéria chegou ao rio, Romero ainda não tinha chegado e ela ficou procurando por ele atentamente.

— Tô aqui! — Ele surgiu com um álbum de figurinhas.

— Que isso aí?

— Um álbum da copa. Quer ver?

— Quero!

A amizade nasceu em pequenos detalhes. Uma conversa ou outra jogada fora. A coleção de cartões de orelhão dela, o álbum de figurinhas dele, ela levando manga na blusa para ele, ou jabuticaba, ele trazendo rosquinha de nata da sua casa. E assim se passou muitas semanas sem que nem soubesse da amizade entre Valéria e Romero.

Porém, há um ditado que diz que nada neste mundo fica encoberto para sempre. Maria começou a desconfiar dos sumiços da menina e ficou preocupada. Ela era de responsabilidade dela, já que a mãe passava o dia deitada porque não queria ter trabalho com nada, nem mesmo criar os filhos. Isso era tarefa da babá, que nas palavras dela, "ganhava muito bem para isso".

Naquela tarde depois do almoço, ela viu Valéria aguardar todo mundo tirar o cochilo habitual de depois do almoço e ir até a cozinha e pegar broa de milho e colocar dentro de uma sacolinha do Supermercado Andrade. Muito famoso em Verdes Prados. Ela despistou e andou pé por pé atrás da menina que correu pelo pomar até o rio.

Quando foi se aproximando, ouviu risos e voz de criança. Ela começou a sentir o frio percorrer pela espinha, principalmente quando viu o sol bater na cabeleira loira do Moura. Os dois sentados na beira do rio comendo broa e tomando suco de goiaba que ele tinha trago da casa dele. Uma cena que Maria jamais iria esquecer. A felicidade de duas crianças inocentes que nada sabiam da vida, que apenas queriam compartilhar brincadeiras e risos e comer broa de milho. Ela algo que ela não queria acabar, não ao ver o sorriso de Valéria, mas se o pai dela descobrisse seria muito pior e iria sobrar até para o menino que também nada tinha a ver com aquela história.

Ela deu passadas largas na direção de Valéria e pegou a menina pelo braço. — Vem Val, vamos embora!

— Me solta! Maria! Não fazendo nada de errado!

— Não pode conversar com esse menino! – Maria estava desesperada, ofegante, trêmula.

— A gente não tá fazendo nada de errado. – Romero disse segurando o braço de Maria.

— Maria! – Valéria chorava se debatendo enquanto tentava se livrar do apertão no braço.

— Val! – Maria disse brava. – Se insistir, eu vou contar para o seu pai!

— Mas senhora... — Romero começou a dizer.

— E conto para o seu pai também!

Romero arregalou os olhos ao ouvir a ameaça da babá e soltou o braço dela e saiu correndo para o outro lado do rio.Valéria se assustou e começou a chorar incessantemente. Ela ainda olhou para trás enquanto era puxada por Maria. A única coisa que ela queria era poder ser amiga de Romero, independente da família que ele pertencesse.

Maria levou a menina de volta para a casa morrendo de medo de alguém ter visto os dois juntos. Como a rixa era antiga era comum as pessoas sempre comentarem. Onde um Moura estivesse, um Bragança jamais estaria e vice-versa. O choro da menina ecoou por toda a casa chamando a atenção de Conceição e Regina.

— Que barulheira é essa? — Regina perguntou abrindo os braços.

— O patrão tá aqui? — Maria perguntou olhando ao redor.

— Saiu com João. Por que Maria, fala logo!

— Peguei a Valéria de conversinha com o menino Moura.

— Mamãe, eu não estava fazendo nada! A gente tava só brincando! Eu juro! — Valéria ainda se debatia enquanto era puxada por Maria até o encontro da mãe.

— Não nos misturamos com aquela gente! Quantas vezes vou ter que repetir isso pra você? Como pode deixar isso acontecer, Maria?

— Não percebi que ela estava fugindo para o rio, me perdoe por isso, dona Regina. — Maria disse de cabeça baixa.

— Eu devia contar para o Emanoel, e despedir você. Mas vou te dar essa colher de chá. Leva a Val para o quarto e a partir de hoje ela não dá um passo sem seu saber!

— Sim senhora!

— Mãe! Por favor! Mãe! — Valéria ainda chorava de soluçar enquanto era levada pela babá.

A mãe soltou um suspiro pesado e se jogou no sofá. Conceição ficou ao lado dela olhando a menina chorando pela casa e se virou para a patroa. — Eu não devia dizer isso, mas apenas crianças.

— Eu sei Conceição... E isso me incomoda também, mas você conhece o Emanoel. Foi a primeira coisa que ele me disse quando nos conhecemos, se eu tivesse vínculo com qualquer Moura, eu tinha que cortar imediatamente ou nós não teríamos nada.

— Entendo. Eu vou lá terminar o pão de queijo. — Conceição disse jogando o pano de prato no ombro.

Regina seguiu até o quarto de Valéria, parou na porta pintada de azul com detalhes em flores e a placa com o nome da menina. Ela abriu a porta devagar e viu Maria tentando consolar a menina que chorava de soluçar. Regina acenou para a babá e ela saiu logo em seguida e deixou que a mãe fizesse o trabalho que lhe pertencia ao menos uma vez na vida.

— Val, meu bem? — Ela sentou- se ao lado da cama da garotinha, que estava abraçada a um coelho de pelúcia. — Val, conversa com a mãe. – Regina acariciou os cabelos de Valéria.

— Por que mãe? O Romero é tão legal.

A mãe deu um suspiro pesaroso e pensou na melhor frase para aquele momento. — Meu amor, tem outros amiguinhos. O Romero Moura é de uma família inimiga da nossa...

— Mamãe... eu não quero outros amiguinhos.

— Os Bragança e os Moura são inimigos, Val... Isso nunca vai mudar. Apenas obedeça.

— Eu só queria brincar com ele, comer pamonha e correr na beira do rio. Era só isso, eu juro.

— Eu sei meu amor. Mas o papai não aceita tá.

Valéria nunca entendeu. Ela só queria poder brincar mais uma vez com o menino Romero. Não importava o sobrenome dele. Mas nada era tão simples entre os Moura e os Bragança, no fim sempre terminava numa briga interminável.

[...]

Do outro lado a vida também não era um mar de rosas. A casa dos Moura também era na cidade e assim como os Bragança iam para a fazenda Carcará apenas nos fins de semana. A fazenda só perdia para a rival Cascaveis em extensão e havia tantas cabeças de gado que longe só se via os pontos brancos do gado nelore. Além das vacas leiteiras premiadas. A casa era uma casa também tradicional e muito antiga que foi reformada em tons mais modernos com vidraçarias altas. Um lance de escadas na frente com varandas, telhado colonial branco, a entrada era limpa e tinha apenas pasto de um lado e de outro.

Ali, o time do coração era o rival Atlético Mineiro e tudo ali tinha alguma referência em preto e branco. Seja nos inúmeros quadros, esculturas e bonequinhos do mascote, seja na bandeira enorme estendida bem na entrada. A mobília era em sua maioria de madeira e couro marrom. Tudo ali parecia escuro. O chão ainda era de tábua corrida, mas envernizada e bem tratada que brilhava como porcelanato.

Do lado de fora, um bananal enorme, pés de manga, um açude. Mais afastado tinha as residências dos vaqueiros e retireiros, um barracão para o gado, paiol, galinheiro. Além da construção do que futuramente seria um laticínio.

Romero chegou em casa chateado com a situação com Valéria. Eles não estavam fazendo nada demais. Ele entrou descalço pela casa, como andava na maioria das vezes, pegou um pão caseiro que Dolores a empregada da casa na fazenda tinha feito e deitou na rede e ficou balançando sem parar.

A mãe estava no quarto como sempre com dor de cabeça, e o pai estava na cidade. Tinha ido só de passagem para ver como estavam as coisas e voltou para a cidade. Dolores ao ver a inquietação do menino se aproximou dele.

— Que aconteceu Romero? – Dolores já era mais velha, tinha cabelos grisalhos e um rosto com aspecto de sofrida. De quem trabalhou desde muito cedo. Ela e o marido tomavam conta da fazenda enquanto o patrão estava fora.

— Nada.

— Eu te conheço.

— Eu não posso brincar com a menina do outro lado do rio.

— Tá falando da Bragança? Menino, se seu pai descobre que você chegou perto daquela menina, ele te mata!

— Isso tudo é bobagem.

— Olha essa boca menino! E sua mãe tá vindo aí melhor nem tocar neste assunto.

— Dodô... — Romero começou a dizer entristecido. — Eles brigaram de novo, né?

— Seu pai e sua mãe são adultos, logo eles vão se entender. Agora vai lá tomar um banho porque você tá parecendo que porco que fuçou na terra.

Era difícil para Dolores explicar ao menino ainda tão jovem que os pais brigavam todos os dias e que isso certamente não iria mudar. Inês passava os dias tentando disfarçar a infelicidade do casamento e mostrando aos demais que os Moura tinham um lar feliz.

Mais tarde, Dolores preparou o jantar e pôs a mesa para a família. Inês pediu para que aguardasse para servir pois estava aguardando o marido para comerem juntos. Depois de tanto aguardar, resolveu jantar sozinha junto com Romero. A mãe soltou um suspiro pesado e olhou o relógio de pulso, já passava das oito da noite e Valter ainda não tinha voltado. Algo rotineiro naquela família. Inês tinha os mesmos traços de Romero, era loira, de olhos verdes, os cabelos dourados ela mantinha sempre acima dos ombros e tinha sempre uma expressão de cansaço e olheiras profundas. Não gostava de roupas extravagantes, e estava sempre vestida com roupas confortáveis. A fofoca que corria em Verdes Prados era que quando ela chegou na cidade, vinda de Belo Horizonte era uma das mulheres mais bonitas que tinha na cidade.

— Filho, não brinca com a comida. — Inês disse olhando o filho jogar a almôndega de um lado para o outro com um garfo.

— Mãe... por que nossa família é inimiga dos Bragança?

A mãe parou o garfo no ar e ficou olhando para a refeição pensando no que dizer ao filho. Não era a primeira vez que o filho fazia aquele questionamento, mas sempre tentava desviar o assunto. Se Valter soubesse disso com certeza iria repreender o menino sem necessidade.

— Bem... para ser sincera, não sei. Só sei que já dura mais de 100 anos, e seu pai não pode nem ouvir falar em Emanoel Bragança. Mas por que a pergunta, filho?

O menino ia dizer, mas resolveu deixar pra lá. — Nada não, mãe. – O menino notou a mãe triste. – Que foi mãe?

— Nada filho. Só coma. Tá bom?

— Mãe, o pai não vai comer com a gente hoje de novo?

— Filho, seu pai é muito ocupado.

— Ele ficou de andar a cavalo comigo. E a gente já vai embora amanhã a noite.

— Pede o Joaquim, seu pai não tem tempo para essas coisas.

A tristeza de Inês era frequente, principalmente quando o marido chegava em casa tarde, cheirando a bebida e perfume de mulher. Valter não era um pai presente e um marido menos presente ainda. Assim era a vida dos Moura.

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