Capítulo 2 | PARTE 2
Os dias após do acidente de Thomas passaram rápido. Todas as novas pessoas estavam se adaptando bem e trabalhando dentro e fora da comunidade, e o novo médico havia ganhado um consultório secundário ao lado do de Harlan.
No dia seguinte que eu o vi, me surpreendi com sua mudança. No dia em que ele socorreu Thomas, tudo que eu vi foi barba, cabelos desgranhados e sujeira, muito diferente do que vi na manhã seguinte.
Ele estava limpo, barba feita e cabelos cortados, e ele era realmente um homem muito bonito e absurdamente elegante. Parecia até uma piada dizer que existia alguém elegante nos dias de hoje, mas a forma dele gesticular, falar e se portar eram absolutamente fluídas e naturais. Ele também tinha um sotaque inglês leve, que me levava a crer que ele não era americano.
- O que achou dele? - Paul perguntou e só aí vi que eu estava encarando-o como uma psicopata. Dei os ombros, disfarçando. Paul riu.
- Parece ser uma boa pessoa.
- Parece mesmo - Paul concordou, resmungando alto quando tirou uma caixa pesada da carroça e colocou no chão.
- O que tem aí? - perguntei quando ouvi um barulho de vidro batendo. Ele abriu um sorriso.
- Cachaça de amora.
- Ah, mas eu quero uma garrafa - eu disse e agachei para pegar uma.
- Paul! - Glenn gritou e acenou com os dois braços no ar - Preciso de uma ajudinha aqui!
- Você pode levar essa caixa pro estoque, por favor? - ele perguntou e eu assenti.
- Vai lá.
Ele chamou outro homem para decarregar o resto das caixas e eu peguei a que ele me pediu para levar. A caixa de madeira era mais pesada do que eu pensei, mas eu a levantei pelas alças de corda e comecei a caminhar para o estoque.
Quando estava chegando na esquina do corredor onde ficava o primeiro estoque, eu levantei minha perna para apoiar a caixa pesada na minha coxa porque meus músculos estavam queimando, mas foi quando um par de mãos apareceu ao mesmo tempo que sua voz.
- Eu ajudo - Benjamin disse, pegando a caixa das minhas mãos.
- Obrigado - eu sorri e liderei o caminho, logo abrindo a porta da sala de estoque - Pode por ali - eu apontei para a terceira prateleira da estante de ferro.
- Como está Thomas? - ele perguntou enquanto colocava a caixa lá e então ficou de frente para mim.
Ele era alto e, embora magro, tinha músculos bem feitos, pelo menos era isso que dava para perceber por cima da camisa, e assim, tão próximo, ele era desconcertantemente atraente.
- Está bem e de castigo - eu disse e ele sorriu. Meu pulso latejou mais forte em minhas veias. Seu olhar fez isso, ou talvez seja o leve sorriso, como se eu tivesse sendo avaliada de alguma forma. Eu ainda não poderia dizer o que.
- Ele é um garoto e tanto.
- Pois é, nem me fale. Estão se adaptando bem, você e seus amigos? - perguntei enquanto caminhávamos para fora da sala apertada.
- Melhor impossível. Um lugar como esse - ele gesticulou ao redor enquanto caminhávamos pelo corredor - Isso é o verdadeiro paraíso na terra depois de tanto tempo lá fora.
- Eu sei bem como se sente - eu disse, diminuindo o passo até que paramos - Mas nós também demos sorte de encontrar você. Obrigado por ter ajudado Thomas, de verdade.
- Não fiz mais que meu dever - ele disse humildemente, e nós caímos em um silêncio desconfortável.
- Você quer jantar lá em casa hoje, comigo e com Thomas? Um convite de agradecimento por ter salvado ele - eu disse de repente, talvez até um pouco empolgada demais.
Os cantos de seus olhos apertam-se com uma sugestão de consideração cuidadosa, e eu tive certeza que ele iria negar.
- Eu adoraria - disse ele, sorrindo um pouco daquele jeito sutil que era invejável.
- Tudo bem, então. As sete?
*
- O que você acha do Benjamin jantar aqui? - eu perguntei para Thomas, que estava sentado a mesa com seus cadernos enquanto eu enchia um copo de suco para ele.
- E porque você convidaria ele? - ele questionou, franzindo as sobrancelhas daquele jeito que deixava uma marca bem entre elas.
- Porque ele te salvou - eu entreguei o suco a ele, que respondeu antes de beber um gole.
- É claro. Ele é médico, fez um juramento - disse como se fosse óbvio.
Ele não era fã de interações sociais, e mesmo que estivesse perfeito para mim viver só nós dois para sempre, eu sabia que era um erro criá-lo assim, sozinho. Um dia eu não estaria mais aqui e ele tinha que ter amigos e saber conviver com as outras pessoas.
- Acho que vai ser legal, sabe? Você poderia fazer várias perguntas para ele - eu tentei convencê-lo.
- Você está interessada nele? - ele perguntou enquanto escrevia, e eu fiz uma careta.
- Não, pelo amor de Deus - eu meio que ri e peguei o copo de suco, agora vazio e coloquei na pia.
- Você nunca namorou com ninguém depois do meu pai? - ele perguntou assim que eu me virei novamente.
Eu praticamente senti minha língua amarrar um nó na minha boca ao ouvir isso. Tudo para ele era uma deixa para esse assunto.
- Eu estive muito ocupada com outras coisas - eu finalmente consegui, soando rouca mesmo para os meus próprios ouvidos.
- Qual era o nome dele?
- Thomas... - eu avisei, querendo cortar a conversa por ali mesmo.
- Ele vive em Alexandria, por isso você não quer me levar lá? - ele insistiu.
- Não é por isso - eu comecei, mas ainda não conseguia pensar em nenhuma razão para dar a ele.
Thomas levantou o olhar para o meu novamente e eu me senti balançando para a frente ligeiramente, como se eu estivesse caindo em seus olhos, pega na minha própria mentira.
- Você acha que ele não vai gostar de mim? Pelo menos ele sabe que eu existo?
- Já chega! - soltei abruptamente antes que eu pudesse fechar a distância entre nós e bater as mãos na mesa, surpreendendo até a mim mesma.
Nós piscamos um para o outro sem expressão por um momento - eu nunca sequer tive porque levantar a voz para ele, e agora aqui estava eu, descontrolada por causa de algumas perguntas. Aquele fantasma me perseguia mesmo depois de todos esses anos, espreitando por cima do ombro, pronto para dar o bote.
Mas de todos, Thomas era o único que não tinha culpa ou motivo para que eu descontasse minhas frustrações.
- Olha só, meu amor - acrescentei com mais calma e puxei uma cadeira para sentar ao seu lado.
Ele parecia um pouco deslocado e eu não o culpava.
- Seu pai me magoou muito - eu soltei, totalmente mortificada ao ouvir isso vindo da minha boca. Eu segui em frente corajosamente de qualquer maneira, levantando meu queixo em um aceno de cabeça afiado - Eu sei que você tem curiosidade sobre isso, mas ele não vai fazer parte das nossas vidas, nunca.
- Porque?
Eu tive que limpar minha garganta duas vezes antes que pudesse sair.
- Porque ele não é um bom homem. Ele fez muito mal as pessoas e...
- Ele foi mandado embora? - ele perguntou e eu concordei. No momento, essa era a melhor explicação. Se ele soubesse que seu pai estava preso, as perguntas continuariam até que ele pedisse para conhecê-lo, e isso não aconteceria de jeito nenhum.
De todas as coisas que eu achei que ele fosse falar ou fazer, eu não esperava por isso. Ele simplesmente assentiu, mais para si mesmo do que para mim e fechou o caderno.
- Obrigado por contar - ele disse quando se levantou da cadeira e olhou para mim - Sinto muito por ele ter te magoado.
Isso me quebrou. Como eu pude ter tido um ser humano tão compreensivo ao ponto dele se desculpar por algo que sequer tinha culpa, mas fez porque sabia que me deixava triste? Thomas era tudo o que me manteve firme todos esses anos e a cada dia que passava, eu tinha mais orgulho do caráter desse pequeno homem.
Eu sorri, segurando as lágrimas e agachei a sua frente, segurando seus ombros.
- Não foi culpa sua. Você é a melhor parte da minha vida - eu o abracei, tão apertado que ele se contorceu.
- Eu não quero que ninguém te magoe de novo, mãe - ele murmurou, ainda abraçado a mim.
*
- Uva ou hortelã, meu amor? - eu perguntei, mostrando os dois fracos de shampoo para Thomas.
Eugene havia desenvolvido a fórmula - não limpava tanto quanto os do mundo antigo, mas servia.
- Hortelã - ele disse, esticando o braço para fora da cortina do chuveiro e eu entreguei o frasco a ele.
- Vou te esperar lá fora - eu avisei e saí do banheiro para escolher uma roupa para ele.
Thomas havia concordado com o jantar - na verdade ele só deu uma mexida de ombros, porque apesar de não demonstrar abertamente, ele estava perturbado pela conversa de mais cedo.
- Sabe no que eu estava pensando? - eu perguntei quando agachei a sua frente para pentear seus cabelos - Em nós dois irmos até Alexandria amanhã cedinho.
- Você vai me levar até lá? - ele perguntou fervorosamente, embora definitivamente houvesse incerteza em torno das bordas, e eu odiava ouvir isso.
- Se você ainda quiser ir.
Thomas sorriu para mim brilhantemente, todas as fileiras de dentes brancos iluminados de alegria.
- Eu quero.
- Então nós vamos - declarei com firmeza, me sentindo imprudente e um pouco tonta.
Mas o que as mães faziam se não se sacrificar pelos filhos?
*
O jantar foi calmo. Thomas fez muitas perguntas e Benjamin respondeu a todas, com uma atenção e serenidade invejáveis. Ele tinha muito jeito com crianças, era engraçado e tinha muito traquejo. Mais tarde, Thomas pediu para eu colocá-lo na cama pois queria estar descansado para a viagem de amanhã. Ele estava muito empolgado e eu me sentia meio nervosa só de pensar em voltar lá, mas iria. Por ele.
Quando desci, Benjamin estava parado em frente ao mural de fotos que ficava na sala. Eu tinha uma bagunça de fotos lá, desde minha gravidez até os dias de hoje. A maioria era de Thomas e eu, mas também de Carl com Judith, Paul e meu irmão e Michonne.
- Eu ainda vou organizar tudo, eu juro - eu brinquei quando cheguei até ele e entreguei um copo de bebida.
- Belas fotos - ele disse, apontando para Rick, sorrindo em uma das fotos - Seu irmão?
- Sim, como sabe?
- Os olhos são iguais.
Eu gesticulei para que se sentasse, e ele o fez, não tão perto nem tão longe, uma distância respeitável que me deixou confortável.
Ele era excepcionalmente bonito, encantado com uma energia tranquila e reconfortante que eu nunca tinha experimentado antes. Eu não podia fazer nada além de olhar, o que significava que nenhum de nós fez nada por alguns segundos, enquanto ele esperava que eu falasse, e eu fiz.
- Então qual sua história, Benjamin?
- Por favor, me chame de Ben - começou, falando sem um único gaguejar e com plena confiança, e tudo o que eu podia pensar era que ele era um verdadeiro gentleman.
- Tudo bem - eu sorri depois de beber um gole do meu copo - Qual sua história, Ben?
- Minha história? - ele diz suavemente, seu olhar brevemente patinando sobre o meu antes de percorrer a sala mais uma vez.
- Todos tem uma história triste.
- Você gosta de ouvir histórias tristes? - ele pergunta, com um rápido lampejo de sorriso com dentes que brilhavam na luz fraca das lâmpadas. Mas então ele franziu a testa, os vincos parecendo um pouco mais suaves do que uma careta.
- Eu gosto de conhecer as pessoas.
Ele deu pequeno sorriso e baixou as pálpebras, girando o líquido em seu copo antes de beber um gole, dessa vez olhando para mim.
- Eu era médico em Seattle - ele começou - Fazia o que amava, era casado com a mulher da minha vida - sua voz tremeu um pouco quando ele falou isso, e eu me senti um pouco mal por ter começado esse assunto, mas ele foi em frente - Eu não tinha nada para me preocupar ou reclamar, exatamente nada.
- Os problemas de antes não são nada comparados com os de hoje - eu comentei e ele assentiu com um pequeno sorriso.
- Eu tinha uma vida perfeita. Dinheiro, carro do ano, uma casa ótima - ele continuou, confirmando o que eu já desconfiava - Mas minha vida desmoronou antes do mundo acabar, quando eu perdi minha esposa.
Oh, Deus. Eu definitivamente não devia ter entrado nesse assunto.
- Sinto muito, você não precisa...
- Eu seguro isso já fazem dez anos - ele disse, meio nostálgico, a dor adormecida por todos esses anos voltando - Eu nunca mais falei dela, sabe?
Eu sabia exatamente como era varrer para debaixo do tapete uma memória dolorosa. Hora ou outra, a gente tinha que por para fora e se sentir um pouco mais leve.
- Qual era o nome dela?
- Catherine.
Ben me contou desde quando a conheceu na escola, aos oito anos, na Inglaterra, onde ele nasceu. Dois anos depois ele se mudou para os Estados Unidos com os pais e eles se afastaram, se reencontrando muitos anos depois quando ele já era médico e ela, advogada. Desde lá, nunca mais se afastaram.
- Tudo começou quando ela desmaiou no trabalho e não sabia o que tinha acontecido. No começo achei que ela estivesse grávida, já que estávamos tentando ter um bebê, mas ela estava desorientada, falando sobre coisas que eu não fazia ideia - ele pousou o copo vazio na mesa a frente.
Havia tanto sentimento em sua voz, que era doloroso e bonito ao mesmo tempo.
- Como médico, eu fiz todos os exames possíveis porque vi que não era um simples desmaio, não quando ela estava alucinado na minha frente, perguntando de um cachorro que ela teve aos cinco anos.
Eu sabia que a parte pior estava chegando porque seus lábios se contraíram numa linha fina e dura.
- Ela foi diagnosticada com esquizofrenia e dali para frente tudo só piorou, a doença foi progredindo cada vez mais. Conseguimos acertar a medicação, quer dizer, foi o que eu pensei, até acordar e vê-la com os pulsos cortados dentro da nossa banheira.
Eu não tive tempo de conter a lágrima que escorreu pelo meu rosto. Eu engoli, tentando me estabilizar, porque isso me atingiu de um jeito que outra história jamais conseguiu.
- Me desculpe - eu disse, secando meu rosto. Ele só tocou meu joelho por um momento, e era ele quem estava me consolando.
- Eu acordo todo dia sentindo que falhei, que Cath poderia estar aqui ainda se eu tivesse sido melhor - Ben passou a mão nos cabelos, e eu vi que ele tremia levemente - Depois disso eu me especializei em psiquiatria e estava estudando mais a fundo, procurando uma forma de prevenir ou tratar com mais eficiência, mas então o mundo acabou pela segunda vez.
- Você fez o que pode... algumas coisas simplesmente não podem ser impedidas.
- Foi o que meu terapeuta me disse - ele sorriu pequeno, e não dava para exigir mais do que isso depois dele despejar todas suas memórias dolorosas.
Quase como se ele pudesse ouvir meu tumulto interno, o sorriso de Ben cresceu um pouco e se aproximou de mim.
- Obrigado por ouvir. Isso foi doloroso e libertador ao mesmo tempo.
- Sempre que quiser - eu disse e ele ficou de pé, estendendo a mão para mim.
- Já está tarde, é melhor eu ir.
Ele realmente tinha mãos de médico, grandes e com dedos compridos. Não havia um resquício de sujeira em suas unhas, e me perguntei quanto tempo ele levou para deixá-las assim depois de tanto tempo do lado de fora, passando o inferno. Salvo por alguns calos, ele tinha mãos firmes e suaves quando eu a peguei e fiquei de pé.
- Eu quero ouvir sua história triste também, um dia desses, se me permitir - ele disse quando chegamos até a porta.
- Depois do que você me contou, eu vou parecer uma boba inconsequente contando a minha - eu disse e ele inclinou a cabeça pensativamente.
- Você não parece boba para mim - ele respondeu com firmeza - E definitivamente não é inconsequente - seu olhar aguçado segurou o meu inescapavelmente, e havia algo em seu semblante que parecia inexplicavelmente iluminado por dentro. Talvez fosse o efeito de ter se aberto com alguém depois de tantos anos - Não é porque seu passado não foi tão doloroso que seja insignificante. Cada um tem sua dor, e uma não é menor que a outra.
Ele me desejou boa noite e foi embora, e pela primeira vez em anos eu estava me sentindo realmente bem com a possibilidade de me abrir com alguém.
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