04
Com a força que aplicava para sair de entremeio a aglomeração de gente, Eva acabou por perder o equilíbrio quando se viu com o caminho finalmente livre. Cambaleou alguns metros, apoiou a mão no chão poeirento, mas não tardou a se colocar de pé outra vez e a prosseguir com o seu plano. A bota atrapalhava a correr, por vezes a fazendo torcer o calcanhar na solo desnivelado, mas não diminuiu a toada.
Avistou o rapaz ao longe, caminhando depressa entre os automóveis.
— Samuel! — O chamado soou arranhando, com as lágrimas afoitas para transbordar. — Samuel, espere!
Ele pareceu escutar. Parou, assentou o chapéu adequadamente na cabeça e, com a mão na cintura, observou-a chegar a passos largos. A feição não era das melhores, todavia ela sabia que não estava irritado por completo, pois sequer pararia para esperá-la caso estivesse.
— O que foi? — ele inquiriu, magoado. O quanto ele estaria sendo controlado pelo destino?
Ela pensou em insistir para que ele ficasse, porém estava ciente de que aquilo só faria os dois brigarem mais, e tudo o que não podia fazer era afastá-lo naquele momento.
— Eu dirijo — ela afirmou, deixando que as lágrimas enfim caíssem. — Só não fica com raiva de mim, por favor. Eu não vou conseguir viver com você longe de mim.
Ele esboçou um sorriso contido e a abraçou.
— Tá tudo bem, tá tudo bem… Eu não tô com raiva, sua bobinha. — Afagou-a, antes de completar: — Mas precisamos ir.
Ela enxugou o rosto.
— Eu sei…
E enquanto os dois iam juntos para o carro, Eva tentou não imaginar o que se seguiria. Por algum motivo, mesmo com os acontecimentos daquele início da noite, aquele continuaria sendo o melhor dia de sua vida. Inconscientemente, mas seria. A estrela não havia errado.
Entraram no carro, pegaram a rua principal e seguiram pela rodovia. Dessa vez, sem brigas, sem verdades sendo jogadas na cara e sem insultos. Samuel acariciava sua coxa, enquanto ela seguia firme no trajeto — forçou as mãos a ficarem agarradas ao volante e a visão, à estrada a frente. Sempre a frente; o pé no acelerador.
Chegava a hora.
— Te amo — ele confidenciou, em determinado momento.
Não demorou muito para que uma grande luz surgisse no horizonte, avançando veloz e descontrolada na pista, acompanhada de uma buzina grave. Eva fechou os olhos, deixando que o clarão a engolisse.
★
Num instante, o que era buzina transformou-se no místico badalar dos sinos. Eva abriu os olhos e o quarto do hospital surgiu diante deles, quieto, sóbrio. Entretanto, a estrela continuava ali, bailando no ar, tão feliz quanto ela um dia fora.
As lágrimas marcaram o seu rosto, mas ela sorriu. Fazia muito tempo que já havia aceitado o aproximar da morte, mas naquele momento a morte não pareceu ser algo que precisava de aceitação. A estrela não parecia preocupada com o segundo que estava por vir, queria apenas dançar, ritmada com o som vindo do lado de fora.
Aos poucos, contudo, o sino foi parando, e a medida que o som cessava, a estrela foi perdendo o seu brilho, desintegrando-se em finitos fótons, até se tornar mais uma mera lembrança.
Eva fitou o teto do quarto — a única parte que conseguia ver —, desejando que todas as sensações vividas na festa de folia de reis não fossem apenas uma recordação. Sentia saudades até mesmo dos tropeços; sentia falta da doce sensação de sentir. Da maravilhosa capacidade de experienciar. Do doce dom de aferir.
Mas a verdade era que a estrela tinha ido embora. Os seus desejos continuariam a ser desejos. Não estava com raiva, contudo. Muito menos revoltada. Estava em paz.
Fechou os olhos, para que pudesse deixar o bip das máquinas embalar seus pensamentos.
Bip…
Bip…
…
A porta se abriu alguns segundos depois, evidenciando outro som: passos vinham em sua direção. Descompassados, pesados, mancos. Eva abriu os olhos novamente, no instante em que a pessoa alcançava o seu lado na cama.
Os cabelos grisalhos… As cicatrizes no rosto se misturando com as rugas… O sorriso meio bobo, amarelado pelos anos. O mesmo brilho no olhar.
Ele estava ali. O universo não era tão injusto, definitivamente.
— Feliz Natal, minha campeã… — Samuel acariciou seu rosto e, então, deixou o buquê de flores sobre seu leito, para que ela conseguisse sentir o cheiro das rosas. — Te amo.
Sorriu, fazendo-a sorrir também.
— Te… Amo…
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top