03

    Os fogos ficaram ainda mais belos com o crepuscular do dia. 

    O palco já estava devidamente montado a espera do grande momento da folia e a multidão se amontoava o mais próximo que conseguia. Os faróis multicores dançavam sobre as cabeças, e alguns, apontados para o céu, conseguiam iluminar até mesmo as nuvens. No chão, as bandeirolas penduradas em todos os cantos se misturavam com os pisca-piscas de natal, enfeitando as árvores, os coqueiros e as barraquinhas de comes e bebes. Os shows ao vivo não demorariam a começar, mas se estenderiam até a manhã do outro dia. 

    Eva sentiu o abraço apertado de Samuel, envolvendo-a pelas costas e encaixando o queixo sobre seu ombro; a aspereza de sua barba lhe fazendo lembrar de diversos outros momentos de felicidade. Mas nenhum era como aquele, nenhum tinha sido tão genuíno. 

    — Parece que eu tô sonhando… — confessou a ele. 

    Ele riu. 

    — Eu disse que cê conseguiria. A única pessoa que estava duvidando era você mesma. 

    Ela acariciou as mãos de seu amado, calejadas pelos anos de trabalho na fábrica de ração.  

    — Te amo — anunciou com toda a certeza que havia em seu ser. Entretanto, não esperou por resposta (Samuel já havia dito aquilo tantas vezes que não lhe restava dúvidas). Prosseguiu: — Agora tudo vai mudar.  

    O universo estava lhe dando a grande chance: tinha o dinheiro que precisava para bancar o seu sonho de se tornar uma campeã mundial de montaria, o que a eximia de qualquer obrigação que seus pais tentassem impor. Quem sabe não a apoiassem depois que soubessem da vitória? A sua vida começava ali, com a independência que sempre sonhara ter. 

    — Miga, vem comigo! — Tiara a puxou, chegando ao seu lado sem aviso. 

    — Calma! — Ela riu com o susto. — Onde vamos? 

    — Comprar algo pra beber antes que minhas pernas comecem a doer de tanto ficar em pé. Vem! 

    Tiara continuou a levá-la para longe, até que as duas não pudessem mais ver onde estavam os dois rapazes. O aglomerado de corpos se misturava com extrema facilidade, o som de risadas e das conversas vez ou outra saltava sobre sua audição, tirando sua atenção da música alta. Eva segurou o chapéu enquanto esbarrava na multidão, e ignorou os olhares dos homens que buscavam uma forma de se aproximar. E depois de muito esforço, pararam de frente a barraca de drinques. 

    — E então? — Tiara se encostou no balcão. — Cerveja ou cachaça? 

    Eva fez cara feia. 

    — Uma batida de morango. 

    — Ah, não! Cê não vai me decepcionar hoje — Tiara afirmou, já volvendo-se para o atendente. — Duas batidas de morango, mas com muita vodka, por favor. 

    Eva revirou os olhos, porém não se contrapôs aos desejos da amiga. Pegaram a bebida e não demoraram a seguir o caminho de volta para o meio da festa. A cada segundo que se passava, a multidão se apertava mais diante do palco. Os telões começavam a ser ligados e a banda já passava o som dos instrumentos. 

    — Já vai começar. Anda! — Tiara se apressou, emaranhando-se entre camisetas xadrez e calças jeans. 

    Sentindo a euforia da amiga lhe contagiar, Eva tomou um gole da batida e seguiu-a da forma que pôde, mantendo a concentração ao máximo para não perdê-la de vista. Aguentar firme naquela missão, com Tiara ziguezagueando para cada vez mais longe, mostrou-se quase tão difícil quanto se manter sobre o touro Celestial. 

    Até que Tiara parou em um ato súbito, fitando a multidão que se estendia absoluta na sua frente. Eva, finalmente a alcançando, observou-a sem compreender o que havia acontecido; os olhos castanhos da amiga pareciam ter ganhado um especial ar de preocupação de uma hora para a outra. Foi então que virou-se para procurar o motivo da mudança de humor, e percebeu no instante seguinte que sua euforia também não duraria nem mais cinco segundos. 

   A sua frente, entre as cabeças que eram evidenciadas pelas luzes dançantes, viu Sabrina. A sua principal adversária sorria e remexia o cabelo, enquanto falava algo para Samuel. Estavam tão próximos, que Eva conseguia ver o desejo saindo dos olhos da loira, enquanto se insinuava para o namorado alheio da forma mais descarada e natural possível. 

    Eva não conseguiu ver mais nada. A fúria subiu de imediato, os punhos e a mandíbula travaram, os pulmões se prepararam para suprir os músculos com todo o oxigênio necessário. Não era mulher de deixar situações como aquela barato; ninguém a impediria de tirar satisfações, tanto com Sabrina quanto com Samuel — afinal, ele também tinha culpa, por não dar um chega-pra-lá na garota. 

    Não! 

    Antes que desse o primeiro passo, sentiu algo explodir no interior do seu ser. As lembranças voltando como uma avalanche de lama, soterrado toda a sua ira e trazendo para perto um desespero descomunal. Com a emoção de tudo que estava vivendo naquele dia, tinha sido fácil deixar de lado a sua mente de setenta anos e fazer com que seu eu jovem orquestrasse todos os sentimentos experienciados. Contudo, aquele dia, por mais que fosse o dia mais feliz da sua vida, não era um dia apenas de felicidades. Tinha sido o dia que rompera os laços com sua família, antes de arrumar suas coisas e seguir em direção ao rodeio, e também seria o dia em que sua vida mudaria por completo. 

    Lembrava-se muito bem agora daquela parte da noite, as coisas continuavam a acontecer como na primeira vez. Recordava-se de ir com Tiara no bar, e de encontrar Sabrina ao lado de Samuel na mesma posição que se encontrava ali. Sabrina estava com inveja, agora era óbvio as suas intenções de alfinetá-la. Entretanto, não havia sido tão óbvio para a Eva de vinte anos, impulsiva e completamente apaixonada pelo único homem que já tivera na vida. Não… Não tinha sido nada óbvio. Caso contrário nunca teria feito o que fizera. 

    As recordações passaram como um filme na sua mente: a discussão com Sabrina, seguida da discussão ferrenha com Samuel; e depois, a sua vontade de ir embora da festa, de não ficar mais nenhum segundo entre os olhares curiosos das pessoas em volta. Seguiria-se mais uma discussão, com ela ameaçando ir embora sozinha — afinal, o carro era dela —, até que Samuel se cansaria.  Partiriam, os dois, de volta para sua cidade, deixando Tiara e Vander na festa. O clima da viagem não seria melhor, com as brigas e as caras de raiva se mantendo. E então, quando os insultos se tornassem fortes demais e Eva estivesse prestes a ameaçar largá-lo no meio da rua, um caminhão surgiria na sua frente, completamente desgovernado e em alta velocidade, disposto a carregar tudo que estivesse em seu caminho. A pegaria em cheio, fazendo com que ficasse várias semanas na UTI. 

    As lembranças… 

    O pior de tudo, porém, seria as consequências. Cinquenta anos de tetraplegia, com sua família a culpando o tempo todo da escolha de ir participar daquela disputa. Cinquenta anos de monotonia sentimental, de estagnação sensorial. Nenhum frio de medo no estômago, nenhuma perna banda, nenhum toque de carícia em suas mãos… Samuel também a culparia pelo ocorrido, pelo ciúme sem sentidos que tinha obrigado os dois a irem embora mais cedo das festividades, e que por isso a colocaria sobre uma cama e o deixaria com as pernas mancas e a face deformada. 

    Aquele era o melhor e o pior dia da sua vida. Entretanto, talvez tivesse um motivo para estar revivendo tudo aquilo. 

    A estrela de natal… 

    Sem perder mais tempo, e colocando o medo um pouco de lado, aproximou-se de Sabrina e Samuel. 

    — Eva, espere! — escutou Tiara perguntar, contudo não deu atenção. Não daria atenção também para a cara preocupada de Vander, observando tudo não muito distante. 

    Samuel sorriu ao vê-la chegar. 

    — Amor, a Sabrina veio te parabenizar pela vitó… — Beijou-o com força, indo contra o destino e tomando uma atitude diferente da primeira vez. Não brigaria. Se o seu ciúme era a causa do acidente que aguardava os dois na rodovia, então o destino seria alterado naquele instante. 

    O medo do que viria a acontecer a consumiu por inteira; o seu espírito jovem e o seu ser de setenta anos, ambos estavam no escuro. E em meio ao apagão, olhou para a Sabrina com um sorriso engessado, a ira ainda estava presente, mas a guardaria para si. 

    — Obrigada — respondeu ela, já segurando a mão do rapaz e o puxando para mais perto do palco. —, mas precisamos ir agora, o show já vai começar. 

    E saiu em busca de distância da loira. Tiara e Vander logo atrás, esboçavam risinhos contidos, contentes com a cena que viam. A medida que se afastava da adversária, um alívio ia ganhando força, a respiração estava pesada, como se tivesse acabado de cometer o maior dos crimes. Pararam alguns metros depois, deixando que a multidão fizesse o trabalho de escondê-los de Sabrina. Eva sabia que Samuel havia entendido o que se passava, mas o conhecia o suficiente para saber que não tocaria no assunto. Ela, por sua vez e pela primeira vez, também faria o mesmo. 

    Estava feito. O universo, refletiu, talvez não fosse tão injusto quanto pensava. Estava lhe dando uma segunda chance? Era o que parecia. Abraçaria-na com todas as suas for… 

    De forma estranha, sentiu Samuel se afastar; as mãos soltaram as suas, o corpo ganhou distância do seu e, um segundo depois, Eva sentiu-se desprotegida. Não precisava olhar para seu namorado para saber que alguma coisa estava fora dos trilhos, contudo olhou assim mesmo. Samuel fitava o horizonte, como se sentisse algo doer dentro de si. Viu o peito do rapaz se mover lentamente, tentando se acostumar com a dor. 

    — Aconteceu alguma coisa? — ela questionou, com medo da resposta que receberia. 

    Ele colocou a mão na boca do estômago e expressou a sua habitual carranca de enjôo antes de esclarecer: 

    — Sei lá… Acho que eu não tô bem. — A face se contorceu ainda mais. — Amor, vamo embora? Não quero mais ficar aqui, não tô bem. 

    O coração de Eva travou ao entender o que acontecia. O peito ficou miúdo ao perceber que não, o universo não havia reparado a injustiça que cometera. As coisas tendiam a seguir o seu real caminho, não importasse as circunstâncias. 

    — Não, a gente não pode ir embora. — Mas ela não estava disposta a desistir. — Temos um show pra assistir, amor. Olha! Temos que ficar. 

    — Mas, amor… — Ele voltou a olhar para o nada. — Eu realmente não tô bem. Eu tenho que ir. 

    — Não! — ela exasperou-se. O grito chamou a atenção das pessoas em volta e Samuel a olhou com os olhos repreensivos. 

    Estava acontecendo. Ela não podia acreditar. 

    — Não começa, Eva — ele disse, endurecendo o tom de voz. — Se cê quer ficar, então fique. Eu não tô bem e vou embora. — Ele se voltou para Vander. — Mano, tem como me emprestar o carro? 

    Vander concordou, já tirando as chaves do bolso. 

    Eva parou por um instante, buscando uma forma de impedir que aquilo acontecesse. 

    — Samuca, a gente precisa ficar… — ela relutou, abaixando o tom para que não acabasse de vez com o humor do seu namorado. Ele, contudo, a ignorou completamente; pegou as chaves e seguiu para fora do aglomerado de pessoas, em direção ao estacionamento. 

    As luzes do palco se acenderam e a banda começou a tocar o som de introdução. 

    — Boa noite, galera! — A dupla sertaneja entrou, soltando gritos histéricos de todo mundo que estava a sua volta. 

    Eva observou Vander e Tiara. Os dois pareciam entretidos demais no show que se iniciava, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Ela estava sozinha naquela luta, percebeu. 

    Já não conseguia avistar o namorado quando se tocou de algo ainda mais inquietante, que a fez sair em disparada em direção ao estacionamento, desesperada. 

   — Espere! Espere! — gritava em vão, ao passo que abria caminho entre os corpos. O som vindo do palco era cem vezes mais alto que sua voz embargada. 

    Não podia deixá-lo dirigir. O caminhão atingiria o motorista em cheio, mas o carona não sofreria com o impacto. Era ela quem havia dirigido na primeira vez, e era ela quem sofreria as maiores consequências do acidente. Aquele não era o destino de Samuel, não podia deixar que fosse. 

    Precisava alcançá-lo antes que fosse tarde demais. 

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