02
O som vindo das arquibancadas era ensurdecedor; as palmas e as batidas dos pés sobre os acentos de madeira, enquanto, do meio da arena, o locutor motivava a plateia a fazer mais e mais barulho. A música sertaneja continuava firme na missão de dar o clima da festividade, enquanto, do outro lado do espaço agropecuário, o palco terminava de ser montado para o show ao vivo que se seguiria após o fim da disputa.
O sol inclinava-se para o canto do céu, anunciando que a tarde não demoraria a acabar. Contudo, Eva sabia que o vencedor subiria ao pódio antes mesmo do últimos raios de luz.
Subiu na porteira do curral, montando na parte mais alta, e de lá procurou as caras conhecidas entremeio as milhares de pessoas. Sabia o local exato onde estariam, pois tudo acontecia como da primeira vez. Avistou primeiro Samuel, que abanava o chapéu no ar buscando chamar sua atenção. Não pôde impedir que um sorriso se abrisse, feliz por vê-lo depois de tanto tempo, feliz por saber que ainda era amada pelo único homem da sua vida. Aquela visão valia mais do que o prêmio do rodeio.
Ao lado de Samuel, seus dois melhores amigos, Tiara e Vander. Os dois tinham sido as únicas pessoas a manter contato com ela após a tetraplegia, ajudando-a na difícil missão de aceitar a nova condição. Contudo, as pessoas não podiam viver ao seu redor apenas porque era deficiente, precisavam viver suas próprias vidas. O casal se mudaria para os Estados Unidos uns dois anos à frente daquela data, onde construiriam sua família e viveriam felizes. Não chegaria a vê-los depois disso. Mas nada daquilo importava no momento. Estavam alí naquele dia, prontos para apoiá-la.
Desejou que seus pais também estivessem presentes, porém sabia que isso era pedir demais. Se ela estava ali era porque havia rompido com a família naquele mesmo dia, indo contra todas as ordens de seu pai, acabando com o clima de natal da sua casa e partindo para seguir o seu sonho. Eles nunca aceitariam, ela tinha absoluta certeza.
Balançou o chapéu no ar, cumprimentando os três, e seguiu de volta para o estábulo. Sua hora estava chegando, precisava se concentrar. Enquanto caminhava, viu uma de suas adversárias em plena montaria: o boi pulava alto, tentando jogá-la longe de seu dorso; as patas chicoteavam o ar, ameaçando dar um coice a quem se colocasse no caminho; e os chifres reluziam toda a agudeza mortal. A adversária caiu com seis segundos, sendo prontamente salva pelos palhaços de rodeio antes que o touro a pisoteasse.
Seis segundos era pouco. Precisava ficar os oito segundos se quisesse ter chances na competição; caso quisesse derrotar a adversária mais forte, que já havia montado naquela tarde e estava a um passo de ser a campeã.
— Eva, tá tudo pronto! — ouviu um dos organizadores gritar para ela, o que fez um frio se apossar do corpo e as pernas ficarem bambas.
Era tão bom poder sentir as pernas bambas…
Caminhou até onde estava preso o seu touro; seria a próxima. Encarou o animal, que parecia a observar com todo o ódio do mundo, como se quisesse dizer que seria o seu algoz. As narinas bufantes, os músculos todos tensionados, o corpo truculento batendo nas vigas do pequeno espaço de confinamento. Era a hora.
Sem deixar-se intimidar, escalou o curral e montou no bovino. Percebeu o animal ficar ainda mais indignado, pronto para fazer de tudo para que ela caísse dali.
— E agora! — ouviu o locutor. — A nossa próxima deusa da montaria chega com apenas vinte anos para a sua primeira grande competição! Mas não se engane, não! Eva Peixoto vem do interior do estado para buscar seu primeiro grande prêmio, e vem com tudo, moçada! — A arquibancada gritou, histérica. Eva beijou seu pingente, e então segurou firme com a mão esquerda, deixando a mão direita livre no ar, como a regra do rodeio pedia. — Estão preparados para a última peoa de hoje? Será que nossa caloura vai conseguir desbancar nossa tricampeã, Sabrina?!
— Não sei não, viu… — o outro locutor falou, contudo Eva já não estava mais prestando atenção. — Ela vai montar no Celestial, o touro conhecido por não dar trégua nem mesmo no caboclo mais forte.
— É agora ou nunca, meu povo! — a voz continuou a ser expelida pelos altifalantes.
Para Eva, contudo, o silêncio foi absoluto quando a sirene tocou, e a porteira foi aberta, liberando o boi para a arena. Em uma fração de tempo depois, o touro estava no centro da curral, iniciando a sua luta feroz. Eva sentiu o corpo ser jogado de um lado para o outro em solavancos intensos; a bunda querendo escapar das bacadas, mas sendo prontamente reposicionada por ela, para que suportasse o tempo certo.
O boi girou como um pião, enquanto a peoa segurava o chapéu no lugar com a mão livre e firmava as rédeas na outra — as pontas dos dedos começando a isquemiar com a força colocada. A poeira em volta foi levantada, e parte dela adentrou seus olhos. O tronco foi jogado para a esquerda, e depois para a direita, para frente e para trás. Aproximando-se das vigas do cercado da arena, o animal tentou prensá-la em vão, conseguindo apenas deixar sua perna direita um pouco dolorida.
Parecia que já estava ali há horas, quando finalmente escutou o som estridente do sinal. E, então sabia que podia sair dali, que havia cumprido a sua missão. Pulou de forma rápida no chão arenoso, afastando-se ao máximo da raiva do boi. Os palhaços mantinham-se a postos para chamar a atenção do bicho e, assim, conseguir fazê-lo voltar para a área de confinamento.
Sentindo que podia respirar aliviada, Eva voltou a prestar atenção no mundo a sua volta. O barulho da arquibancada era ensurdecedor, todos a aplaudiram de pé, o que a fez sentir um arrepio percorrer suas vértebras. Conseguiu encontrar Samuel, Vander e Tiara com os olhos; os três estavam extasiados, pulavam e se abraçavam como se o Brasil tivesse feito um gol no final da Copa.
Tentou dar atenção para o que os locutores diziam:
— …nacreditável o que ela fez! Inacreditável! — ele gritava. — Nove segundos de uma execução quase perfeita!
— Eu estou sem palavras — o segundo locutor confidenciou. — Vamos ver o que os jurados acharam, né? Será que temos uma adversária capaz de ameaçar o título de nossa tricampeã?
— Eva Peixoto chegou com tudo, senhora e senhores! Mas agora ela está nas mãos dos jurados. Vamos para as notas!
Por mais que parte do seu ser soubesse quais seriam as notas, também sentiu uma ansiedade crescente ao olhar para o telão, como se seu eu de setenta anos e seu eu de vinte estivessem ocupando o mesmo corpo e lutassem para serem sentidos os dois, de forma separada. E, naquele momento, seu espírito mais jovem parecia deter o comando da situação — encarou o telão com os olhos brilhando em esperança, o peito travou. Até mesmo a plateia se acalmou.
A nota do primeiro jurado apareceu na grande tela sobre sua cabeça. Uma nota muito boa, que com certeza tinha sido maior que a de sua principal adversária. Segurou a euforia, contudo podia ouvir seus amigos e seu namorado gritando da arquibancada.
A segunda nota, entretanto, veio para calá-los: uma nota boa, porém certamente mais baixa que a menor nota de Sabrina, a tricampeã que, naquele instante, devia estar gorando a sua sorte. Os locutores continuavam a fazer seu trabalho, explanando para os quatro ventos as chances pífias de Eva destronar a rainha da festa. E naquele momento, a espera da terceira e última nota, seu espírito de vinte anos pareceu ganhar toda a sua existência, enchendo-a de uma ânsia infinita por saber logo o resultado. Um frio se apossou do seu abdômen, remexendo as tripas como um redemoinho diante da poeira do canavial.
Os números enfim foram expostos no grande telão; uma nota boa, muito boa, porém não o suficiente para saber se tinha ganhado. Em uma fração de segundos, tentou fazer as contas na mente, mas a verdade é que sequer tinha cabeça para aquilo. Resolveu, então, esperar que alguém lhe arrancasse aquela dúvida.
— Eva Peixoto! — as vozes nos aparelhos de som gritaram, ritmadas. Só então ela se entregou a felicidade, gritando e pulando como não pulava desde criança. As lágrimas cobriram a vista, restando a ela apenas a opção de se ajoelhar em contentamento. — A mais nova campeã é a campeã mais nova de todos os tempos!
Não demorou muito para que sentisse ser envolvida por braços conhecidos. Tiara a ergueu, expelindo uma mistura de choro e riso, enquanto seu corpo era balançado de um lado para o outro com os saltos animados de Vander.
— Cê ganhou! Eva, cê ganhou! — o amigo disse.
Ela, por sua vez, não conseguia dizer nada. Sentiu as mãos de Samuel em seu rosto, e pela cortina de lágrimas conseguiu avistar a face molhada e o sorriso aberto do rapaz.
— Eu te disse, meu amor — ele lembrou-a, antes de beijá-la. — Esse prêmio já era seu!
Sem que pudesse buscar no turbilhão de pensamentos algo para responder aos três, ela sentiu ser puxada pelos organizadores do evento. A plateia a aplaudia incessantemente; as palmas a fizeram companhia no trajeto até o pódio. Os acontecimentos passaram como se ela fosse alheia a realidade; o corpo parecia anestesiado pelo frenesi, os neurônios se recusando a aferir todas aquelas sensações.
Colocou-se no degrau mais alto entre os três degraus. Sentiu ser parabenizada pela vaqueira que ocupava o terceiro lugar, depois sentiu a cordialidade forçada de Sabrina ao apertar sua mão, em um cumprimento educado, entretanto cheio de desgosto por ter perdido a primeira colocação. Mas nas dezenas de sensações que Eva absorvia do mundo a sua volta não tinha espaço para a mágoa da loira ao seu lado.
O cheque de quinhentos mil reais foi entregue em suas mãos, ao mesmo tempo que uma explosão de fogos ganhou o céu alaranjado e abafou os aplausos e a moda sertaneja. A certeza de que aquele era o melhor dia da sua vida veio naquele momento; uma felicidade plena que jamais tinha sentido e que queria guardar consigo pelo resto da vida.
A noite que se seguiria seria de comemorações, não restava dúvidas a ela.
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