01

    O som… Um dos sentidos mais sublimes que a natureza fora capaz de inventar; Eva sempre pensara daquela forma. Nos últimos dias, contudo, ouvir tornara-se o seu pior pesadelo. Com o mesmo ruído se repetindo como um relógio que marca incansavelmente os segundos — um bip penetrante que certamente a enlouqueceria nos próximos dias —, não ouvir nada parecia uma dádiva dos deuses. As máquinas marcavam os seus batimentos, como se torcendo para que seus instantes de vida se esgotassem logo.  O único ruído que ainda a ligava ao mundo era a sua respiração; seus pulmões trabalhavam bem, apesar de tudo. Trabalhavam de forma árdua, afrontando o desejo das máquinas, incentivando-a a permanecer com o espírito atrelado a carne. 

    Qualquer outro barulho além daqueles dois era prontamente ignorado pelos seus sentidos. O que significava que, por mais que, lá no fundo, soubesse que não estava sozinha naquele quarto, não precisava de mais ninguém para o que estava prestes a acontecer. Sempre soubera que a morte era o passo mais solitário que alguém fazia na vida. 

    — Então… O que vai fazer hoje? — a enfermeira baixinha questionou, enquanto, com uma planilha eletrônica em mãos, fazia os ajustes das máquinas ao redor da paciente. 

    — Estão me esperando na casa dos meus pais — a outra enfermeira respondeu, enquanto arrumava os cachos no espelho do quarto. O sorriso era de quem aguardava ansiosamente o horário de ir embora. — Costumamos fazer a ceia lá. 

    Concordando com um sorriso, a pequenina enfermeira se aproximou da senhora, que parecia ouvir toda a conversa atentamente, apesar do sono profundo. Passou a mão sobre os cabelos grisalhos, que há muito não eram penteados. A pele ressecada pelas dezenas de medicamentos que tomava todos os dias, parecia feita dos tecidos mais finos que existiam, pronta para se desfazer ao toque mais delicado. As unhas quebradiças, os vestes azuladas — o capote usado por todos os pacientes —, e a respiração profunda, quase em sintonia com os bips do monitor cardíaco, como se tentasse abafar o som da máquina. 

    — O que ela teve? — a enfermeira morena indagou. Volveu-se para a amiga, que acariciava a paciente como se estivesse diante de um ente querido. — Não veio ninguém visitar ela? 

    — Não a visitam há muito tempo… Era tetraplégica a cinquenta anos, sempre foi um peso pra família, desde que sofreu o acidente na juventude. — Segurou a mão da senhora. — Agora a demência a consome totalmente. Tá muito debilitada. A família entregou os cuidados para o hospital. 

    A morena balançou a cabeça, em negação, antes de analisar: 

    — Esse lugar tá cheio de histórias tristes… — Contudo, no segundo seguinte, seu tom de voz tornou-se alegre; espantou qualquer indignação que podia ter surgido em sua face. — Mas hoje não é dia pra isso. Vamos! Tá na nossa hora! — E dirigiu-se para a porta do quarto, certa de que seria atendida pela amiga. 

    A enfermeira baixinha comprimiu os lábios e fitou os olhos cerrados da mulher de mais de setenta anos. A tez de uma pessoa que não tivera a oportunidade de viver a vida que tinha sonhado, e que, com isso, tornara-se um incômodo encosto para as pessoas. Ela tinha pena; muita pena. 

    Soltou a mão da senhora e seguiu em direção a porta. 

    — Feliz Natal, Dona Eva — desejou ela, antes de sair. 

    Os bips continuaram, marcando o compasso do tempo, tomando a sua atenção por completo. A respiração seguia no mesmo ritmo; uma luta fisiológica. 

    Depois de tantos anos e de tanto tempo livre para remoer cada segundo da sua existência, após alimentar o ódio pelo destino que Deus havia guardado para si, sentia que o fim era iminente.  Estava pronta para enfrentar cara a cara quem quer que estivesse do outro lado e pedir as devidas explicações. Queria explicações, ah, se queria. Porque tinha a absoluta convicção de que nada daquilo que era justo. Nada. 

    Mas, se tanto queria aquele acerto de contas com o universo, por que permanecia lutando pela vida? Por que tinha tanto medo que as máquinas ganhassem a batalha? 

    Antes que chegasse a uma conclusão, identificou um som diferente. O canto do aparelho ao lado de sua cama deu lugar ao badalar de um sino. O mesmo ritmo. A mesma altura. Em seu interior, sabia do que se tratava: a capela do hospital anunciava o aproximar de mais um aniversário de Cristo. O ding-dong a envolveu na sinfonia mágica, os barulhos das máquinas enfim não irritavam seus tímpanos; sentiu-se  completamente embarcada num sentimento de luz. Os olhos lacrimejaram por debaixo das têmporas. 

    E então, abriu-os em um ato súbito. Há quanto tempo não tinha forças para fazer aquilo? Fazia quantos meses que não enxergava o mundo a sua volta? Não importava, contudo. Nenhuma daquelas indagações tinha real importância, comparado ao que ela avistava com seus próprios olhos. 

    Sobrevoando sua cama, como um vagalume gigante e atraído por sua existência enferma, uma estrela mágica bailava no ar. Bailava como se o som dos sinos fossem a sua valsa de debutante. E, mais do que isso, chamava Eva para dançar junto; a aproveitar a presença daquele milagre de natal. 

    Entretanto, Eva não era capaz de se mover. A deficiência ainda continuava ali, com presença da estrela ou não. Seus neurônios continuavam inertes e seu corpo, atrofiado. 

    Mas a estrela… 

    A estrela bailava, como se quisesse dizer algo a ela. Como se mostrasse que era hora de sorrir. Uma lágrima escorreu pela face desértica da senhora, pega por lembranças de sua infância. A família, os irmãos, os natais na casa da avó… Fechou os olhos, implorando para que os momentos bons retornassem. Queria, pelos dias que ainda tinha de vida, reviver o passado, nem que fosse um único dia. O dia mais feliz, por mais que não soubesse especificá-lo. 

    Sentiu o calor da estrela tocar-lhe a pele. E, naquele instante, percebeu o quão poderosa era aquele espectro. Sabia que seu desejo seria atendido; ela poderia até não saber o dia mais feliz da sua vida, porém aquela estrela sabia. 

    Deixou-se levar pelo lusco fusco natalino. Estava em boas mãos, tinha absoluta certeza. 


    O calor intensificou-se, cobrindo tudo a seu redor. Abriu os olhos, sentindo a quentura do sol do meio da tarde sobre o chão de terra vermelha, batido e seco. Os sinos haviam cessado, dando lugar a uma música sertaneja bastante popular e ao burburinho de pessoas ao seu redor. 

    Arfou, sentindo o peso da gravidade de uma forma diferente. Com as pernas desengonçadas, cambaleou alguns passos, quase caindo. 

    — Ôhou! — Sentiu alguém segurar-lhe o corpo, impedindo a queda no momento exato. — Calma aí, amor. Cuidado com os buracos. 

    Encarou o rapaz que a envolvia em um abraço apertado e com um sorriso aberto. Estava sonhando, só podia ser. Nada daquilo podia ser real. 

    — Samuel? 

    O rapaz a olhou estranho, arqueando as sobrancelhas; a expressão mais zombeteira que ela se lembrava de ver. 

    — Eva? É você mesmo? — ele brincou, imitando-a. — Nem começamos a beber e cê já tá avoada… — Riu. — Vamo sair desse sol quente, tá esturricando a minha pele. 

    Uma onda de lembranças a invadiu. Lembrava-se daquela frase, de estar naquele mesmo lugar, ouvindo aquela mesma música. Lembrava-se das pessoas andando para lá e para cá, felizes, e da poeira sendo levantada a cada sutil brisa. Lembrava de todo mundo com a roupa típica das festas de rodeio, do cheiro de esterco vindo do curral ao longe, misturando-se aos perfumes e a fumaça da barraca onde eram preparados os pratos da folia. Recordava-se de tudo, absolutamente tudo. 

    Mas fazia tanto tempo… 

    — Ei! — Samuel voltou a chamar sua atenção. — Cê tá bem?

    — Tô, eu só… — Girou o corpo trezentos e sessenta graus. O Centro Pecuário da capital. Cinquenta anos separavam aquele dia do dia que se lembrava de estar, dentro do hospital. — Preciso ir no banheiro, rapidinho. 

    Começou a ir em direção aos banheiros, sem se deixar levar por toda a emoção que sentia. 

    Conseguia caminhar. 

    Conseguia sentir os músculos da perna se movimentando, fazendo-a seguir para frente. Os neurônios trabalhando como antes, mandando e recebendo impulsos nervosos. Sentia a bota de couro apertar o dedo mindinho, os neurônios aferentes captando todas as informações que precisava para manter-se de pé. Sentia. Sentia cada pedregulho que pisava, cada pequena área do chão desnivelado, que fazia com que precisasse mudar a força que colocava nos pés a cada passo dado. 

    Conseguia caminhar! 

    Uma vontade imensa de chorar a tomou. Mas choraria de felicidade. 

    — Não demore! — escutou Samuel gritar ao longe. — Estão te esperando na arena! 

    Chegou no banheiro feminino com o coração a ricochetear pelas paredes do peito. Parou de frente ao espelho, as lágrimas já começavam a transbordar. Era tanta informação, tinha acontecido tão de repente, que não sabia como reagir, nem no que deveria pensar. A sua consciência de velha e doente se unindo com a antiga, de quando ela ainda estava para completar seus vinte anos. Um aglomerado de sentimentos, uma salada-mista de sensações há muito esquecidas na juventude. 

    Encarou a si própria no espelho. Uma Eva jovial, os cabelos negros, longos e de pontas encaracoladas, caía em cascata por debaixo do chapéu. A maquiagem bem feita, especial para aquele dia. A camisa xadrez, desabotoada para mostrar o decote e colocada por dentro da calça jeans para mostrar a grande fivela do cinto. E o colar com o pingente de crucifixo no pescoço. Não se recordava de se ver tão bonita como naquele dia. 

    Com as lágrimas ainda escorrendo, sorriu, diante da sua versão mais feliz. Havia se esquecido de como aquela tarde tinha sido especial, de como tinha lutado para estar naquelas festividades de fim de ano. 

    Estava pronta para buscar o que sabia ser seu por direito. Estava mais que pronta para reviver o melhor dia de sua vida. 

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