• Capítulo Vinte •

Kevin estava prestes a sair de casa para ir ao orfanato no sábado à tarde quando ouviu soluços baixos vindos do quarto dos pais. Ele parou, sentiu um arrepio sinistro lhe subir a espinha e foi até lá, batendo duas vezes na porta antes de entrar.

A mãe estava sentada na beirada da cama, o rosto enterrado nas mãos e os ombros sacudindo. Ela parecia tentar a todo custo abafar o choro, mas era impossível.

"Mãe?", Kevin chamou baixinho. Virginie se ergueu em um pulo, assustada olhando diretamente para o filho. "Mãe, o que aconteceu?"

A mulher começou a enxugar as bochechas com força, ao mesmo tempo em que tentava armar-se de um sorriso fraco.

"Não é nada querido", ela disse com a voz ligeiramente embargada, mas dava para ver o esforço dela em tentar esconder o que realmente sentia. "Só um daqueles dias em que a gente fica meio para baixo. Nada demais."

Kevin não acreditou naquilo. Sua guarda estava alta e, desde o dia em que vira aquelas marcas nos braços de Megan, vinha prestando mais atenção na dinâmica da casa.

O acidente na sala de jogos... Aquilo tinha sido como um tapa na cara. Foi como se Kevin finalmente despertasse de um torpor que tinha estado preso desde os quinze anos, quando pensara que por ser maior e mais forte que o pai o homem nunca mais teria coragem de colocar às mãos na mãe. Ou na irmã.

Por quanto tempo estava se enganando? Será que tinha fechado os olhos propositalmente para todos os pequenos sinais? Como aquele pequeno corte no lábio inferior da mãe que definitivamente não estava ali na noite anterior? E, se fosse realmente aquilo, ele não conseguia parar de pensar que de alguma maneira também era responsável por tudo aquilo, pois tinha ignorado tudo, mesmo que inconscientemente.

Kevin sentiu o corte na bochecha arder. O fato de que aquilo nem se comparava às agressões que a mãe tinha sofrido do pai ao longo de todos aqueles anos fazia com que ele quisesse vomitar.

Ele se aproximou da mãe e, sem dizer nenhuma palavra, envolveu-a em seus braços. Ela parecia tão mais baixa perto dele, tão frágil... Kevin queria protegê-la para sempre.

Algo naquele abraço, no conforto de ser amparada pelo filho mais novo depois de anos tentando esconder o que sentia, fez Virginie desabar de uma vez. A dor se transformando em soluções desesperados.

Kevin a apertou mais contra o peito, colocou uma das mãos em suas costas e a outra na cabeça, sussurrando coisas que ele nem conseguia identificar. Seus olhos ardiam e o nó em sua garganta o impedia de respirar. Estava tentando ser forte por ela, mas era difícil demais.

"Ah, Kev...", ela sussurrou enquanto suas lágrimas molhavam a camisa dele. "Eu sinto tanto, filho. Me perdoe."

"Mãe, nada disso é culpa sua, ouviu? Nada." Kevin engoliu em seco. A tristeza e a raiva se misturavam e de repente ele não conseguia mais identificar o que estava sentindo. Queria socar o homem que deveria ser seu pai ao mesmo tempo em que queria se trancar no quarto e se esquecer do mundo ao redor, se esquecer dos problemas e dos sentimentos ruins. "Eu te amo tanto, mamãe. Amo muito."

Lentamente ele fez com que ela se sentasse na cama. Virginie tentava enxugar as lágrimas, mas era inútil, já que novas a todo momento brotavam de seus olhos.

Kevin se sentou ao lado dela e segurou sua mão pequena e fria na dele, acariciando-a de leve.

As palavras vieram à sua boca antes que ele pudesse refreá-las:

"Por que nunca o deixou?", ele perguntou, percebendo que desde que se entendia por gente queria saber sobre aquilo. Por que, mesmo depois de tanta dor física e emocional, de tantas brigas e de tantos tapas, ela nunca tinha deixado seu pai?

Virginie fugou, respirou fundo e em seguida olhou para o filho.

"No início, quando eu e seu pai namorávamos, ele era o homem perfeito", ela começou lentamente, parecendo muito cansada. "Era o namorado perfeito, o amante perfeito, o partido perfeito para uma moça como eu naquela época. Luncarty era ainda menor do que é hoje e o que importava para moças solteiras como eu era qual homem arranjaria para casar e que não deveríamos passar dos vinte e cinco sem um marido." Uma risada seca escapou dos lábios dela e Virginie balançou a cabeça e um gesto de incredulidade. "Bom, eu nasci em berço de ouro e Frank mais ainda. Nossas famílias armaram tudo e em menos de um ano estávamos noivos. Eu gostava dele, era charmoso e educado, elegante, gentil... Foi só depois do padre nos declarar marido e mulher que eu percebi o erro que tinha cometido.

"Primeiro eram coisas bobas. Ele não queria que eu saísse com uma maquiagem provocante demais, ou uma saia curta demais, e depois começou a selecionar as minhas amizades, dizendo que só fazia aquilo para o meu bem. Eu continuava ensinando nas escolas, pois era isso que amava fazer, mas depois de algum tempo ele me deu uma parte da empresa para que eu administrasse, assim como mais trabalho e mais coisas para fazer, até que um dia disse que a escola estava tomando muito do meu tempo e que eu deveria abandonar as salas de aula. E eu fiz aquilo, aliás, por que não? Ele me amava e só queria meu bem, não é?"

Virginie fechou os olhos e respirou fundo por um instante antes de continuar.

"Me lembro como se fosse hoje do primeiro tapa. Eu estava grávida de Megan, cansada e enjoada demais para... me deitar com ele. Frank ficou zangado, muito zangado, e me deu um tapa com toda a força no rosto. Antes disso, ele só tinha me agredido com pequenos empurrões, às vezes alguns puxões de cabelo, mas nada mais que isso. Quando eu chorei assustada ele chorou junto, disse que me amava e que sentia muito, que não ia acontecer de novo. Bem, aconteceu de novo. Muitas e muitas vezes mais, e eu sempre o perdoava, sempre aceitava quando ele dizia que a culpa era minha. Sempre que ele chegava em casa bêbado, eu já sabia o que esperar. No geral conseguia evitar sua raiva quando estava sóbrio, mas bêbado? Era impossível.

"Então vocês nasceram e tudo continuou. Eu já não aceitava mais as desculpas dele, mas nunca tive coragem para dizer aquilo em voz alta. Todos sempre disseram como formávamos a família perfeita. Eu continuei calada, Kevin, sabe por quê? Porque meu maior medo era que ele se voltasse contra vocês e que, se eu sugerisse um divórcio, algo pior acontecesse. Ele me ameaçava, sempre ameaçou. Quando vocês ainda eram crianças, dizia que se eu contasse para alguém, que se ao menos desse a entender o que acontecia aqui, ele acabaria com tudo. E eu nunca duvidei disso. Frank sempre prezou pelo nome da família, pelo status e por ser bem visto por todos, se eu abrisse a boca... Isso acabaria com ele e consequentemente acabaria comigo também. Ou com vocês. Não conseguia nem pensar na ideia."

Kevin não sabia o que dizer. Que palavras eram adequadas diante de tudo aquilo? Não conseguia nem ao menos ordenar seus sentimentos.

Queria machucar o pai. Queria machucá-lo de uma maneira que nunca imaginou ser capaz.

"O que quase me fazia sair do controle e abandoná-lo", voltou a dizer a mãe, "era ver quando ele se voltava contra você e Megan. Ah, eu me lembro do modo como ele os batia por coisas tão simples quanto quebrar um copo sem querer ou fazer bagunça..." Virginie olhou para o filho e seus olhos estavam repletos da mais profunda dor. "Era isso que me fazia fazer as malas e querer ir embora, mas então ele vinha e me ameaçava com coisas tão terríveis. Ah, Kevin... Toda vez que olho para essa cicatriz na sua testa eu me sinto tão..."

Kevin não deixou que ela continuasse, a abraçou e sussurrou palavras vazias de conforto. Palavras que ele esperava que ajudassem.

"E por que não o abandonou quando ficamos mais velhos?", ele perguntou depois de algum tempo, quando a mãe lentamente voltara a se acalmar.

"Embora tenha vergonha de dizer isso", ela falou baixinho, sem encará-lo, "acho que foi por comodidade. Desde que Megan saiu de casa e foi para a faculdade e você ficou grande o bastante para enfrentá-lo daquela vez... Bom, ele não me bate mais tanto quanto antes." Ela enxugou a bochecha, parecendo profundamente magoada. "A única vez em que iniciei o assunto sobre um divórcio, quando Megan estava na capital e você em um de seus treinos de futebol, foi quando ele realmente colocou a mão em mim para valer. Fiquei assustada, me calei. Não tenho coragem de sair daqui, tenho medo do que isso pode acarretar. Além do mais...", ela olhou para o chão e soluçou, "tem o orfanato, Kevin. O orfanato pertence a ele, e se eu saísse disso... Ele já disse que fecharia as portas. Que mandaria cada criança para um abrigo diferente." Virginie voltou a olhar para o filho. "E assim venho seguindo. Sei que você pensou que isso tinha parado, mas verdade é que por mais que ele não seja tão ruim quanto era nos primeiros anos de casamento e durante a infância de vocês, isso nunca parou. E acho que eu não tenho coragem necessária para tentar acabar com isso. Tenho medo que fique tudo pior. Eu sinto muito por ter escondido isso de você pelos últimos anos, mas eu simplesmente não queria... Não queria ver nunca mais essa tristeza em seus olhos. Esse vazio. Queria que fosse feliz."

Kevin ficou em silêncio. Olhou para a mãe e desejou fugir com ela e Megan para bem longe. Desejou apagar todos os anos de sofrimento.

Desejou encontrar uma saída.

Mas havia uma?

"Vamos dar um jeito nisso", ele prometeu baixinho, mas a verdade é que não fazia ideia de como.

Enquanto ele mantinha a cabeça enfiada na terra, sua mãe vinha sofrendo, vinha escondendo a verdade dele. E Kevin não conseguia parar de se culpar por isso.

Virginie, porém, apenas pegou sua mão e a acariciou de leve.

"Não, Kevin. É melhor deixar as coisas como estão. Tudo isso... Eu já estou acostumada."

Kevin se afastou dela, não conseguia ouvir aquilo.

"Acostumada?", perguntou com rancor, passando as mãos pelo cabelo e se controlando para não arrancar cada fio. "Ninguém tem que se acostumar com isso mãe. Não percebe? Não pode continuar vivendo desse jeito."

"Já foi pior..."

"Não importa!" Seu corpo tremia, os pensamentos disparavam em todas as direções. "Eu vou dar um jeito nisso. Nós vamos. Eu só preciso..."

"Kevin..."

Ela se levantou da cama e o segurou pelos ombros, voltando-o para ela. Kevin não conseguia parar de tremer, de arfar, de passar os olhos pelo quarto como se algo ali pudesse ajudá-lo, pudesse tirar dele tudo de ruim que estava sentindo.

E foi a vez de Virginie abraçar o filho.

E a vez de Kevin desabar.

"Me desculpe." Foi tudo o que ele conseguiu dizer entre as lágrimas. "Me desculpe por não ter percebido que isso ainda acontecia, mãe..."

Ele se sentiu novamente um garotinho assustado, encarando o pai enquanto ele batia na mãe, enquanto gritava com ela e voltava sua raiva para Megan e ele.

Mas já não era um garotinho. Teria que lidar com aquilo. Teria de encontrar uma solução.

Porém, antes que se afundasse ainda mais, seu celular apitou no bolso da calça. Kevin não iria olhar, mas algo o fez pegar o aparelho e ver o que era.

Rebecca.

Ela dizia não estar se sentindo muito bem. Perguntou - e só pelas palavras Kevin pôde ver como estava tímida - se ele não queria sair um pouco. Para qualquer lugar.

Ele queria.

Virginie deve ter visto a mensagem também, pois sorriu de maneira triste para o filho.

"Vai lá", ela sussurrou. "Não se preocupe demais, ok?"

Kevin não respondeu, apenas deu um último abraço na mãe e saiu do quarto. Não conseguia mais ficar ali.

Como ele não se preocuparia com uma coisa daquelas? Como poderia deixar para lá? Ele não podia. Nunca.

Rebecca não queria conversar sobre aquilo com a mãe. Não queria mesmo.

"Eu só acho tudo isso estranho, querida", disse Julie pelo que pareceu ser a centésima vez. "Você e esse Kevin... Tem certeza que não quer me contar a verdade?"

Becca respirou fundo e se encolheu ainda mais no sofá da sala, escondendo o rosto atrás do livro que estava lendo antes da mãe chegar furtivamente e lançar perguntas cada vez menos discretas sobre seu relacionamento com Kevin.

Embora se sentisse mal ao pensar naquilo, Becca estava começando a cogitar a ideia de fugir da mãe sempre que ela chegasse do hospital. Julie não podia vê-la sozinha para que começasse as suas intermináveis indagações sobre Kevin e o fato de Becca estar... Como ela dizia mesmo? Ah, sim, saindo tanto ultimamente.

Era irritante em um nível estratosférico.

"Mãe, não tem verdade nenhuma", Becca disse novamente, tentando reprimir um suspiro de exaustão. "Dá para parar? Qual é o problema que eu saia com ele afinal de contas?"

"As pessoas vão começar a comentar, sabia? Vão achar que estão juntos."

"E daí? Não ligo para o que elas possam ou não falar. Isso não é problema meu."

"Rebecca!"

"O que foi? É verdade!"

Então o livro foi arrancado de suas mãos e ela resmungou irritada, se sentando no sofá e olhando para a mãe com as sobrancelhas franzidas, lutando para não fazer algo tão infantil quanto bufar.

"O que a senhora quer saber afinal de contas?"

Julie se aprumou no braço do sofá, armando-se de sua melhor expressão severa.

"Quero saber como se envolveu com esse garoto. Por que de repente decidiu sair tanto, ir a festas e..."

"Eu só fui a uma festa..."

"Almoçar na casa dos pais dele..."

"A mãe do Kevin faz parte da comissão organizadora do festival e quis me conhecer..."

"E agir de modo tão diferente."

"Mãe!" Rebecca exclamou, agora se levantando do sofá.

Tudo o que Becca queria era ter um sábado relaxante depois de uma semana de provas, trabalho e muitos ensaios. Estava exausta e queria descansar, tentando ignorar que faltava apenas duas semanas para o festival e não surtar antecipadamente.

Desde que mandara para a direção da escola a música que cantaria no festival de talentos, vinha se sentindo leve como uma pluma, satisfeita pela escolha que havia feito e tendo certeza que aquela era a canção ideal. Mas sua mãe estava fazendo toda aquela sensação boa ir embora sem que ela nem a tivesse experimentado direito.

"Mãe, eu não estou agindo de forma diferente, ok? Só... esqueça isso", Becca falou por fim com um suspiro.

"Esquecer?" Julie revirou os olhos. "Só estou preocupada com você."

"Preocupada com o quê?" Rebecca tentou respirar fundo, impedindo-se de gritar. "Mãe, só porque eu decidi descer um pouco da minha torre não quer dizer que eu me transformei em outra pessoa, tá legal? Eu só decidi... Viver um pouco. Conhecer outras pessoas da minha própria cidade. Qual é o problema disso?"

"Só não é do seu feitio."

"Bem, mas talvez agora seja."

"Rebecca..." Julie suspirou e massageou a ponte do nariz. "Não acho que esteja sendo totalmente sincera comigo."

Rebecca abriu a boca para responder, mas nada saiu dela. Ao invés disso, pensou no que a mãe estava dizendo.

De fato, Becca não tinha contado tudo para ela.

Julie não sabia sobre o acordo entre Kevin e Rebecca e nem o que aquilo significava. Também não sabia como, lá no fundo, Becca tinha usado aquele acordo em parte por que queria sair um pouco mais de casa, não só pelo que Melissa tinha lhe dito naquele dia quando tentou se inscrever no festival pela primeira vez.

Mas, será que ela entenderia se contasse? Becca não fazia ideia.

"Mãe, não tem nada mais para dizer, ok?", ela disse baixinho, desejando que Gabrielle ou Fred surgissem na sala de repente pedindo a atenção da mãe, mas é claro que os pestinhas nunca apareciam quando ela realmente precisava deles. "Kevin e eu somos amigos. Eu decidi sair um pouco mais de casa e não tem nada por trás disso. Agora, se a senhora me der licença", Becca pegou se aproximou da porta, "vou subir para ensaiar mais um pouco. Eu realmente quero tentar ganhar esse festival." E, baixinho, completou: "Seria ótimo passar uma parte das férias em Los Angeles..."

"Los Angeles?"

Rebecca parou antes que pudesse sair da sala. Droga.

"É, Los Angeles", Becca disse, voltando a olhar para a mãe. "Eu te disse sobre isso, lembra? Quem ganhar em primeiro lugar terá direito a uma viagem para Los Angeles."

"E você considerou essa ideia?", perguntou Julie, parecendo horrorizada.

"É claro que considerei", disse Becca franzindo as sobrancelhas. "Estou participando do festival, não estou?"

"Você é nova demais para ir tão longe sozinha..."

"Se eu ganhar tenho direito a dois acompanhantes. Estava pensando em levar Simon ou..."

"Mesmo assim. É perigoso."

Rebecca sentiu a raiva queimar em seu corpo e, antes que tivesse noção das palavras, falou:

"E o que não é perigoso para a senhora, mãe?" Ela se aproximou de Julie, agitando os braços ao lado do corpo como se assim pudesse se fazer entender. "Você cria uma tempestade em torno de tudo o que eu faço que seja minimamente diferente! Uma festa, minhas saídas com Kevin... Tudo. Será que é tão difícil entender que o mundo talvez não seja um monstro de sete cabeças pronto para devorar qualquer um que saia um pouco da zona de conforto?!"

Rebecca parou de falar, arfando e sentindo as bochechas queimarem. Ela olhou para Julie, que encarava a filha de uma maneira que a fez recuar e se sentir culpada.

Ela parecia verdadeiramente magoada e Becca se sentiu a pior de todas as filhas.

"Tudo o que eu falo, tudo isso, sempre foi por te amar demais."

"Eu sei", Becca disse baixinho, de repente sentindo as lágrimas arderem em seus olhos. "Mas às vezes me sufoca..."

Julie se levantou e tentou se aproximar da filha, mas Becca deu um passo para trás e virou o rosto.

"Quero ficar um pouco sozinha, ok? Vou... caminhar um pouco."

"Becca..."

"Não volto tarde."

E ela saiu da sala, tentando a todo custo engolir o enorme nó que se formava em sua garganta.

Becca não queria se sentir culpada pelo que disse para a mãe, mas também não queria ficar zangada com ela. Porém, naquele momento, precisava de espaço. Precisava de...

Achava que precisava de Kevin.

Porque ele sempre tinha a coisa certa a dizer. Sempre fazia uma gracinha qualquer e a olhava com aquele sorriso prepotente no rosto, fazendo com que, como em um passe de mágica, tudo ficasse bem.

Caminhando para longe de casa, na beira da estrada que levava a cidade, Rebecca pegou o celular.

Uma parte dela não queria provar que a mãe estava certa, que estava passando tempo demais com Kevin e que aquilo poderia significar outra coisa. Já a outra parte... A outra parte simplesmente a mandava engolir o orgulho e mandar uma mensagem para ele.

Rebecca, mesmo se sentindo envergonhada, obedeceu à sua segunda parte.

Cinco minutos depois e o carro familiar de Kevin surgiu na estrada, vindo com velocidade. Ele parou, abriu a porta do passageiro para ela e Becca percebeu que ele também não parecia estar no melhor dos humores.

"Você está bem?", ele perguntou preocupado, quando Becca entrou e abraçou a si mesma.

Ela fez que não levemente com a cabeça.

"Meio que briguei com a minha mãe."

Kevin apenas assentiu em compreensão. Não perguntou o que tinha acontecido, não a pressionou para saber mais. E Becca ficou grata por aquilo.

"Você também não parece muito bem", ela comentou quando Kevin voltou a dirigir em direção à cidade.

"É. Acho que não estou não."

Alguns segundos de silêncio se passaram até que ele falou, os olhos fixos na estrada:

"Quero te mostrar um lugar."

Eles tinham saído da cidade pelo norte. Kevin dirigiu por uns vinte quilômetros até entrar por uma trilha de terra que subia e subia sem parar. Quando ele finalmente parou e os dois desceram do carro, Becca o seguiu sem dizer nada.

Só queria pensar em qualquer outra coisa que não fosse a discussão com a mãe e a bagunça de seus próprios sentimentos.

Depois de andarem um pouco em meio às árvores, Kevin a segurou pela mão e os dois começaram a subir por uma trilha de pedra. Ela era um pouco íngreme e escorregadia, mas Kevin não soltou sua mão e eles subiram até chegar ao topo do que era uma grande elevação de pedra.

Quando chegou lá no alto, Becca estava arfando e suando. A trilha era realmente difícil.

Ela estava tão preocupada em recuperar o ar que, quando ergueu a cabeça para ver o horizonte mais além, quase caiu monte abaixo.

Kevin sorriu levemente ao ver a reação dela ao pôr do sol.

Becca ficou olhando para o céu, que agora era uma mistura de azul, laranja e lilás na linha do horizonte. A rodovia lá longe era algo muito pequeno, onde carrinhos de brinquedo corriam sem parar, indo e vindo.

Ela olhou para natureza, para o verde lá embaixo, e sentiu o vento fresco bater no rosto.

Naquele segundo, se sentiu no topo do mundo. Sentiu como se todos os seus problemas fossem coisas pequenas demais em comparação ao vasto infinito.

Kevin a levou até uma elevação na pedra e eles se sentaram em silêncio, observando enquanto lentamente o sol se punha.

"É lindo", ela disse baixinho, depois de muitos minutos em silêncio. "Como conhecia esse lugar?"

Kevin sorriu e deu de ombros.

"Max e eu o descobrimos uma vez enquanto acampávamos aqui perto. Desde então tento vir aqui de tempos em tempos. Sempre me faz... relaxar."

"As coisas parecem bem pequenas daqui de cima, não é?"

Kevin olhou para ela e seus olhos castanhos pareciam tão límpidos e claros como o sol. Rebecca pensou que poderia se afogar neles.

"É exatamente o que eu penso", ele disse apenas, e então franziu as sobrancelhas, como se tentasse ver através dela.

Becca sorriu e voltou a olhar para o horizonte.

"Minha mãe acha que o mundo é um lugar horrível e cheio de perigos", ela falou de repente, e a cada palavra sentia seu corpo ficar mais leve, como se fosse flutuar. "Mas eu acho que ele é lindo. Cheio de coisas para ver, de pessoas incríveis para conhecer."

Becca se abraçou. Parecia que estava sozinha ali, só ela e seus pensamentos que já não pesavam tanto.

Inconscientemente, deixou com que as coisas ruins saíssem de dentro dela.

"Tenho raiva do meu pai por ter me deixado", continuou com a voz trêmula. "Tenho raiva por ele ter deixado minha mãe daquele jeito, tão desconfiada e amedrontada. Tenho raiva por nunca mais ter ligado, por não ter mandando nem um cartão de aniversário." Ela enxugou as lágrimas com a gola da blusa. "E mesmo assim, acho que se um dia ele viesse e pedisse perdão, eu me jogaria nos braços dele e choraria como uma garotinha, dizendo que senti saudades."

Kevin olhou fixamente para ela, as lágrimas em seu rosto brilhavam como diamantes à luz do sol.

"Eu odeio o meu pai", ele falou então, e a verdade das palavras e a raiva contida nelas o fez ficar tonto. Rebecca olhou para ele, mas Kevin já tinha se voltado também para o pôr do sol. "Odeio aquele homem de uma maneira que nunca vou odiar outra pessoa na minha vida." Inconscientemente, levou a mão à testa. "Foi ele que me deu essa cicatriz, anos atrás. Mas ela é muito pequena se comparada as que não são visíveis. Tanto as minhas quanto as da minha mãe e as da minha irmã. E eu o odeio por isso."

Rebecca controlou o arquejo que desejava sair por seus lábios. Controlou a surpresa e o terror pelo que ele tinha acabado de revelar. Dentro de si seu coração se revirou em dor ao imaginar o pai de Kevin fazendo aquelas coisas terríveis...

Como não tinha percebido aquilo antes?

Ela viu quando ele engoliu em seco. Viu seu coração pulsar descontroladamente na garganta.

"Sempre amei crianças, desde que me entendo por gente. É no meio delas que me sinto vivo", ele continuou baixinho. "Mas eu também menti para você quando disse que a caxumba que sofri na infância não deixou sequelas. Porque ela deixou." Ele abriu o sorriso mais triste que Becca já tinha visto na vida e confessou: "Nunca vou poder ter as minhas próprias crianças. É essa a verdade. Sei que, com dezessete anos, não deveria me preocupar com isso, mas o fato de que nunca..."

Ele não continuou. Não conseguiu.

Cobriu os olhos com uma das mãos e baixou a cabeça.

Rebecca o abraçou.

Não sabia o que dizer. Não sabia nem o que pensar. Mas Kevin, o garoto por quem ela acabara de perceber que estava se apaixonado, estava sofrendo e revelando coisas que ela nunca sequer tinha imaginado sobre ele...

E ela estaria ali. Por Deus... Ela estaria ali pelo tempo que ele precisasse dela.

"Desculpe", ele sussurrou se afastando ligeiramente dos braços dela. "Eu não devia..."

"Não fala nada", ela pediu baixinho, com uma das mãos acariciando de leve a bochecha dele. Se pudesse, compartilharia da dor dele para que pudesse ver aquele brilho em seus olhos de novo. Mas tudo o que podia oferecer era sua presença, e ela esperava que aquilo bastasse. "Tá tudo bem, Kevin. Tá tudo bem."

Ela então segurou a mão dele e pousou a cabeça em seu ombro. Em silêncio, eles ficaram observando o sol se pôr.

______________________❤️__________________

Oii gente! Como prometido, mais um capítulo durante a semana <3

O que acharam? Esse foi bem difícil de escrever e bastante intenso, por isso estou ansiosa para os comentários de vocês... É sempre muito difícil tratar um tema como relacionamento abusivo/violência doméstica. Tudo que escrevi aqui é com base em relatos de vítimas reais e muito estudo sobre casos assim, mas mesmo assim peço desculpas se posso ter ofendido alguém.

Mas, então, sobre Kevin e Rebecca... Esses dois estão passando por um período difícil, né? O que acharam desse final? Me contem tudo <3

Ah, e para quem ainda não viu, tem livro novo no perfil, hein! Vai ser um prazer ter vocês lá também.

Bom, por hoje é isso gente, beijos e até logo!

Ceci.

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