• Capítulo Dezenove •
Rebecca parou de cantar quando sentiu a garganta doer. Ela bebeu um gole de água da garrafinha que estava sobre sua escrivaninha e deu o ensaio como que por encerrado.
Ela já estava cantando e exercitando a voz por mais de uma hora e ou parava naquele instante ou acabaria ficando rouca.
Preguiçosamente ela foi até sua janela e percebeu que o sol ainda estava alto no céu. Era quatro horas da tarde e ela já tinha ensaiado, atualizado o blog e feito todos os deveres de casa. Era quinta e como ela não ficava na confeitaria naquele dia aproveitava para organizar tudo.
Becca voltou ao laptop ligado na escrivaninha e olhou para seu papel de parede que era uma fotografia de uma máquina de escrever antiga que ela achava linda. Sua mente, porém, não estava ocupada com a escrita, na verdade ela estava mais preocupada com a música.
O dia seguinte era a data limite para que todos os participantes do festival passassem à direção qual seria a música escolhida para o dia do evento. Becca, apesar de estar ensaiando todos os dias e trabalhando para que sua voz ficasse linda como nunca, ainda não tinha a mínima ideia do que cantar no festival.
Ela sabia que sua voz era mais compatível com músicas lentas e melodiosas, mas mesmo assim não tinha encontrado uma única canção que tocasse seu coração, que mostrasse ser perfeita para uma noite que sem sombra de dúvidas seria um divisor de águas para ela.
Precisava encontrar a música certa. Não queria escolher qualquer uma.
Mas o tempo estava acabando.
Becca estava prestes a descer as escadas e fazer um lanchinho de meio da tarde na casa vazia – aliás, sua mãe e Simon estavam no trabalho e Gabrielle e Fred sempre ficavam na casa da avó depois da aula para que o irmão mais velho os buscasse depois – quando seu celular vibrou.
Ela sorriu ao perceber que era Kevin.
Kevin: Loira, a torta ficou sensacional! Sério, eu não sei cozinhar direito, mas você tem que me passar a receita.
Ela riu enquanto lia a mensagem, sentindo algo muito bom vibrar em seu peito.
Becca tinha entregado uma torta de limão a Kevin no dia anterior quando ele deu uma passadinha na confeitaria prestes a fechar. Ele tinha cobrado a tal torta de Rebecca a semana toda desde que ela o forçara a tocar uma de suas músicas naquele almoço de domingo, por isso ela tinha preparado uma em casa e levado para o trabalho para que ele buscasse.
Aparentemente, tinha ficado boa.
Rebecca: E arriscar que você estrague uma obra prima dessas? Nem pensar.
Ela esperou ansiosa enquanto ele digitava.
Kevin: Não seja esnobe. Você não é assim.
Rebecca: É isso que conviver com você por tempo demais tem me tornado. A culpa é toda sua.
Kevin: Mas eu não sou esnobe de um jeito chato.
Rebecca: Nessa eu tenho que concordar. Você é esnobe de um jeito insuportável...
Ele riu e ela sorriu, olhando para as mensagens que eles tinham trocado. Quando falar com ele todos os dias tinha se tornado algo natural como respirar?
Ela hesitou um momento antes de mandar a próxima mensagem, perguntando-se se aquilo era uma boa ideia. Mas, antes que ficasse toda paranoica, rapidamente digitou as palavras e enviou.
Rebecca: Ei, o que você está fazendo agora?
Cinco segundos de profunda expectativa se passaram para ela antes que ele respondesse.
Kevin: Vou dar um pulinho no orfanato.
Ela esperou mais um pouco, os dedos prestes a tocar a tela.
Mas então outra mensagem dele surgiu.
Kevin: Quer vir junto?
Ela sorriu e, inconscientemente, deu um pulinho de animação.
Então parou, olhou para os lados como se alguém além de Nick pudesse ter visto aquilo e fechou a cara.
Não seja ridícula, Rebecca, disse a si mesma. Controle-se.
Tentando a todo custo segurar o sorriso, ela digitou um simples "é claro" e jogou o celular em cima da cama quando Kevin disse que estaria na casa dela em cinco minutos para que pudessem ir juntos.
Em cinco minutos Rebecca não conseguiria dar uma upgrade muito bom em sua aparência cansada e descabelada, por isso limitou-se a tirar a calça jeans e vestir um shorts mais fresco. Também trançou o cabelo de lado e usou uma fita azul na ponta.
E passou um brilho clarinho nos lábios. Apenas por força do hábito.
Quando ela ouviu o som de pneus se aproximando na estrada, fez com que Nick saísse do quarto para que trancasse a porta. Porém, antes de fazer aquilo, lançou um rápido olhar para o laptop em cima da escrivaninha e sentiu uma onda de apreensão tomar conta de seu estômago.
"Tudo bem", disse a si mesma, tentando sorrir corajosamente. "A música certa vai aparecer até amanhã de manhã, não vai, Nick?" O grande Husky Siberiano limitou-se a descer as escadas em caracol, obviamente chateado por ela ter lhe expulsado do quarto.
Ao chegar lá embaixo e trancar a segunda porta de sua torre, Rebecca jogou a chave na bolsinha que levava consigo e observou Nick dirigir-se a varanda de casa e deitar-se preguiçosamente perto da porta de entrada. Becca pensou que só a presença do cão enorme já era uma medida de segurança e tanto contra possíveis invasores.
Então ela se virou para a estrada e viu Kevin pular do carro, vestindo uma calça jeans escura e uma camiseta preta que deixava seus braços musculosos a mostra. A pele dele parecia refletir ao sol, assim como aquele sorriso sarcástico. Ao olhar para aqueles braços Becca sentiu a temperatura de seu corpo subir perigosamente.
Bom, está um dia muito quente hoje, ela disse a si mesma mentalmente, aproximando-se de Kevin e evitando umedecer os lábios, que por algum motivo tinham ficado secos. Muito quente mesmo...
Ao chegar perto o suficiente dele, Becca percebeu que seus cabelos castanhos estavam ligeiramente bagunçados e molhados, e que seu corpo exalava o perfume de um sabonete delicioso. Olhando para aqueles olhos que reluziam, Becca por um segundo se esqueceu de quem era e qual língua falava.
"Nas quintas, azul", ele disse então, estreitando os olhos para o laço que ela tinha no cabelo. "Você leva isso bastante a sério, não é?"
Rebecca piscou, engoliu em seco e olhou para ele, armando-se do seu melhor sorriso casual.
"É automático. Você também já deve ter percebido que nas quartas eu uso laços cor-de-rosa."
Kevin ergueu uma sobrancelha escura para ela e sorriu de lado.
"Posso dar uma de Capitão América e dizer que entendi a referência?"
Rebecca riu e revirou os olhos.
"Nós vamos ou não, soldado Rogers?"
Ele soltou uma risadinha e estava pronto para subir no banco do motorista quando ela pigarreou. Kevin lhe lançou um olhar questionador.
"Não vai abrir a porta do carro para mim?", ela perguntou docemente.
"Por que eu abriria a porta do carro para você?"
"Porque você ainda é um cara em treinamento." Becca sorriu para ele. "Ou já se esqueceu do nosso acordo?"
Kevin fechou a cara e murmurou algo incompreensível, mas foi até a porta do passageiro e a abriu para Rebecca.
"Aqui está, madame. Não vai se acostumando."
"Ah, mas hoje eu estou tão disposta a te dar conselhos e dicas amorosas..."
"Já me arrependi por ter te chamado para vir comigo, sabia?"
"Que pena."
Kevin então pulou para o banco do motorista e deu partida no carro, voltando pela estrada que levava à cidade.
Becca arriscou um rápido olhar para ele e viu com clareza o corte em sua bochecha. Ele tinha tirado o curativo no dia anterior e a pequena marca parecia profunda. Ela se encolheu quando percebeu que vez ou outras gotículas de sangue surgiam no ferimento.
"Você está cuidando disso aqui direito?", Becca perguntou. Kevin não precisou olhá-la para saber do que estava falando.
"É só um cortezinho. Já sofri coisas piores."
Ela revirou os olhos.
"Estou certa que sim, Superman, mas mesmo assim..." Ela inclinou-se e antes que pensasse no que estava fazendo tocou o ferimento na bochecha de Kevin. Ele se encolheu e fugiu do toque dela. "Está doendo?"
Kevin apenas resmungou alguma coisa. É claro que ele não iria admitir que estava doendo.
Becca respirou fundo e mordeu o lábio inferior.
Na manhã de segunda-feira, quando ela vira Kevin pela primeira vez depois do almoço na casa dos pais dele, soube que tinha algo errado. O sumiço repentino dele tinha sido muito mal explicado e ele demorara um certo tempo para agir normalmente com ela de novo. Rebecca, por mais que quisesse, não conseguia tirar o episódio da cabeça e perguntou-se se ele tinha agido daquele modo por causa da refeição claramente desconfortável que ela tivera em sua casa ou porque tinha descoberto sobre suas canções.
Talvez fossem os dois, mas mesmo assim... Tinha algo a mais ali. Ela tinha certeza.
"Como foi mesmo que você se machucou?", Becca perguntou depois de um instante de indecisão. Ela percebeu quando os ombros de Kev ligeiramente se encolheram e ele olhou ainda mais fixamente para a estrada.
"Eu..." Ele hesitou. "Me cortei sem querer com o barbeador."
Rebecca não disse nada. Era verdade que não sabia muito sobre se barbear e o que a lâmina podia causar na pele do rosto, mas ela tinha quase certeza que nunca vira um corte daquele jeito no rosto de Simon, que também se barbeava com frequência e vez ou outra aparecia com pequenos cortes no rosto.
Antes que Rebecca pudesse dizer mais alguma coisa, Kevin sorriu e lançou um rápido olhar para ela.
"Então, como anda os ensaios?"
"Bons, eu acho", Becca respondeu depois de decidir que era melhor deixar aquilo para lá, pelo menos por enquanto. "Vou pedir para que Mandy me escute na semana que vem e me fale o que está achando. Eu só... Estou tendo um probleminha com a minha música."
"O que tem ela?"
Rebecca fez uma careta antes de responder.
"Meio que eu ainda não escolhi qual vou cantar."
Kevin ergueu as sobrancelhas para ela.
"Você não tinha que passar a tal música para a organização amanhã?", ele perguntou. "Minha mãe não para de falar sobre esse festival comigo, então estou meio que por dentro de todos os detalhes."
"Bom, é isso mesmo", disse Becca, olhando pela janela do carro e sentindo o vento bater no rosto. "Mas eu ainda não me decidi. Acho que é por isso que estou aqui agora. Preciso me distrair um pouco antes de voltar à caça à música perfeita. Isso é bem estressante."
Kevin ficou em silêncio por um tempo antes de dizer:
"Nem vou dizer para você escolher qualquer uma e relaxar, acho que sei que as coisas não funcionam assim com a música."
Becca olhou surpresa para ele e percebeu com um sorrisinho que seu rosto estava um pouco vermelho. Decidiu não implicá-lo por causa disso, aliás, era a primeira vez que Kevin dizia algo a respeito de música com ela desde que tinha descoberto sobre suas canções. Ela queria, mais que qualquer outra coisa, que ele não tivesse medo de ser quem era perto dela e nem de falar sobre o que gostava.
E aquilo, aquele pequeno comentário, já era um avanço e tanto.
Eles então chegaram à cidade e menos de dois minutos depois Kevin estacionou em frente ao orfanato, que era um prédio bem cuidado e alegre, com um jardim muito fofo na frente.
Todos dizem como era impressionante uma cidade daquele tamanho ter um orfanato tão bem administrado e que abrigava tantas crianças vindas de outros lugares. Becca pensava que aquilo – até mais do que o fato que a família de Kevin era dona de uma famosa e bem avaliada rede de restaurantes no país – tornava os MacCormacks tão bem vistos por todos.
Ela observou quando Kevin deu a volta no carro e abriu o porta-malas, tirando seu violão lá de dentro e colocando a alça da capa que o guardava nas costas. Becca sorriu, sentindo seu coração chacoalhar.
Kevin notou que ela estava observando e desviou os olhos rapidamente, murmurando algo como:
"As crianças gostam quando eu toco."
Becca sorriu ao notar novamente aquele rubor em seu rosto absolutamente perfeito.
"Tenho certeza que gostam." Eles então atravessaram a rua e Kev tirou um molho de chaves do bolso, abrindo o portão que levava ao interior do orfanato.
Eles estavam na metade do caminho de pedra que levava até o pátio externo da construção quando Becca ouviu um gritinho estridente vindo de algum lugar.
"Gente, é o Kevin!"
Ela sorriu e olhou para os lados, vendo um garotinho de no máximo sete anos sair de trás de uma moita no jardim e correr para eles com dois carrinhos vermelhos nas mãos. Becca olhou para Kevin e o viu sorriu e se abaixar, abrindo os braços. O garotinho se jogou tão fortemente contra ele que os dois quase foram parar no chão.
Ela não conteve a vontade de rir.
"Ei, Mark!" Kevin cumprimentou, se levantando e bagunçando os cabelos loiros do garotinho. "O que você está fazendo brincando aqui fora? Esse sol vai torrar seus neurónios."
"Louise tinha escondido meus carrinhos em algum lugar", ele falou com um sorriso banguela devido aos dentes de leite que tinham caído. "Mas eu encontrei, olha!" E ele mostrou os carrinhos sujos de terra.
Kevin estreitou os olhos para o garotinho, mas havia um sorriso genuíno em seu rosto.
"Eu aposto que ela não escondeu isso aí de propósito, não é?"
Mark pareceu um pouco envergonhado.
"Eu meio que coloquei um sapo na cama dela ontem."
"Um sapo?!"
Rebecca cobriu a boca para tentar abafar a risada que lhe subiu à garganta.
"É sim", disse Mark estufando o peito, como se tivesse feito algo absolutamente incrível. "Foi engraçado, mas depois a Sra. Virginie ficou uma fera!"
"Eu aposto que ficou, sim", disse Kevin com uma gargalhada. "Mas não coloque mais sapos na cama de ninguém, ouviu?"
"Eu vou tentar."
Naquele instante o que pareceu ser uma horda de crianças surgiu, vindas de diversas direções. Elas correram até Kevin gritando e pulando, envolvendo os bracinhos nas pernas dele.
Cada um falava por cima da outro.
"Kevin, você não vem há... três dias!"
"Ah, você trouxe o violão! Vai me ensinar aquela música hoje, não vai?"
"Kev, eu estava com tanta saudade..."
"E onde está Megan?"
"Quem é essa com você? Uau, ela é linda, não é?"
"Tio, Kev, vai tocar para gente hoje, não vai? Diz que sim, por favor!"
"Ei, meninos", Kevin disse rindo, depois de tentar – inutilmente – dar atenção a todos. "Que tal a gente não ir lá para dentro primeiro? Aposto que a Sra. Ruben vai ficar uma fera se encontrar todo mundo aqui fora nessa hora do dia."
"Vou mesmo", uma senhora de meia idade disse, vinda de uma porta lateral do pátio. "Vocês vão acabar pegando uma insolação!"
As crianças então pegaram nos braços de Kevin e começaram a arrastá-lo para dentro do orfanato. Ele sorriu para Rebecca e sussurrou em seu ouvido:
"Ela é a zeladora do orfanato", ele disse. "É um pouquinho exagerada, como já deve ter percebido, mas se preocupa mais com essas crianças do que se preocupa consigo mesma."
"Isso é bom, não é?"
"Na maior parte das vezes sim, a não ser quando você quer ter alguma diversão..."
"E essa diversão inclui sapos nas camas das crianças?"
"Ei, não fui eu quem ensinou isso ao Mark..." Mas Kevin se calou subitamente e franziu as sobrancelhas. "Mas acho que mencionei um dia desses como gostava de colocar animais nojentos na cama de Megan quando era pequeno."
"Você é impossível", Becca disse rindo e lhe dando um tapinha no ombro.
Ela então o seguiu de perto até uma ampla sala mobiliada no interior do orfanato. Havia uma tapete fofinho e diversos sofás e poltronas por ali, que estavam virados para uma grande lareira apagada.
Kevin se sentou no tapete mesmo, puxando Becca para perto dele, e as crianças – que juntas deviam somar umas quinze – também se sentaram por ali, formando uma roda.
"Bem, gente, essa é a Rebecca", ele disse quando todos se acomodaram, indicando Becca que sorriu um pouco envergonhada e acenou para as crianças. "Ela é..."
"Sua namorada?", uma garotinha ruiva de olhos sonhadores sugeriu. "É linda!"
Rebecca sentiu suas bochechas esquentarem.
"Obrigada", ela disse, ao mesmo tempo em que Kevin falava que ela era só sua amiga.
"O seu cabelo é de verdade?", outra menina perguntou, olhando para o cabelo de Becca com os olhos brilhantes. "É tãããão grande!"
Ela riu e assentiu com a cabeça.
"É sim."
"Nossa..."
"Gostam de fazer penteados? Se quiserem, sou toda de vocês."
Umas seis garotas de uma vez se levantaram, empolgadas, e correram até Rebecca, os olhinhos brilhando de entusiasmo. Becca desfez a trança e balançou a cabeça, deixando com que os cabelos caíssem soltos sobre os ombros. A garotinha ruiva passou a mãozinha pelos fios como se fossem a coisa mais linda que ela já tinha visto.
"Vamos te deixar ainda mais bonita, Rebecca", uma delas disse batendo palmas. "Espere só aí que eu vou buscar minhas presilhas coloridas!" E ela saiu correndo pela sala junto de outras duas garotas.
Kevin olhou para Becca e abriu um sorriso de lado.
"Você só chegou há cinco minutos e elas já me trocaram por você..."
"Está com ciúmes?"
"Um pouquinho."
"Kev, olha só isso!" Um garotinho disse então, e levantou a franja espessa e mostrou a todos o grande galo que tinha na testa.
"Daniel! Que mer... O que é isso?", Kevin perguntou, inclinando-se para o garoto.
"Gabriel me deu uma bolada ontem e eu caí de cara no chão." Ele riu. "Na hora doeu muito, mas, me fala, você já viu um galo maior do que esse? Acho que eu devia entrar para o livro dos recordes!"
"E foi eu quem fiz", disse outro garoto, que só podia ser o tal Gabriel. Ele parecia bastante orgulhoso do seu feito.
"É realmente um galo impressionante, mas não sei se gostaria de ter visto isso na sua cabeça", disse Kevin. "Não tente repetir mais vezes, ok?"
Naquele instante uma garotinha entrou na sala. Ela tinha uma chupeta na boca e um coelho de pelúcia nos braços. Assim que viu a roda no tapete e seus olhos pousaram em Kevin, ela deu um pulo e correu até ele, rindo como se fosse a manhã de Natal.
"Ei, Lauren", ele disse pegando a garotinha no colo. "Você está linda hoje com essas Marias-chiquinhas."
"Você gosta?", ela perguntou de forma enrolada por causa da chupeta. Becca reparou que ela não devia ter mais que cinco anos. "Foi a Ju que fez." E ela apontou para uma das garotinhas que trabalhava no cabelo de Rebecca.
"Eu gostei muito, de verdade." Ele começou a fazer cócegas na barriga dela e Lauren riu, tentando se afastar enquanto agarrava seu coelho e o levava consigo.
Rebecca não conseguia processar o que estava vendo. Aquela luz nos olhos de Kevin, aquele sorriso... Nunca tinha visto algo tão verdadeiro na vida. Era arrasador.
"Kev, toca para gente, vai", disse um garotinho, se deitando de barriga para baixo no tapete e apontando para o violão. "Posso ser o primeiro a escolher a música hoje?"
"Pode sim."
Kev tirou o violão da capa e o ajeitou no colo, pousando as mãos sobre as cordas. Por um segundo, ele lançou um olhar para Rebecca e ela viu certo constrangimento ali, mas então ela sorriu e ele hesitou, mas depois sorriu de volta. Se aquilo fosse possível, Becca poderia jurar que seu estômago estava dando um passeio na montanha-russa mais irada da Terra.
O garotinho então sugeriu uma música qualquer e Kevin começou a tocar. A tal Sr. Ruben apareceu e colocou um grande prato de biscoitos no centro da roda e sorriu para Kev, logo depois saindo por uma porta com uma expressão satisfeita no rosto.
Becca não esperava que Kevin fosse cantar, mas era claro que sua voz também fazia parte das apresentações que ele fazia para as crianças, pois logo ela teve o enorme prazer de ouvir sua voz.
E era uma voz muito bonita...
Não que ele fosse um profissional, mas o modo como pronunciava as palavras, como sua voz grave as transformava em melodia... Becca sentiu todo o seu corpo se arrepiar. Todas as crianças, assim como ela, o olhavam fascinadas e relaxadas, como se estivessem no céu. As meninas que penteavam seu cabelo pararam o que estavam fazendo para também cantar baixinho, e toda a sala foi tomada por uma paz tão grande que ela desejou viver naquele momento para sempre.
Quando as notas cessaram e Kevin se calou, várias outras crianças fizeram seus pedidos e ele continuou tocando e cantando sem reclamar. Na verdade, parecia feliz como Becca nunca o tinha visto.
"Agora toca aquela música de Frozen!", uma garotinha negra de cabelos muito cacheados pediu com um sorriso enorme no rosto. "É a minha favorita!"
Kevin sorriu e pegou um biscoito do prato antes de começar.
"Sabe, eu nem vou te implicar por saber todas as músicas da Disney de cor", Becca falou casualmente durante aquela pequena pausa, sorrindo para Kev. "Acho admirável e de muito bom gosto."
Ele riu despreocupadamente e deu de ombros, o violão ainda nos braços.
"Ou eu decorava a trilha sonora de todos os filmes da Disney ou eles me comiam vivo."
"Ei, tudo bem, pode admitir que você fica assistindo O Rei Leão até tarde da noite e ainda chora com a morte do Mufasa."
"E quem não chora com a morte do Mufasa?", ela perguntou se fingindo de encabulado. "Só um psicopata, com certeza."
Becca riu e sentiu uma dose ainda maior de empatia por ele.
"Eu concordo plenamente."
Então Kevin tocou e cantou mais uma música, e mais uma e mais outra, atendendo a todos os pedidos das crianças.
"Agora é minha vez", uma garota pediu batendo palmas. "Toca aquela da Rapunzel, Kev!"
Kevin olhou meio envergonhado para a garotinha.
"Desculpe, princesa, mas acho que não sei cantar essa daí." Ele começou a dedilhar alguns acordes da canção, as sobrancelhas franzidas em concentração. "Mas acho que conheço a melodia, que tal?"
"Para mim tá bom", ela falou sem se importar, voltando os olhinhos para o violão e esperando ansiosa.
Kevin começou a tocar e, naquele exato instante, algo aconteceu.
Rebecca olhou para Kevin e deixou-se ser envolvida pela canção. Era como se o som a abraçasse e a levasse para um lugar de paz absoluta, onde tudo era perfeito. Ela observou aquele garoto que conhecia há pouco tempo, mas que já tinha se tornado alguém mais que especial para ela.
Alguém que... Deus, ela não sabia explicar.
Antes que se desse conta, abriu a boca e começou a cantar, tal como tinha feito naquele dia do piquenique, sendo levada puramente pela emoção.
Kevin olhou para ela surpreso, mas em seguida sorriu e assentiu levemente com a cabeça. Ela não conseguia tirar os olhos dele, e ele tão pouco os desviava. Era como se só existissem os dois e a música que produziam. E o mundo era perfeito.
Totalmente perfeito.
Os últimos acordes soaram e Becca se agarrou a eles como se fossem a coisa mais importante de sua vida. E, de algum modo e naquele momento, realmente eram.
"And it's warm and real and bright
And the world has somehow shifted
All at once everything is different
Now that I see you."
Então a música parou e eles ainda ficaram se encarando por alguns segundos, até alguém dizer:
"Puxa, você viu como ela canta? É lindo..."
Becca sorriu e agradeceu baixinho.
Naquele instante a Sra. Ruben apareceu novamente dizendo que um tal Sr. Jordan tinha feito um lanche da tarde completo para eles. As crianças gritaram animadas e correram até ela, deixando Kev e Becca sozinhos a não ser por uma garotinha de grandes olhos azuis e cabelos castanhos. Ela se levantou do tapete e se aproximou de Rebecca. Foi naquele instante que ela percebeu que a garotinha andava com dificuldade, mancando e praticamente arrastando a perna direita.
"Você canta muito bem, Rebecca", ela disse baixinho, parecendo envergonhada. "Parecia até uma princesa."
Becca sorriu e ergueu o braço, afastando com carinho uma mecha do cabelo dos olhos da menina.
"Obrigada, querida. Me conta, qual é seu nome?"
"É Judy."
"Sabe, Judy, eu acho que é você quem parece uma princesa."
Ela sorriu e fitou o chão, as bochechas ficando muito vermelhas.
"Obrigada. O Kev tem sorte de ser seu amigo."
Kevin riu e se aproximou de Judy, fazendo cócegas em sua barriga. Ela riu e se afastou com dificuldade.
"Você não acha que é Rebecca quem tem sorte de ser minha amiga?"
"Acho que os dois têm sorte, pronto!", ela falou sorrindo. "Você vai vir mais vezes, Rebecca?"
"Vou sim", Becca prometeu. "E a gente pode criar umas brincadeiras bem legais."
"Parece ótimo." Ela então se virou para porta que todas as crianças tinham passado agora a pouco. "Bom, é melhor eu ir antes que não sobre nada, não é?"
"É isso aí", Kevin concordou. "Você sabe como todos aqui são esfomeados."
Ela então foi andando com dificuldade até a porta.
Quando já tinha ido embora, Becca olhou para Kevin e abriu um sorrisinho.
"Ela é uma gracinha."
"É mesmo", comentou Kev, ainda olhando para porta por onde a garota tinha passado. "Ela... Não sei. Sempre me sinto diferente quando estou perto de Judy, como se a alegria e a inocência dela fossem transferidas para mim de algum modo." Ele então soltou uma risadinha e encolheu os ombros. "Sei que não faz sentido nenhum."
"Para mim faz", disse Becca bastante séria. Kevin sorriu para ela. "O que aconteceu com a perna dela?"
O rosto de Kevin se fechou e seus olhos se tornaram tempestuosos. Rebecca pensou que aquela devia ter sido a pergunta errada a se fazer.
Estava prestes a dizer que ele deixasse aquilo para lá quando Kev disse:
"Ela era abusada pelos pais na capital", ele contou, os olhos perdidos em algum lugar distante. "Eles a obrigavam a trabalhar e quando não conseguia vender tudo nos faróis batiam nela. Batiam muito." Ele engoliu em seco. "Quando ela foi resgatada, estava quase morta. Teve que passar semanas no hospital antes de ser transferida para cá. Ela faz fisioterapia na perna lesionada, mas ainda não sabemos se isso pode fazer com que ela ande normalmente algum dia. Minha mãe tem esperanças que sim."
Rebecca não sabia o que dizer. Seu coração parecia prestes a se partir em mil pedaços e sua boca estava seca como papel. Como pais podiam fazer aquilo com os próprios filhos? Como podiam agredi-los daquela forma? Era difícil acreditar que ainda existiam pessoas assim...
"Isso é horrível", foi tudo o que ela conseguiu dizer, porque nem em mil anos conseguiria descrever o que sentia.
Becca piscou para tentar afastar as lágrimas. Pelo jeito estava se revelando ser uma manteiga derretida de primeira classe...
Kevin, ao perceber aquilo, abriu um sorrisinho triste.
"É, é horrível sim."
Ele olhou para o violão em seus braços e Becca forçou-se a sorrir. Ela ainda conseguia ver com clareza as crianças sorrindo para Kevin como se ele fosse um herói ou algo do tipo, e, na verdade, ele era. Quantas pessoas tinham a disposição necessária para visitar um orfanato cheio de crianças carentes e se dispor a passar horas com elas, entretendo-as e fazendo-as rir?
A cada dia que passava, ela sentia que conhecia Kevin um pouco mais e que, surpreendentemente, gostava mais dele.
"Sabe, você vai ser um pai e tanto", ela comentou feliz. "Um dos melhores por aí."
Becca não percebeu como o corpo de Kevin ficou rígido naquele instante, não ouviu quando seu coração bateu acelerado no peito e nem se deu conta do leve e repentino tremor em seus dedos. E como poderia? Ele lutava para esconder cada um daqueles sinais.
Ele não conseguiu encará-la. Sabia que não era culpa dela ter dito aquilo, aliás, Becca não sabia que ele não podia ter filhos e muito menos que aquilo era uma ferida aberta que Kevin duvidava ser um dia capaz de curar, assim como tantas outras.
Ao invés disso, colocou um sorriso no rosto e se levantou do tapete, lhe dando a mão para que ela se levantasse também.
"Aposto que você vai querer provar os lanchinhos do Sr. Jordan, nosso cozinheiro. Ele é um verdadeiro chef."
Rebecca sorriu e seus olhos brilharam lindamente. Kevin, sem perceber, afastou uma mecha do cabelo loiro dela dos olhos, para que pudesse vê-la melhor.
Ele gostava dela. Gostava mesmo. Nunca tinha conhecido ninguém minimamente parecido, e aquilo era incrível ao mesmo tempo em que era assustador.
Juntos eles saíram da sala, mas antes que chegassem à cozinha lotada, Becca disse:
"Kevin, obrigada por ter me trazido aqui hoje. Eu amei, de verdade."
Ele então olhou para ela. Podia ter dito qualquer coisa engraçada ou irônica, tinha pelo menos mil possibilidades de frases já prontas em sua cabeça esperando para serem ditas, mas, ao invés disso, outra coisa completamente diferente saiu de sua boca, vinda do que ele supunha ser seu coração:
"Eu também estou feliz que você veio, Becca. De verdade."
Ela sorriu ainda mais e Kevin quis abraçá-la. Quis despejar para ela como aquela semana estava sendo difícil em casa e como ele parecia prestes a desabar a qualquer minuto.
Mas não fez aquilo. Não tinha coragem, apesar de confiar nela. Além disso, Becca já tinha problemas o suficiente e ele não queria atormentá-la com os dele também.
Por isso, apenas segurou sua mão na dele e a levou até a cozinha, onde foi rodeado pelo riso das crianças e tudo voltou a ficar bem por mais um tempo.
____________________❤️____________________
** Por favor, leia ***
Oii gente! Capítulo novinho para vocês <3
Primeiro de tudo, gostaria de dar um aviso: Se você tem condições de ficar em casa por esses dias, fique em casa! Sério gente, temos que ter cuidado para que o Brasil não fique como muitos dos países da Europa devido ao Coronavírus. Vamos ter consciência, ok? <3
E, como eu também estou de quarentena, vou aproveitar para escrever mais e liberar mais capítulos para vocês durante a semana, o que acham? Do Alto da Torre já não está longe de acabar e eu quero que vocês amem a reta final desse livro tanto quanto eu!
Outra coisa, tem LIVRO NOVO no perfil! Isso aí! Ele se chama Finalmente Você e eu estou super ansiosa para que vocês conheçam.
Agora, me contem, o que acharam desse capítulo? Eu já vinha sonhando com ele a um tempo e estou muito feliz por finalmente ter liberado para vocês. Me contem tudo aqui nos comentários!
Bom gente, é isso. Fiquem com Deus e se cuidem.
Bjs e até mais,
Ceci.
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