Capítulo 21

A porta na verdade dava para a parte de trás da loja completamente escura por conta da noite. Filipe pegou um lampião velho e começou a nos guiar por uma trilha que ao longe já podia se ver uma casa simples que assim que nos aproximamos pude perceber o ar estranho que a rondava ao olhar de canto para Kylo, sabia que não era a única a perceber isso.

Deixamos que o homem entrasse primeiro para que tivéssemos chance de conversar sem que ele acabasse escutando.

— O que está fazendo? — Kylo questionou sussurrando.

— Eu sei o que estou fazendo. — Asseguro seguindo para dentro da casa.

Na entrada era possível ver uma sala pequena e aconchegante com uma mesinha de madeira central com alguns brinquedos intocados e um vaso com flores mortas, em uma das paredes havia um quadro que não resisti e me aproximei para ver melhor, era o retrato de uma família de três membros, uma linda mulher sorridente de cabelos escuros segurando uma criança ruiva toda lambuzada de chocolate e ao lado da mulher um homem ruivo colocando uma flor no cabelo da mulher. Só podia ser Aemy e seus pais.

— É minha recordação favorita. — Filipe surge do meu lado me assustando. — Desculpe o susto.

— Tudo bem, não se preocupe. — Me recomponho olhando a foto. — Elas são sua família?

Ele fecha a expressão encarando a foto enquanto isso olho por cima do ombro para Kylo que apenas estava encostado na porta olhando para nós, volto minha atenção para Filipe quando ele fala:

— Eram. Minha esposa morreu e não vejo minha filha a anos. — Conta melancólico.

Apoio a mão no ombro dele com um sorriso compreensível para lhe oferecer conforto, Filipe apenas sorri fraco com um suspiro de lamento seguindo para outra parte da casa sem olhar para trás apenas fazendo um gesto quase imperceptível de afeto no vaso com as flores mortas antes de ir para a cozinha.

Era uma cozinha pequena e estreita com uma mesa de apenas três assentos que rapidamente um deles foi ocupado por Kylo que se sentou de qualquer maneira exausto. Sinto um calafrio ao pisar na cozinha demorando a me sentar encarando cada parte do cômodo com uma sensação horrível e inexplicável no peito.

Me assustei ao ouvir o som da chaleira vendo Filipe que provavelmente estava preparando algo para bebermos, outro susto dessa vez causado por Kylo que segurou minha mão com uma expressão de preocupação que apenas ignorei balançando a cabeça.

— Onde iremos dormir? Não temos a intenção de incomodá-lo. — Kylo se pronuncia, sentando-se corretamente.

— Não se preocupem com isso. Eu não fico nessa casa. — Filipe se aproxima da mesa e serve para todos uma xícara de chá de camomila. — Sintam-se à vontade nela contanto que me paguem ao amanhecer.

Troco olhares com Kylo pegando a xícara e bebendo um gole cheio, realmente estava precisando de um chá após tanta emoção em um dia só, além de duvidar que passaríamos mais que um dia nesta casa se dependesse de Kylo.

— O senhor não dorme? — Kylo estava visivelmente preocupado, mas Filipe apenas riu.

— Sabem como é, a certas dívidas que precisam ser pagas por um bem maior. — Explica tranquilo.

— Que dívidas fariam alguém trabalhar sem descanso? — Pergunto curiosa.

Filipe novamente permaneceu em silêncio bebendo o chá e assim que termina dirige-se para a pia começando a lavar a chaleira e a xícara sendo tempo o suficiente de Kylo e eu terminarmos nossos chás e Filipe se sentar novamente trazendo consigo uma garrafa de vodka.

— Dívidas impostas pela vadia desgraçada que está naquele trono imundo. — Filipe diz com raiva.

Kylo coloca a mão na boca para evitar rir ou até mesmo concordar enquanto apenas encaro o homem ao meu lado mais curiosa ainda e talvez um pouco chocada por ser a primeira vez que alguém ousa xingar a rainha. Ele percebe nossas reações e parece estar com medo agora.

— Sinto muito, não me entreguem aos guardas! Só pensei que... por um momento...

— Compartilhamos do mesmo desgosto pela rainha. — Interrompo sem me dar conta.

Kylo sorri orgulhoso para mim que me contenho em sorrir sem saber como me sentir, afinal havia falado sem pensar nas consequências.

— E que dívidas seriam essas? Alguma que possamos ajudar? — Kylo sempre agindo de bom coração.

— Minha filha está no castelo e para isso tudo que recebo deve ser entregue à rainha para recompensar os gastos que ela tem com minha filha. — Filipe conta com peso na voz. — Ninguém pode me ajudar porque ninguém tem autoridade maior que aquela víbora.

Estava claro que Filipe odiava com todas suas forças a rainha mas não é como se houvesse alguém que amasse o reinado dela depois de tudo que vi e ouvi, isso é de se esperar. Só me surpreende a capacidade de Sommar de ter escondido por anos que em vez de abrigar Aemy de braços abertos na verdade estava fazendo com que o pai dela vivesse na pobreza para pagar gastos que não fazem falta ao banco real.

Me levanto incomodada pensando apenas na dor que deve ser não ver sua única família por anos, aproveitando para levar as xícaras, lavar e deixar secando antes de voltar para a mesa vendo Filipe virar um gole generoso de vodka sem fazer uma careta sequer.

— Poderia nos contar o que houve para sua filha acabar no castelo? — Pergunto cautelosamente, colocando minha mão sobre a dele.

— Vocês são apenas crianças. Não conseguiriam entender mesmo que eu contasse. — Filipe responde seco.

Mas nenhum de nós estava rindo e achando graça, Filipe percebeu principalmente ao olhar de relance para Kylo que havia cruzado os braços com uma expressão séria e um tanto impaciente no rosto lembrando exatamente a postura de Raely.

— Argh! Certo, certo. Se me entregarem para a guarda levarei vocês juntos. — Ameaça antes de começar a contar o que aconteceu enquanto se embebedava às vezes tropeçando nas palavras e prolongando assuntos aleatórios.

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Não havia conseguido pregar os olhos naquela noite, mesmo que só tivemos tempo de tirar um cochilo já que a história ocupou nosso tempo até o raiar do sol. Pagamos o que Filipe havia cobrado e agora estava montada no cavalo me segurando firmemente em Kylo que guiava o animal para um destino que só ele sabia. A história e a conversa que tivemos quando Filipe não estava mais em casa passava pela minha cabeça como um filme em constante repetição.

Na hora que tivemos a conversa foi no quarto que diz Filipe ser dele e de sua falecida esposa. Me lembro que na hora estava tão enojada e impaciente que apenas me sentei na cama assim que Kylo entrou e comecei a questioná-lo incansavelmente. Inicialmente ele decidiu me ignorar até o ponto que se irritou e contou sem sutileza alguma.

— Quer tanto saber assim? Quer saber que Liat sabia que toda essa merda iria acontecer e junto a Theodoro fizeram a divisa? Que Raely e Inej estão naquele inferno de castelo cuidando das suas irmãs e de Laylah? E que Liat e Theodoro estavam lutando contra aquelas coisas do céu e eu fiquei encarregado de te proteger porque se você ficasse lá as ordens da rainha seriam para você ser uma espécie de sacrifício?!

Me lembro que não consegui reagir, apenas encarar o chão sentindo novamente aquele gosto amargo subindo lentamente pela minha garganta junto a uma ventania que começará fortemente do lado de fora da casa.

Mas não vou conseguir esquecer o momento que pela primeira vez havia visto Kylo com os olhos marejados ao falar.

— Vou te deixar segura e fazer Aemy pagar pelo que está fazendo. Não me importa o que ela passou porque isso não deveria definir quem ela é e as atitudes que está tomando!

Um relinchar me retira dos pensamentos vejo que havíamos parado em frente ao portão obscuro que além dele revelava diversos reinos e principalmente, dava passagem a Châdifir. Estranhamente não havia guardas no portão e nem sequer na porta para Auksinis Miestas, eles provavelmente estão com força total na proteção do castelo.

Desço rapidamente atrás de Kylo que andou em direção ao portão procurando alguma coisa, na pressa acabei batendo em algo que ao ver de perto era uma espécie estranha de pedra com o formato da coroa real. Passei minha mão e a pedra se afundou na montanha e com um rangido alto o portão se abriu fazendo uma poeira se levantar junto.

— Como?... — Pergunto mais para mim mesma.

— Estou começando a achar que as loucuras da minha mãe eram verdadeiras. — Kylo resmunga rindo surpreso. — Vamos logo.

Voltamos a andar dessa vez a pé, os primeiros passos para fora de Hayesfir me fizeram sentir um calafrio na espinha e borboletas no estômago sem acreditar que pela primeira vez na vida estava saindo de casa. Talvez em outra realidade, essa saída fosse qualquer outra em vez de um momento de completo caos e confusão total.

Conforme nos afastamos do castelo a sensação de medo aos poucos ia se dissipando mas no lugar a sensação de nervosismo se intensificava até que me lembrei de algo que me fez parar. Encarei Kylo que continuou a andar sem perceber que havia parado. Abro a bolsa começando a procurar qualquer coisa encontrando uma carta com a caligrafia de Liat, peguei e ao abrir havia algo que doeu muito mais já que nunca podia sequer imaginar algo do tipo.

Pode me punir, eu sei que sou uma traidora. Mas é verdade quando digo que não quero que ela ponha as mãos em você, não quero que seja uma versão minha, quero que seja alguém melhor. Sei que não irá me perdoar e já estou pronta para sua raiva, quero que saiba por mim que além de Aemy que provavelmente deve saber que era conhecida como Megera, a única pessoa que sabia era Theodoro porque não fui forte o bastante para deixá-lo leigo em meio a tantos segredos que tinha. Quero que saiba que assim como você, eu não posso culpar Aemy pelas escolhas que tomou, afinal ninguém seria capaz de ver sua mãe morrer na sua frente por guardas de outro reino e a rainha do reino em que estão abrigados simplesmente ignorar e depois cobrar uma dívida cruel para que uma criança estivesse segura. Diferente de Aemy, sei que você não é sua mãe e pode fazer escolhas diferentes! A muita coisa que você não sabe de mim e é culpa minha que não saiba já que fui eu que lhes escondi de você e se um dia puder pelo menos deixar que eu me explique pessoalmente, serei grata de contar absolutamente tudo que desejar saber sobre mim, sobre minha família e sobre o que sou. Ass: Tisífone.

Arregalo os olhos segurando as lágrimas ao amassar a carta e jogar fora voltando a andar em passos pesados e apressados em direção a Kylo que ao me ver novamente do seu lado apenas agiu normal e continuou a caminhar.

Respirei fundo encarando a completa mata que nos esperava mas agora meus pensamentos estavam confusos só tendo uma coisa clara, um único objetivo que é a certeza de que tenho que voltar para casa quando as coisas se acalmarem e encontrar Liat. Preciso de respostas!

Estava tão concentrada que somente a voz de Kylo e seu toque ao segurar minha mão com carinho me trouxeram a realidade e só consegui encará-lo surpresa quando ele disse:

— Vamos para o lugar mais seguro e longe daqui. Vamos para L'Hiver. 

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