PRÓLOGO


9 de Março de 1987,

corredores da Beacon Hills High School

REBECA

Take on me começa a tocar em meus fones no exato momento em que ela aparece no corredor. Óculos redondos apoiados na ponta do nariz, cabelos cacheados presos em um rabo de cavalo alto e olhos castanhos fitando o chão. Ela carrega alguns livros nos braços, segurando-os com força contra seu peito coberto pelo moletom azul, enquanto tenta não atrair atenção ao passar pela multidão de alunos eufóricos com o fim do dia letivo.

Ana Júlia tenta ao máximo se esconder por trás de sua mente brilhante e blusas de gola alta, mas nada disso é capaz de torná-la invisível. Pelo menos não mais. Não depois da onda avassaladora de boatos que surgiram com o seu nome.

Ela nunca chegou a ser invisível para mim, de qualquer forma.

A panelinha na qual ela está inserida é conhecida por toda a escola pelo apelido vergonhoso de nerds desajustados, mas Ana Júlia é a única nerd de verdade. Ela é a única que sempre rejeita grandes festas, que fica de fora das confusões, que tira notas capazes de me deixar enjoada às vezes. Ela é amada pelos professores, deixa seus amigos brilharem, como se estivesse mais do que feliz em ser ofuscada, ela é como a reencarnação de um anjo na Terra.

Vendo como as coisas estão acontecendo agora, com a notícia de que Júlia, a queridinha da Beacon Hills, foi pega beijando outra garota em uma boate do outro lado da cidade, eu entendo bem o motivo para ela venerar tanto a invisibilidade. Ela é um privilégio, até o dia que deixa de ser.

O dia todo fui obrigada a assistir enquanto os amigos dela procuravam briga em cada canto dos corredores onde algum burburinho se iniciava. Apesar da iniciativa ser boa, honrosa, não ajudava a desviar a atenção de Júlia. Uma grande placa de néon metafórica a seguia pela escola, aumentando de tamanho e proporção à medida que um novo apelido surgia.

Quando Ana Júlia atravessa a porta que leva até o estacionamento, o silêncio desconfortável que havia se instaurado volta a ser preenchido com o som da mais genuína fofoca. Se meus fones já eram capazes de me proporcionar felicidade normalmente, agora eles são a única coisa me impedindo de voar no pescoço dos garotos que estão rindo bem na minha frente.

Permaneço em silêncio enquanto espero Guilherme sair de sua última aula, que já deveria ter acabado a um bom tempo.

Quando finalmente o vejo caminhar calmamente em minha direção, com os primeiros botões de sua camisa desabotoados e um sorriso sacana na cara, nem mesmo cinco minutos devem ter se passado. Mesmo assim, é tempo o suficiente para que eu tenha muitos diálogos internos, remoendo tudo o que está acontecendo. Pensei sobre a vez que tentei fazer aula de literatura avançada apenas para conseguir conversar com Ana Júlia sobre Jane Austen, a sua autora favorita — ela fez todo um seminário mostrando as obras dela. Pensei sobre a vez que estudei feito louca para o debate de história que aconteceria na frente de toda a turma, apenas para conseguir enfrentá-la e, quem sabe assim, atrair sua atenção. Pensei sobre todas as pequenas atitudes que tomei em vão, mas mesmo assim não consegui reunir coragem para falar com ela e perguntar se precisa de alguém para desabafar.

Mas a verdade é apenas uma: ela não me dá bola.

Tiro os fones e guardo o walkman assim que Guilherme está a uma distância considerável. Ele não parece ciente de que, caso eu fosse alguém racional, já estaria em minha casa confortável a muito tempo. Apenas me encara, sua pele marrom brilhando de suor, seus olhos cor de jabuticaba inquietos, o colarinho de sua camisa entregando que alguém estava desesperado para arrancar suas roupas fora.

— Olha... — começo a falar assim que ele para do meu lado para pegar sua mochila no armário — Da próxima vez que você me abandonar pra ir xavecar nos cantos da escola, eu vou voltar pra casa sozinha.

— Não vai, não.

— Pode apostar que eu vou.

Ele coloca a bolsa no ombro e volta a me olhar, ainda sorrindo. Só que seu charme barato não funciona comigo.

— Dá pra deixar de ser careta? — ele fecha o armário com força — Primeiro que você nunca foi santa, segundo que, caso você também arrumasse alguém para xavecar, não estaria tendo tanto tempo livre para se incomodar comigo.

Se existe algo no mundo capaz de causar dor, essa coisa é a verdade. Guilherme é completamente craque em me humilhar sempre que tem a oportunidade.

— Eu tenho alguém para xavecar.

— Ah, é? Quem? Alguém que seja possível.

Como sempre, ele não facilita pro meu lado.

Revirando os olhos, dou meia volta e começo a caminhar na direção da saída. O silêncio é meu melhor amigo ao mesmo tempo que meu pior inimigo. O que vou dizer? Que passei meses investindo em alguém que nem sabe que eu existo de verdade? Devo dizer que estou ficando com uma das garotas que a escola toda sempre está de olho, mas que não sinto nada romântico por ela?

— Rebeca, você sabe o que dizem — Guilherme comenta enquanto abre as portas para passarmos. Não ergo um dedo sequer — Quem cala consente.

— Não tenho a obrigação de te contar nada. Além disso, você nunca me disse quem é o carinha com quem você anda se pegando todo santo dia.

Isso não significa que eu não sei quem é o felizardo.

Encaro meu melhor amigo enquanto ele vira o rosto para o outro lado, olhando fixamente para a cerca sem graça do Seu Geraldo, vizinho da escola que sempre nos dá bolo de cenoura.

Conheço Guilherme desde que me entendo por gente e ainda assim ele se recusa a me contar qualquer coisa sobre sua vida romântica. A única coisa que sei é sua sexualidade, mas apenas porque ele é abertamente gay desde o ano passado. Ou seja, o que eu sei, todo mundo já sabe também.

— Tudo bem — quebro o silêncio quando estamos dobrando a esquina da minha casa — Eu também não vou falar o meu.

— Então você realmente está apaixonada!

Supimpa!

Não acredito que consegui ser tão burra assim.

— Sua bunda que eu 'tô.

Sendo sincera, não consigo cair nessa de que Guilherme também não sabe quem é aquela que está me deixando completamente maluca. Acho que ter estudado história, quando é a matéria que mais detesto, foi um sinal bem óbvio.

É tudo um jogo para ver quem vai admitir primeiro.

Aha! Eu sabia!

— Não sabia nada, nem vem. Isso nem condiz com o que você falou agora a pouco.

Guilherme revira os olhos.

— Por isso que eu disse... — ele aperta uma bochecha minha e lhe dou um tapa — Alguém que seja possível. Eu seria muito burro se não notasse que você tá arriada os quatro pneus.

É isso. Perdi.

— Quem é então?

— Óbvio que a nerd da Ana Júlia.

Fecho os olhos como se ele tivesse me dado um tapa.

— Acertei, não acertei? — ele pergunta, andando de costas para poder rir da minha cara — Eu acertei, mas você não sabe quem é o meu.

Sempre será uma humilhação admitir que se está apaixonado. Guilherme pode falar de mim, mas vive suspirando durante as aulas e no refeitório. Ele é tão ruim em esconder quanto eu.

— Renato.

— O quê? — seu sorriso morreu, mas já estamos na calçada da minha casa — O que você disse?

Dou um sorrisinho e abro o portão.

— Que é o Renato.

Guilherme fica parado na calçada me encarando enquanto caminho em direção a porta. Por algum motivo, parece que falei que matei alguém de sua família.

— Filha da...

— Cuidado com a boca! — grito enquanto abro a porta e o encaro, esperando por algo, mas nada vem — Falamos sobre isso amanhã. Tchau!

Fecho a porta antes que ele possa se manifestar. Como se a situação fosse bem mais séria do que apenas algumas paqueras, uns correspondidos, outros nem tanto.

***

nove da noite, residência dos Santos,

ainda 9 de março.

Acontece que "amanhã" é um conceito indefinido para Guilherme. Simplesmente não existe em seu dicionário.

Depois do jantar, ele apareceu na minha casa. Eu gostaria de dizer que fiquei realmente surpresa, mas ele tinha dessas. Era quase como se fosse da família, infelizmente, sendo recebido com um sorriso caloroso pela minha mãe toda vez que resolvia aparecer.

Acabamos fazendo uma pizza improvisada com um resto de ingredientes que encontrei nos armários da cozinha. No caso, eu cozinhei, enquanto Guilherme se negava a chegar perto, dizendo que não queria destruir minha casa tão organizada, correndo o risco de ser deserdado da minha família. Então ele esperou até que estivéssemos sozinhos no cômodo — com exceção do meu irmão que dormia no sofá da sala com a boca aberta — para me contar o motivo de ter aparecido do nada na minha casa.

Consigo pensar em pelo menos duas razões em potencial para isso:

1- Guilherme está carente de novo e precisa de uma fita nova para curar sua dor de corno com meu gosto musical impecável.

2- Ele quer fofocar sobre como eu descobri algo tão óbvio como o nome do garoto que ele está xavecando, esquecendo assim da humilhação a que me submeti por Ana Júlia.

Pessoalmente, prefiro a segunda opção. Podemos resumir tudo a Guilherme e me deixar de escanteio.

— Vai, anda, desembucha — falo, enquanto jogo o pano de prato sobre o ombro — O que aconteceu?

Guilherme se inclina sobre o balcão da cozinha e sorri. É o tipo de sorriso que diz "vamos aprontar".

— Lembra daquele karaokê?

— O que inaugurou esses dias? Que precisa pagar uma fortuna para entrar?

— Esse daí mesmo — seu sorriso se alarga ainda mais — Já sei como vamos conseguir entrar.

— Espera aí. Você ouviu a parte do 'custa uma fortuna', não ouviu?

Ele revira os olhos. Sempre convencido. De repente, eu sei exatamente como tudo vai se desenrolar. É um cafajeste mesmo.

— Eu não acredito — as palavras deixam minha boca assim que percebo aonde ele quer chegar, como se uma lâmpada enorme estivesse acesa sobre minha cabeça — Por favor, não me diga que você está usando o Renato para conseguir as entradas.

— Não é exatamente assim! — ele remexe as mãos — Quer dizer, agora que você sabe, acho que não faz mal...

É, Guilherme nunca vai querer sair por baixo.

— Olha, não se altere — ele continua a falar, mesmo que eu não tenha dito nada — É só que... bem, Renato tem um modo... sabe, talvez meio errado de entrar lá, mas que nos faz entrar! O importante são os fins e não os meios, certo? Foi Maquiavel quem disse.

— Você quer dizer, com outras palavras, que vamos entrar lá ilegalmente? Com a ajuda dele?

Guilherme assente com a cabeça devagar. Sinto vontade de rir, porque... sinceramente!

— Tudo faz sentido agora — digo, decepcionada — Você não queria que eu soubesse quem era o felizardo porque ele é um criminoso!

Guilherme arregala os olhos e sinto que ele está se segurando para não me bater, mas ele apenas abaixa a cabeça e respira fundo.

— Ele não é um criminoso.

Faço que sim com a cabeça, ironicamente.

— Não precisa ser tão dramática sobre isso — Guilherme continua falando, calmamente — Além disso... Ana Júlia vai estar lá.

Aí está. O golpe baixo, digno dele.

— O que eu tenho a ver com isso?

Guilherme pega um lápis que está jogado no balcão, ao lado do caderno de receitas de meu pai, e o gira na mão, depois o apoia ridiculamente entre a boca e o nariz.

Quando o lápis cai, ele xinga e se abaixa para pegar o objeto.

— Vai me dizer que você não quer ver a gatinha?

— Eu a vejo todo dia na escola.

— É completamente diferente — Guilherme continua girando o lápis — Ela com certeza não é o que diz ser.

Isso sim me deixa intrigada. Como ele pode saber mais do que eu sobre quem Ana Júlia é ou deixa de ser? Além disso, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

— Isso não muda nada.

— Claro que muda — ele dá uma risadinha — Você sabe muito bem que ela beijou uma garota aí em uma festa. Eu tô te falando, Rebeca, essa nerd não deve ser pouca coisa nas festas. É sua chance de investir para valer. Chega de ficar se humilhando só para estar no mesmo grupo do trabalho que ela! É hora de algum investimento real.

Procuro não deixar transparecer como suas palavras parecem tão afiadas quanto facas para mim, porque eu realmente estaria sendo dramática nessa situação. Não posso negar, entretanto, que fico um pouco magoada. Eu não acho que investi em vão, nosso romance estava fluindo naturalmente. Ela até falou comigo essa semana. Foi um "oi, com licença" muito educado.

Cinquenta por cento manipulada por Guilherme, eu tomei uma decisão.

— Eu topo.

Ele me encara surpreso.

— Vamos fazer isso, então.

Assim, eu concordei em entrar de penetra no maldito karaokê dos filhinhos de papai da cidade.

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