DOIS: DIRETO AO INFERNO
15 de março, 1987
refeitório da Beacon Hills High School
REBECA
É mais uma tarde quente e ensolarada de segunda-feira, o sol banhando nossa mesa em feixes não uniformes, devido ao grande pé de manga que temos no canto do refeitório. Guilherme rouba meu almoço descaradamente, pensando que não posso notá-lo, enquanto estou perdida encarando a garota de óculos redondos do outro lado do espaço. Ana Júlia parece bem feliz enquanto sorri para alguma palhaçada que seus amigos estão fazendo com a comida em suas bandejas. No entanto, apenas consigo reviver de novo e de novo a memória do karaokê, como um disco quebrado. Hoje é ainda mais humilhante relembrar o ocorrido, beirando o doloroso.
Não tão humilhante quanto a cena que desenrola bem diante de meus olhos, entretanto. É impossível permanecer concentrada em meu próprio drama adolescente enquanto os alunos de teatro fazem o seu ao vivo e em cores, para todos que quiserem ver e ouvir.
No centro das mesas, bem ao alcance da vista de todos, um garoto e uma garota loira encenam algo saído diretamente de Romeu e Julieta. Ela sobe na mesa de alguém próximo a mim e um pouco de comida esparrama nos meus jeans. Tento ficar brava, mas apenas reviro os olhos, impaciente. Percebo também que Júlia e seus amigos pararam de brincar para encarar a cena que se desenrola, suas expressões impossíveis de ler. Pouco a pouco o refeitório é tomado pela situação, risadas ecoando aqui e ali.
Queria poder dizer que minha própria expressão se faz difícil, mas acho que qualquer um consegue ler os pensamentos que preenchem minha mente. Minhas sobrancelhas se franzem quando o garoto de Teatro, seu nome é Pedro se não me engano, chega perto de Ana Júlia e se inclina por cima da mesa para mexer numa mecha de seu cabelo com desdém.
— Tem queijo na sua bochecha — Guilherme fala de boca cheia, completamente alheio ao mundo. Eu o ignoro — Tá parecendo uma criança.
— Até parece...
Pelo canto do olho, observo enquanto ele dá mais uma mordida em seu sanduíche, ainda me encarando. Ele parece não ter nenhuma preocupação neste mundo. Nem mesmo parece se importar com o fato de Renato não ter dado as caras ainda.
Volto minha atenção mais uma vez para o que acontece ao nosso redor bem a tempo de ver um dos amigos de Ana Júlia empurrar Pedro. Eu ainda não tenho certeza se este é realmente seu nome, no entanto...
— Não, não é um queijo, é um nacho — Guilherme complementa.
O encaro com raiva, sem nem mesmo me dar conta de que já estou de pé, pronta para andar na direção dela. Meu corpo tenciona enquanto olho para Guilherme, ao mesmo tempo que minha mente não sabe ao certo o que está acontecendo.
— Cala a boca, cara — Eu resmungo, já irritada. Não consigo ouvir nada do que acontece na mesa de Júlia, apenas vejo a bagunça aumentar de tamanho.
— Depois não diga que eu não avisei... — Ele aponta uma batatinha frita na direção de Pedro, que tem seus cabelos puxados por Júlia agora. Talvez ela não precise de minha ajuda tanto assim — Você vai se meter ali?
Eu considero as possibilidades, antes de virar minha cabeça um pouco. Consigo ouvir palavras aleatórias como "preconceituoso de merda" e "corno burro" saindo da boca de alguém em um tom de voz muito irritado, o que me faz reconsiderar.
— Talvez...?
— Boa sorte, então — ele dá de ombros — Com certeza vai conquistá-la assim.
Reviro os olhos diante de seu sarcasmo. Não é sobre conquistá-la ou não, mas sobre a grande briga acontecendo bem em frente a nossos narizes, que só aumenta de proporção a cada segundo. Além de eu não fazer a menor ideia do motivo por trás disso.
— Dá pra você parar de ser tão otário?
— Desculpa, é um estado de espírito.
Só me resta suspirar em decepção e surpresa e é o que faço, confusa com meus sentimentos conflitantes. Sei que quero estar num holofote para Júlia, mesmo depois do que aconteceu e isso me faz questionar quão idiota eu devo ser.
Dou um passo para trás e começo a dar a volta na mesa para pegar minha bolsa e sair, decidida que não vale a pena me humilhar ainda mais, quando uma voz muito irritada fala mais alto do que toda a confusão.
— O que infernos está acontecendo aqui? — a voz do Diretor soa rouca acima da barulheira, mas todos paralisam no lugar — Seu bando de...
De soslaio, observo enquanto os adolescentes se afastam pouco a pouco, suas expressões entregando o desespero de saber que estão muito ferrados. Guilherme me entrega um pirulito que ele tirou ninguém sabe de onde.
— Aproveita o show — ele diz e eu pego o pirulito de sua mão com ódio — Porque só melhora.
Do outro lado do refeitório, os adolescentes envolvidos na confusão se afastam uns dos outros como se houvessem sido eletrocutados. Ana Júlia dá alguns passos para longe, mas não tem jeito. Eles todos tentam falar ao mesmo tempo, mas ninguém que assistia a cena diz palavra. Olho de soslaio para Guilherme e ele dá de ombros. Em questão de segundos, todos os encrenqueiros estão sendo encaminhados para a diretoria, como se fosse uma excursão de mini criminosos, e um silêncio desconfortável se instaura, pouco a pouco sendo preenchido por sussurros ansiosos e eufóricos.
Observo as bandejas no chão e as bolsas dos envolvidos, espalhadas aleatoriamente. Olho para Guilherme e suspiro quando ele faz uma expressão de desaprovação. Ele sabe muito bem o que estou pensando em fazer, basta um olhar para que ele entenda. Basta um olhar para que eu me sinta uma idiota.
— Olha... Eu não vou te impedir, mas você sabe que é burrice. Ela beijou outra na sua frente! — A última parte é sussurrada em um tom de voz raivoso — Mas boa sorte.
— Não precisa passar na cara o que eu já sei. Eu só vou checar como ela está! Sabe, descobrir a fofoca completa pra gente — Eu dou uma piscadela na direção dele — Não tem nenhuma segunda intenção nisso.
Guilherme olha bem no fundo dos meus olhos castanhos, me encarando em seguida de cima a baixo, desde a ponta de meus cabelos pretos na altura dos ombros até meus tênis brancos surrados. Ele não diz palavra, apenas ri baixo e dá de ombros. É resposta suficiente para mim, que agarro a bolsa de Ana Júlia e começo a caminhar na direção do meu destino. No entanto, o universo parece carregar planos controversos e macabros para mim.
Caminhando a passos lentos e despretensiosos, carregando um walkman prateado na cintura de seus jeans folgados, ela aparece na entrada do refeitório. Seu cabelo está ainda mais curto e sua regata deixa uma parte da barriga de fora, mas a mesma expressão irritante de que me recordo permanece em seu rosto. Não posso evitar revirar os olhos assim que ela me nota e tira os fones do ouvido, acenando para mim.
Com uma expressão desgostosa, continuo meu caminho, passando direto por Larissa, como se ela não existisse em meu campo de visão. No entanto, ela segue caminhando ao meu lado, sorrindo de lado e procurando por meu olhar, avaliando cada detalhe que pode.
— Você tem que parar de ser mal educada — É a primeira coisa que diz, com sarcasmo. Já sinto vontade de voar em seu pescoço — Não custa nada me dar bom dia.
— E por qual motivo eu deveria falar com você?
— É assim que você trata todos os seus conhecidos?
Reviro os olhos, apertando ainda mais o passo na direção da Diretoria. Infelizmente, ainda tenho dois corredores muito longos para cruzar.
— Eu nem te conheço, então não.
Consigo ver Larissa fazendo uma expressão fingida enquanto coloca a mão no peito.
— Aí, essa doeu — ela sorri logo em seguida — Eu sei que você lembra de mim. Foram poucos minutos, mas eu jamais esqueceria de você.
Canalha. É tudo em que consigo pensar. Canalha, canalha, canalha.
Dou um sorriso forçado enquanto a encaro de canto de olho, meu sangue fervendo.
— Agora que você mencionou, acho que lembro sim. Lembro de uma pessoa muito irritante que provavelmente me dedurou aos seguranças. Claro! Como eu poderia esquecer?
Larissa para de andar, mas não olho para trás. Demora alguns instantes para que ela volte a me acompanhar, balançando a cabeça.
— Não fui eu. — Ela diz, simplesmente. Sua expressão é séria dessa vez. — Realmente, como seria eu?
— A pergunta é: quem mais seria?
— Eu não sou dedo duro.
— Claro que não... — murmuro com sarcasmo.
— Como eu poderia te dedurar se eu estava na sala com você quando seu amigo chegou? — sua pergunta faz com que eu pare de andar — Não faz sentido.
Realmente, não faz sentido. Mas também não poderia ser outra pessoa além dela. Balanço a cabeça e volto a andar, até perceber que tem algo de errado. Estou dando de cara com a quadra, que fica do lado oposto da diretoria.
— Eu bem que estava me perguntando o que estamos fazendo aqui — ela comenta, as mãos nos bolsos, os braços, musculosos demais para alguém de sua estatura, aparecendo — Assim como também estava me perguntando o motivo pelo qual você tem um pedaço de nacho no seu queixo...
É automático. Minhas bochechas ficaram tão vermelhas que posso senti-las queimar. Com um xingamento contra Guilherme preso na ponta da língua, passo a mão em meu rosto e dou meia volta, andando a passos apressados na direção certa dessa vez. Sei que Larissa está me seguindo e sei que não vai parar tão cedo, mas só consigo andar em silêncio.
— Não deixa minha presença te distrair tanto assim, fala sério... — consigo ouvi-la murmurar.
Maldita.
— Para de me seguir... — murmuro, mas minha voz morre à medida que consigo ver a movimentação em frente ao escritório do Diretor — Posso saber o que você está fazendo aqui?
— Me matriculando. — ela responde sorridente.
Estou prestes a arregalar os olhos quando Ana Júlia aparece em meu campo de visão, completamente furiosa. Ela sai da sala do diretor e caminha em minha direção, fazendo com que meus neurônios deixem de funcionar por alguns instantes. Minha mente fica totalmente flácida e vazia até ela apontar para minha mão e eu lembrar o real motivo de estar aqui. Em silêncio, eu entrego sua mochila em suas mãos.
— Obrigada — ela agradece, apenas, e vai embora.
É como levar mais um balde de água fria na cara. Só que na frente de todo mundo.
— Ouch. — Larissa diz, seguindo Ana Julia com o olhar, o que me trás à tona memórias nada agradáveis.
Essas duas estavam agarradas pleno sábado, dois dias atrás, e hoje nem mesmo falam uma com a outra. Estranhas, mas nada que me interesse. É isso que penso repetidamente, tentando fazer meu cérebro acreditar que é verdade, enquanto dou meia volta e começo a ir embora também. Ou pelo menos tentar, até a voz do diretor me fazer congelar no lugar.
— Rebeca! Bem a tempo. — Ele diz, todo sorridente. O que normalmente não é um bom sinal — Só um minuto que vou atender vocês duas.
Ele diz a última parte enquanto gesticula na minha direção e de Larissa. Sinto um arrepio percorrer minha espinha, o mais genuíno que já senti na vida.
— Espera! Eu não tenho nada a ver com...
A porta é fechada com um baque surdo e posso ouvir a risadinha de Larissa bem próxima de mim.
— Acho que você não tem muita escolha... — Ela comenta, já se acomodando em uma das cadeiras azuis nada confortáveis da recepção — Melhor se sentar.
Irreparável, acabo por suspirar. Não quero ceder, mas sento ao seu lado de qualquer forma. A recepção pouco a pouco se esvazia à medida em que os adolescentes vão passando pela sala do diretor e saindo logo após com expressões abatidas, então somos praticamente só eu e ela agora.
— O que aconteceu aqui? — Larissa pergunta e posso ver um resquício de sorriso em seu rosto. Ela inclina-se na cadeira e abre as pernas, sentando-se como um marginal — É um tanto engraçado de ver.
Foi ainda mais engraçado antes, penso ao lembrar de Pedro sendo arrastado pelos cabelos, mas apenas suspiro.
— Uma briga. No refeitório.
— Uau. Isso que eu chamo de recepção calorosa.
Reviro os olhos, mas a porta da diretoria se abre antes que eu possa responder e o Diretor coloca sua careca para fora, finalmente nos chamando.
Larissa não demora nadinha para entrar na saleta monótona, enquanto eu me arrasto a passos lentos e nada determinados, me questionando como acabei nessa situação. É uma tortura imensa fechar a porta atrás de mim e encarar o relógio de parede do Sr. Martins, fazendo tic tac sem parar, acima do seu mapa mundi desgastado. Também deve ser considerado tortura sentar em sua poltrona velha e ainda quente de tanto ver bundas adolescentes arrependidas.
— Então, Srta. Torres... — ele começa — Estou assumindo que você trouxe todos os papéis da transferência?
Larissa faz que sim com a cabeça e começa a remexer em sua pochete, tirando um punhado de papéis amassados de lá de dentro. Sem conseguir assistir a cena completa, levanto minha mão de um jeito acanhado, como se estivesse na sala de aula.
— Hm... Com licença — falo quando ele olha na minha direção, uma sobrancelha levantada — Desculpa a pergunta, mas o que exatamente eu tenho a ver com a transferência dela?
Transferência essa que, inclusive, é bem estranha. Fazer uma matrícula meses depois das aulas terem começado já é esquisito, ser transferida é mais suspeito ainda.
O diretor suspira e dá um sorriso, antes de se sentar em sua cadeira. Sinto mais um calafrio diante da cena.
— Nada, exatamente — ele diz, colocando as mãos na mesa — Só imaginei que, como vocês estavam juntas e pareciam ser amigas, você poderia ajudá-la com o processo de adaptação...
Sua fala faz meu corpo se arquear em desespero. Eu sempre soube que não era boa em disfarçar minhas expressões e a forma como Larissa segura uma risada me diz isso com clareza. Um sorriso sem graça surge em meu rosto enquanto eu balanço a cabeça.
— Acho que houve um mal entendido...
— Não, nada disso — Larissa interrompe — Somos muito próximas mesmo.
— Não, não somos. E não tenho tempo nem capacidade para introduzir ninguém ao colégio na metade do semestre...
— Claro que tem! — Mais uma vez, Larissa diz — Você teve tempo de ir até o...
Dou um chute em sua canela antes que ela possa terminar de falar e ela solta um ruído estranho enquanto se encolhe na cadeira, levantando a mão em protesto. A única reação que consigo esboçar diante da expressão confusa do Sr. Martins na minha frente é um sorriso amarelo e um olhar esperançoso de que ele não vai me deixar confinada com essa lunática perseguidora.
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