II. O Intrigante Psicólogo

Tom trazia um cigarro devidamente equilibrado nos lábios, um terno preto e os óculos escuros que se enquadravam perfeitamente no rosto. Encostado ao carro cor de vinho, do outro lado da rua, observava com atenção como Ruby parecia uma barata tonta dentro da enorme loja conceituada que ficava na melhor parte da Square 31 com o cruzamento da Avenida Principal.

Com três andares e vários manequins em poses que chegavam a arrepiar, a vitrina exibia a nova colecção de verão, entre vestidos curtos ou decotados, de tecidos leves e despojados. Também tinha nos outros andares variedades de artigos femininos para além de roupas, e Tom já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha visto a pequena mulher negra e formosa, subir e descer as escadarias rolantes.

Deixou a mão calejada descer para o bolso de dentro do seu casaco, tirou o celular e pressionou o número de ligação rápida, indo directamente para um número codificado que só ele tinha acesso. Tudo muito bem organizado nos conformes para nunca ser rastreado, não era a toa que Tom era um dos melhores génios informáticos que se poderia conhecer. Não fosse seu passado perigoso, talvez não precisasse de viver no anonimato.

Diz?

─ Ela está passando dos limites, senhor.

Deixe-a.

─ Como?

Eu disse para deixá-la.

─ Mas o cartão tinha um valor limitado.

Eu liberei.

Tom não conseguia compreender, mas não refutou. Não era pago para isso, aliás, por todo dinheiro que recebesse naquela função, nada pagaria a dívida eterna que tinha sentado em seus ombros. Aquela noite fatídica era um marco na história, não só para eles dois, mas para muitos outros. Eram-lhe todos gratos.

─ Sim senhor. ─ Concluiu a chamada ainda com o cigarro entre os lábios. Uma proeza que tinha aprendido com o tempo, quando não podia parar nem um segundo para fumar, pois o tiquetaque do relógio não perdoava a ninguém.

Foi distraído pela figura de Ruby que estava toda radiante. Carregava dezenas de sacolas em suas mãos, andava com o estilo bastante feminino, mas era portadora daqueles olhos vorazes. Ela tinha ido a ginecologista no dia anterior, Tom a seguira sem perder o seu percalço, até então era uma mulher bastante saudável e até fértil, mas essa última parte não era do interesse do seu cliente.

Viu como os empregados guardavam as sacolas no BMW que a escritora tinha recuperado ainda naquela semana, quando os credores finalmente foram pagos. Ao longe alguns paparazzis a fotografavam, a maioria estava curiosa com a saída repentina dela da sarjeta. Tom não gostava de toda aquela exposição, o cliente estava a arriscar demais. Apesar de que se houvesse alguma investigação tudo ia dar nele mesmo, ainda preferia manter a sua reputação em anónimo.

Entrou no seu carro e a seguiu. Pelo menos estava a cumprir as obrigações semanais, pois em poucos minutos estavam parados numa das melhores redes de médicos e associados.

Ruby desceu em toda sua elegância, foi interceptada por um grupo de adolescentes que pediram por autógrafos. Todas comentavam sobre o seu primeiro romance e de como tinham chorado pelo final trágico. Depois que se despediu, finalmente conseguiu ultrapassar as portas giratórias de vidro, dando a uma entrada ampla com várias secretárias para cada respectivo andar. Ela ia até ao segundo andar para falar com Hans Axmann.

Estava nervosa quando subiu o elevador luxuoso, onde foi imediatamente oferecida algo para beber. A vontade de Ruby era de desaparecer dali, mas apertou a bolsa como se dali pudesse sentir o conforto que o cartão de débito lhe trazia.

─ Por aqui. ─ A secretária tinha um forte perfume que lhe deixou um pouco enjoada. Teve vontade de lhe sugerir algumas marcas que iriam combinar com a nova estação, mas pelo olhar que a mulher lhe dirigiu, Ruby teve a certeza de se manter calada. ─ Sente-se.

As pequenas cadeiras eram bastantes confortáveis, na mesa tinham alguns doces e revistas. Nada que lhe trouxesse algum interesse, então bebeu um copo com água enquanto cruzava e descruzava as pernas. Talvez houvesse coisas das quais não queria falar, iria evitar falar algumas coisas ao máximo, principalmente quando não acreditava ter nenhuma doença.

A porta de madeira escura se abriu, um senhor velho e de cabelos brancos saiu. Parecia paternal pelos olhos pequeninos, assim como os óculos redondos lhe davam um ar mais responsável. Ruby logo afirmou para si que se sentiria bem à vontade para conversar com aquele homem e deixou soltar um suspiro dos seus lábios.

─ Muito obrigado, senhor Axmann. ─ O senhor velho disse com toda satisfação, tirando toda alegria da jovem escritora, como um pano molhado por cima de uma estante de pó. O homem de jaleco branco que apareceu por trás, era alto e forte. Tinha os cabelos loiros bem cortados, uns olhos estreitos de um azul-escuro, lábios finos e um nariz que afirmava ter sido quebrado em alguma altura da sua vida.

─ Eu é que agradeço. ─ Tinha um sotaque perfeito para quem possuía nome alemão. Talvez tivesse crescido ali naquela cidade. ─ Nos veremos em quinze dias.

Ele acompanhou o senhor até ao elevador e quando regressou, parou para olhar para a sua nova paciente. Tinha um rosto bastante enigmático e um olhar muito estranho.

─ Senhorita Strain? ─ Perguntou muito antes da secretária se dar ao luxo de a anunciar. Ruby viu quando a jovem mulher pareceu se incomodar por aquilo, o que fez sua mente divagar para um possível e cliché caso de amor. Se fossem seus personagens, ela seria uma amante ciumenta, e ele seria um homem casado.

─ Sim. ─ Se levantou e ajustou a blusa que tinha subido mais do que devia. Não gostou que ele não tivesse desviado o olhar, mesmo assim não conseguiu perceber nenhum vestígio de terceiras intenções. Na verdade era completamente nulo.

─ Por favor. Venha comigo. ─ Falava com calma, e esperou que ela seguisse à sua frente para dentro da sua sala.

Era muito aconchegante, teve que reconhecer. Com um divã de cor creme, janelas enormes e estantes de livros. O psicólogo fechou a porta devagar, indicou-lhe que se sentasse e foi ocupar o lugar atrás da mesa de mogno, criando uma distância relativamente segura.

─ Você não é muito novo para ser psicólogo? ─ Ruby acabou por perguntar assim que se sentou no divã. Teve vontade de se deitar, mas por enquanto preferia olhar para o homem.

─ O que seria "novo", para si? ─ Perguntou com calma, abriu a gaveta devagar e tirou de lá um bloco. A caneta dourada estava no bolso da frente do jaleco, e com o toque no botão que ficava no cimo, estava pronta para ser usada.

─ Não me parece ter mais de trinta anos.

─ As aparências enganam.

E era verdade. Aquela resposta foi certeira. Durante muitos anos em que vivera na fartura, Ruby tinha tido muitos falsos amigos ao seu redor. Era jovem e inexperiente no mundo da fama, tanto que tinha sido enganada por rostos que pareciam pertencer a pessoas angelicais.

─ É amigo do Mr. Dark? ─ A curiosidade falou mais alto.

─ Quem?

Ela mordeu o lábio pintado de vermelho. Começava com o pé errado e já falava demais. A verdade é que a curiosidade quase a tinha matado naqueles últimos dias, mas tanto a ginecologista que era uma mulher muito eficiente e simpática, quanto o psicólogo pareciam não estar a par do que realmente acontecia.

─ Deixe estar. É você quem faz as perguntas aqui. ─ Tentou disfarçar e baixou os olhos ao olhar que lhe foi dirigido. Era muito estranho, porque chegava a ser intrigante e inocente ao mesmo tempo.

─ Está confortável? Podemos iniciar a sessão? ─ Perguntou. ─ Quer se deitar?

─ Não. Estou bem assim.

─ Como se sentir melhor. Se quiser se deitar, não hesite. ─ Disse apontando com a ponta da caneta para o restante do divã. ─ Pode começar me falando sobre Olívia Strain?

─ Ruby. ─ O corrigiu. ─ Ruby, por favor.

Hans a encarou com atenção, escreveu qualquer coisa no bloco, mas sem tirar os olhos dela.

─ Olívia Strain não é seu nome?

─ É, sim. Contudo prefiro que me trate por Ruby Angel, se não se importar. ─ Ela apertou a sua bolsa para mais perto do seu peito. Estava um pouco inquieta.

─ E posso saber o por quê?

─ Eu prefiro assim.

─ Por alguma razão acreditaria que Ruby Angel e Olívia Strain seriam duas mulheres diferentes?

─ Gosto mais do nome Ruby. ─ Foi evasiva.

─ Compreendo. ─ Hans voltou a escrever com rapidez, porém o facto de nunca quebrar o contacto com o olhar mesmo quando escrevia, chegava a ser bastante estranho. ─ Me fale sobre o seu amor pelo consumo.

─ Como sabe disso? ─ Sorriu de nervoso, mas engoliu em seco em seguida.

─ Eu recebi uma ficha com alguns detalhes do seu problema. Não foi a senhorita Angel que a preencheu? ─ Pareceu desconfiado.

─ Deve... Deve ter sido a minha assistente. ─ Mentirosa número um, porque toda cidade sabia que não tinha mais empregados. A parte boa é que em breve poderia contratar todos novamente.

Hans largou a caneta, fechou o bloco e cruzou os braços. Passou a língua pelos lábios com rapidez, apenas para os humedecer e soltou um suspiro.

─ Eu não quero forçá-la a nada, senhorita Angel. Muito mais do que um psicólogo, quero ser um amigo, alguém em quem poderá confiar. Tenho paciência o bastante para saber que certas confissões levam tempo, mas peço que não me minta em instância alguma. Estamos aqui para ajudá-la. ─ Advertiu ainda com o rosto de expressões indefinidas.

─ Eu estou ótima. Não sei o que faço aqui. ─ Se mostrou um pouco afoita, envergonhada também.

─ Saiba que se não tiver nenhum problema, eu serei o primeiro a colocar isso na avaliação. Mesmo sendo tão novo como diz, sou um dos melhores naquilo que faço. Não a iria prender aqui apenas por causa do preço alto que paga em cada uma das consultas. Se não tiver interesse em pelo menos tentar para que possamos chegar em um diagnóstico, não serei eu a arrastá-la por anos nisto. ─ Ainda por cima era diferente. Ruby estava habituada a muitos que não se importavam de a atender até mesmo em silêncio, desde que fossem pagos por isso.

─ Eu não sinto como se tivesse um problema, doutor Axmann. Gosto de gastar, afinal para que foi feito o dinheiro? Quando eu morrer não o vou levar comigo para o caixão.

─ E é livre de gastar como quiser, desde que não seja desnecessário e prejudicial a sua pessoa.

─ Eu sei que algumas coisas são exageradas. Só que...

─ O que me preocupa, senhorita Angel. ─ Hans fazia questão de deixar tudo aquilo muito impessoal. ─ É o que seria capaz de fazer para ter acesso fácil aos seus prazeres pelo consumo. Qual é o seu limite?

Ruby engoliu em seco, se levantou num salto e começou a caminhar em direcção a porta. Não queria mais falar sobre aquilo.

─ Não estou aqui para julgá-la, e sim para fazer com que perceba. ─ Hans ainda foi a tempo de dizer, mas já esta saía porta a fora e sem olhar para trás.

Estava furiosa.


─ Você acha que ficou bom?

Malcom estava com um conjunto de quatro folhas nas mãos. Os olhos verde musgo liam a história do seu próprio relato sexual que contara para amiga na sexta-feira a noite enquanto bebiam champanhe e comiam morangos com chantilly. Usava uma camisa cor-de-rosa, gravata e uns calções acima dos joelhos. Seu cabelo arrumado no topete impecável e uns sapatos feitos de camurça.

─ Tem certeza disso? ─ Quando estavam bêbados, tudo lhe tinha parecido uma história loucamente excitante, mas agora que via sua melhor amiga num vestido de seda com duas rachas laterais a exibirem as pernas grossas bem torneadas, assim como os sapatos bastante altos, tudo lhe pareceu perigoso demais.

─ Não há mais como recuar, Malcom. Apenas me diz se o que escrevi ficou perto do que me contaste ontem de noite? Faz jus? ─ Estava nervosa demais, seu estômago estava muito embrulhado. Para além de ter passado o dia no cabeleireiro a tratar do seu corpo e cabelo, não conseguia deixar de pensar na consulta que tivera no psicólogo na quinta-feira. Tinha mentido para o amigo que tudo tinha corrido bem e não disse que tinha saído ainda a meio da sessão.

Respirou fundo. Pensou em escrever alguma coisa relacionado a ela e a Marc, seu ex namorado que nunca mais tinha dado as caras, mas o problema é que não sentia nada quando estava com ele na cama. Não só com ele, como com outros homens com quem tinha tido sexo. Nenhum deles conseguira despertar seu interior como as chamas do vulcão que eram relatadas em livros. Isso a incomodava.

─ Você conseguiu passar o que contei. Pelas sandálias de Josué, não quero receber seu corpo em pedaços. ─ Lhe deu um abraço apertado ouvindo o grito dela, por quase esmagar suas folhas tão bem imprimidas.

Os dois cruzaram os dedos, ao mesmo tempo em que a campainha tocava. Se encararam por alguns instantes, mas Ruby andou até a porta e a abriu. Sentiu o coração gelar quando avistou Tom. Ele a olhou de cima a baixo.

─ Boa tarde. ─ Olhou para o relógio que não deveria custar menos de dez mil dólares. ─ Pronta?

Malcom se aproximou mesmo contra todos os sinais que a amiga lhe dava, afinal era o apartamento dele e também estava a morrer de curiosidade para saber como era o homem que tinha trazido a bendita proposta para sua amiga.

─ Apenas a traga como a levou. ─ Disse, sua língua presa lhe deu ainda mais o ar jovial que estava estampado no seu rosto.

─ Ele sabe alguma coisa? ─ Tom levou a mão para trás do casaco, num gesto lento que assustou os dois.

─ É só apenas um jantar entre nós dois, Tom. Não vi a razão de esconder. ─ Ruby tinha a mente fértil, desatou a rir e com naturalidade após pronunciar a frase. Viu o homem relaxar, mas Malcom estava pálido como a cal.

─ Olívia...

─ Adeus, meu docinho. Até logo. ─ Tratou de cortar ao amigo, sabia que quando a chamava assim, era porque não concordava com alguma coisa.

─ Tenha certeza de não quebrar as regras, senhorita Angel. ─ Tom continuava sério a medida em que o elevador descia.

─ Não precisava subir, por exemplo.

─ Eu só cumpro ordens. ─ Deixou aquilo claro.

Saíram de mãos dadas para o parque do curto edifício bonito, e ele a sentou na parte de trás do luxuoso carro. Ruby percebeu que ali de dentro as janelas eram mais escuras do que pareciam ser pelo lado de fora, não dava para ver nada.

Ficou nervosa quando Tom entrou na parte de frente do condutor.

─ Eu não sei se...

─ Agora é um pouco tarde para isso. ─ Ele trancou as portas e fechou a parte que a separava da cabine do condutor. Deixando-a sem poder ver o que se seguia a frente.

─ Quero descer. ─ Se deu conta do medo que a invadiu.

─ Apenas relaxe. ─ Era prático demais. ─ Já lhe disse que pode confiar em mim. Uma pena não poder dizer o mesmo de algumas pessoas que conhece.

─ O que quer dizer com isso?

─ A viagem será longa, senhorita Angel.

Ruby ficou inquieta, mas poder escutar a sua voz mesmo sem o poder ver lhe deu o mínimo de conforto. Tentou relaxar, mas suas mãos transpiravam a medida que sentia o carro se locomover. Não sabia onde estava e nem para onde seguia, então se lembrou das palavras do psicólogo. Até que ponto ela iria para poder desfrutar dos seus hábitos elevados de consumo?

Contou uma hora e meia até sentir o carro começar a abrandar, até que parou. Estava com o coração na boca quando Tom lhe abriu a porta e percebeu que estavam numa garagem no subsolo com carros que só podiam ser vistos em filmes. A maioria eram antigos e de valor inestimável.

─ Siga por aquela porta. ─ Apontou para uma porta de metal ao fundo. ─ Quando terminar, estarei aqui a sua espera.

Ainda com as pernas trémulas, andou devagar e estremeceu antes de empurrar a porta blindada, mas nem tão pesada como pensou que fosse ser. Entrou para o compartimento, era muito escuro e saltou no lugar quando ouviu a porta se trancar atrás de si.

Se arrependeu de imediato de ter concordado com aquilo, mas uma única luz se acendeu e iluminou uma bela poltrona moderna forrada por cabedal escuro, lhe indicando que deveria se sentar ali. Ruby apertou as folhas em suas mãos, respirou fundo e a tentar ver o que fosse para além daquela cadeira, mas foi em vão. Era tudo escuro demais.

Estava frio ali dentro, mas o corpo dela quente demais por causa dos nervos que a corroíam. Sentou-se devagar, ainda a olhar para os lados em busca de alguma coisa, mas não havia mais nada para ver. Ela era a única parte iluminada daquela sala.

Podia escutar o próprio coração bater. De princípio pensou que fosse algo de sua cabeça, mas breve percebeu que o som ecoava por colunas de som que não sabia onde estavam. Mas era o seu coração que palpitava para que pudesse escutar com nitidez.

Como aquilo era possível?

─ Alô? ─ Chamou, tentava disfarçar seu temor.

Toc. Toc. Toc. O som de uma bengala contra o chão foi audível, cheio de requinte, mostrando que alguém se aproximava.

Mas Ruby estava aterrorizada!

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Bem-vindos à Sala Escura

Se vocês estivessem na situação de Ruby, o que fariam?

Revelem seus Desejos!


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