O último crime da Sociedade da Cognição
Num mundo de desigualdades sociais sob controle, uma pessoa não podia reclamar da falta de trabalho. O emprego era coisa do passado, mas dificilmente o sistema global de governança social deixaria um cérebro humano desperdiçado e não produtivo. Para os cérebros, não podia faltar trabalho, ou melhor, não podia faltar salário. A cadeia produtiva era calculada na nuvem e tais cálculos ocupavam literalmente os sonhos da humanidade. Acima de noventa e nove por cento da população, possuía implantes de interface entre o poderoso cérebro humano e o grid computacional mundial. Durante o período de sono de cada ser humano conectado à nuvem, os biochips cognitivos alavancavam os potenciais do processamento humano de informação, maximizando processamentos dos diversos sistemas distribuídos e em contrapartida, de acordo com o processamento compartilhado, descontos em compras e até mesmo pagamentos eram oferecidos.
Profissões de grande prestígio eram as de neurocirurgiões, engenheiros de interface cerebral e projetistas de biochips. Mesmo no ramo de construção civil implantes passaram a ser essenciais, pois era através destes que os operários controlavam as máquinas e exoesqueletos essenciais para as maximização da produtividade.
O porquê de discorrer sobre profissões neste contexto é justamente para chegarmos a nosso assunto principal: uma ocupação rara, e cuja existência desagradável, forçava a cooperação inter-governamental e inter-corporativa a fim de assegurar paz, progresso e produtividade. Esta ocupação rara e dificílima de ser exercida com sucesso era a dos engenheiros de criminalidade. O crime comum, numa sociedade com altos graus de controle e monitoração, foi progressivamente erradicado. Indivíduos propensos ao crime e que cometiam delitos, logo eram convertidos em bons cidadãos, graças à tecnologia dos biochips e à ciência de neuro-programação.
Com o tempo, a ciência da psicologia cognitiva aplicada à predição de crimes evoluiu ao ponto de reconhecer os indivíduos com tal propensão e aplicar contra medidas eficazes. O crime, para sobreviver, precisou evoluir e isto só foi possível num contexto de ampliação do intelecto humano. O novo crime nascia da combinação de implantes que tornavam certos indivíduos, super-humanos, ou Ultracogs. Alguns entraram para a história. Heróis, como o Kim Jae Park, o coreano que foi pivô do plano de saneamento e resfriamento global que salvou a terra de um cataclismo climático e ecológico previsto no início do século XXI. Kim foi o criador e projetista do programa guarda-chuva conhecido como rede verde, que passou agir e penetrar como elemento obrigatório nas demais redes existentes no mundo. Tal rede permitia cálculos e regulação das ações de indivíduos, governos e corporações, balanceando a carga das atividades verdes mundialmente. Seu modelo matemático foi comprovado em simulações antes de entrar em operação e conforme as previsões de uma centena de redes diferentes. Enquanto super-humanos como o senhor Park, usaram sua genialidade para o bem, outros foram capazes de usar a hiper-cognição para obter benefício próprio e em alguns casos vergonhosos, cometer atrocidades contra a humanidade. Foi o caso da primeira rede humana de zumbis da Quinta-feira Sangrenta, espalhando mortes e caos ao redor do mundo. Foi o primeiro e último caso de ultra-crime registrado contra a humanidade em nível global. Sociopatas como o hacker japonês Bakemono, ou o monstro, serviram para alertar a sociedade para o aumento da segurança nas redes humanas de cognição. Porém, não é só de grandes crimes e esquemas mirabolantes que vive um criminoso na sociedade da cognição.
Um criminoso precisa, antes de tudo, dominar aspectos profundos das principais ciências aplicadas que servem de base para a constituição do tecido computacional mundial. Num mundo fundamentado pela profunda e intrincada integração, muitos se questionavam como alguém com tantos conhecimentos poderia não aplicá-los para o bem comum. A teorizada, singularidade sonhada pelo Projeto Nirvana, era ameaçada por estes criminosos. O crime era considerado pela nova legislação, como um subproduto defeituoso do sistema global de governança social. Não se atribuía aos indivíduos responsabilização por atos criminosos na medida em que eram considerados falha de produção. O nível teórico de erros na produção de uma para um milhão, conhecido como seis sigma, fora há muito superado e os criminosos eram também referidos como sigmas-oito e sigmas-nove, ou seja, modelos indicavam a existência de cerca de doze sigma-nove, no globo e cerca de 130 giga-criminosos, ou sigmas-oito.
Para capturá-los, vários ultracogs trabalhavam na divisão de investigação da Agência de Governança Global. A sociedade desejava cooptar todos esses homens e mulheres que não se integravam à rede cognitiva mundial, ou que usavam-na para benefício próprio como criminosos. Mas alguns desses indivíduos conectados ou raros indivíduos sem implantes cibernéticos não se viam como criminosos e nem tinham intenções destrutivas como Bakemono e outros. Eles se viam como últimos indivíduos de uma sociedade capazes de defender a liberdade e o livre pensamento.
Afinal, era justo reprogramar o cérebro de alguém apenas devido a uma probabilidade de agirem como criminosos? Qual era a verdadeira eficácia desses algoritmos? Parecia que ninguém mais na sociedade se importava em questionar instrumentos que trouxeram tanta paz, prosperidade e estabilidade. Se ainda existiam criminosos conectados, não significava que os algoritmos possuíam falhas? A humanidade havia sucumbido a uma moral consequencialista. Onde sacrifícios de poucos eram justificáveis para criar benefícios para muitos. Uma busca por uma libertação coletiva, um nirvana em massa, era a atual fixação do governo mundial. Muitos monges que atingiram o nirvana ao longo de anos tiveram seus cérebros e processos cognitivos extensivamente estudados. Agora, complexos algoritmos implantavam um plano de dezoito anos para o nirvana mundial, a singularidade da raça humana. O momento em que a humanidade se converteria um único organismo, uma única mente global.
Para os desconectados aquele absurdo levaria a humanidade ao seu fim. Os humanos, tais quais a natureza forjou nos milhões de anos de evolução estavam prestes a se autodestruir. Os drivers genéticos já haviam sido aplicados há cinco gerações e limpeza de genes da agressividade, do crime, do egoísmo, estavam se espalhando de modo a complementar o que era feito pelos biochips e interfaces neurais.
Shiva, era o único ultracog capaz de libertar a humanidade daquele pesadelo coletivo. Salvá-la a igualdade suprema, da utopia tediosa e alegre. Da administração, sem restrições, dos happychips de oitava geração e do novo chip pró-nirvana. Uma sociedade de puro entretenimento, uma colmeia de perfeita e harmônica divisão de funções. O cúmulo de uma sociedade comunista de desejos regulados, aceitação total e ausência de angústia e ansiedade.
Shiva tomou este nome, pois enxergou, pela destruição, uma saída para o dilema da humanidade. Seu programa, Vixnu, o algoritmo da preservação, previa o que a humanidade pós-singularidade precisaria fazer para se preservar. Era uma parte necessária, haver desejo e motivação além da anulação das individualidades. Somente através da destruição a humanidade poderia escapar da catástrofe da unicidade plena. Então, de modo simbiótico, inseriu, sem que os engenheiros do Projeto Nirvana percebessem, no core do chip pró-nirvana, o algoritmo Vixnu. E dentro dele, sua contraparte, Shiva, a semente da destruição. A humanidade morreria, Shiva junto com ela, mas escondidos em locais estratégicos, havia humanos desconectados o suficiente para erguer uma nova civilização. Uma que nunca voltasse a cair no erro de reprogramar os genes e as mentes de seus indivíduos. E este foi o último grande crime praticado na sociedade da cognição. O fim da Era de Kali com o genocídio de quase 13 bilhões de homo cibernéticus e entrega do mundo de volta ao falho, mas ainda capaz de livre arbítrio: homo sapiens.
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