Epílogo
Anos depois
Aceno para o senhor da barraca de frutas e aproximo-me para olhar algumas delas, estico a mão para pegar um mamão e analiso-o com certa atenção. O homem sorri e pergunta sobre mamãe, não sei dizer qual das duas, então respondo que ambas estão bem. O homem para por um segundo, franze a testa, arqueia as sobrancelhas, em seguida olha-me mais atentamente e então percebe que sou eu. Abre um sorriso fraco, desconcertado e me pede para que leve lembranças às duas. Assinto.
Hoje poderia ser um dia como qualquer outro da minha existência após fazer parte da família Westville, mas não é. Assim como todo primeiro de maio, minha mãe Delilah me "joga" para fora de casa e como já sei o motivo, concordo sem pestanejar. É verdade que não sei bem o que fazer quando caminho pelas ruas da Capital, prefiro a calmaria do campo. No entanto, sei o quanto ela ficaria chateada caso não conseguisse fazer a "surpresa" que prepara todo ano. E todo ano, nessa mesma data, eu acho graça desse jeito dela.
Gasto mais algum tempo assistindo a algumas apresentações de artistas viajantes e o restante dele em boutiques. Aliso o tecido dos vestidos e assinto gentilmente quando a dona do estabelecimento vêm até a mim para me dizer que aquela cor combinaria com o meu tom de pele, quem sabe outro dia. Estou plenamente satisfeita com as vestes que tenho no meu guarda roupa, ainda assim, sorrio e dou a minha palavra de que voltaria outro dia para comprar a peça.
Começo o caminho de volta para a minha residência, passando por garotas acompanhadas de suas damas de companhia e ao olharem para mim, torcem os lábios, não sei se por estar sozinha, ou por estar usando calças. Finjo não ter percebido, afinal olhares como aquele não me afetam. Entro em casa, batendo as botas para fazer barulho. Aguardo um tempinho, o suficiente para esboçar um sorriso quando minhas mães aparecem de trás do sofá, segurando uma travessa retangular. Corro até elas, sentindo que cheguei ao meu lar, independente do cenário que fosse.
— Mãe! Eu disse que não precisava fazer nada esse ano.
— Espera, perdi alguma coisa? — Minha mãe colocava as duas mãos na cintura, trocando um olhar preocupado com minha mãe Amelie. — Nossa Mary-Ann já está naquela idade terrível? Oh não, onde está nossa garotinha fofa?
— Éramos iguaizinhas na idade dela, Dê. — Mamãe Amelie alisou as costas da esposa, naquele ato de cumplicidade que as duas nutriam apenas pelo olhar. — Mas eu bem que sinto saudade da época que Mary-Ann abraçava a nossa cintura e nos achava as melhores mães do mundo.
— Mas que choronas as duas, ein... — Abracei-as de lado com cuidado para não afetar o bolo. — Eu ainda acho que tenho as melhores mães do mundo e acharei para todo o sempre. Agora, quando vão me deixar comer esse bolo delicioso?
Beijei a bochecha de ambas e assoprei a vela tremeluzente, vendo a fumaça se dissipar enquanto fazia um pedido. Naquele momento, relembrei todas as vezes que fiz isso, induzida por minhas mães que me auxiliavam no processo de apagar a vela, quando ainda era miúda demais para apagar sozinha. Abri um sorriso e olhei para as duas, que devolviam o olhar afetuoso para mim. Segurei as lágrimas, voltando a atenção para o bolo. Não queria chorar.
Parti o bolo e dividi o primeiro pedaço entre as duas como sempre fiz. As observei comer e também me permiti provar, afinal o bolo de frutas vermelhas da mamãe Delilah era o melhor de todos. No final da tarde, recebi a visita de Lindsay, minha melhor amiga e terceira princesa de Terithia. Recebi os inúmeros presentes que a tia Cedritte e o tio Killian enviaram, sinceramente não precisava de tanta coisa, mas eu já estava acostumada a ser extremamente mimada pelo Rei e pela Rainha. Parte dos presentes foi trazido por Elliot, segundo príncipe e meu ódio particular. Diferente de Lindsay, que me entendia como ninguém, o garoto era um saco. Não perdia a oportunidade de me importunar e hoje especificamente o principezinho apontou para as minhas bochechas sujas de amora, rindo de maneira sarcástica.
— Vai a merda, Elliot. — Revirei os olhos e peguei as caixas com rispidez, convidando apenas Lindsay para entrar. Bati a porta na cara do príncipe e o escutei reclamar com minha mãe, que sempre fazia o papel de intermediadora entre nós. Queria poder dizer para ela que na minha relação com o príncipe não sairia nada além de ódio, mas precisava manter a aparência para nossos pais.
Antes da tarde terminar, recebi as visitas de tia Lidia e tio Rique. Abracei a minha tia com saudade, faz dois anos que não nos víamos e o motivo dava-se ao fato da minha tia estar explorando o continente de Trealor. Adorava saber quais criaturas novas ela havia catalogado ao lado do marido, Brenner e ficava fascinada a cada novo catálogo que ela me mostrava.
Já o tio Rique, bom, era o tio Rique. Junto com a mamãe ele gerenciava os negócios da família, mas ela sempre dizia que ele era ótimo em arrumar problemas. Da última vez, ouvi que ele estava sendo obrigado a se casar com uma jovem da região de Prismolor, mas não sei como a situação se resolveu. Seja lá o que tenha acontecido, não foi o suficiente para segurar a língua dele, que era rápida para colocar outras pessoas em apuros. A escolhida da vez era eu, perguntada sobre a temporada atual. Esperava que eu fosse apresentada já no baile da próxima semana, mas antes que pudesse responder, minha mãe Amelie respondeu por mim.
— Não estamos com pressa e nem Mary-Ann. Ela se apresentará, e só se for essa a sua vontade, quando estiver disposta a isso.
Agradeci silenciosamente, trocando um olhar cúmplice com minha mãe. Realmente, tanto minha mãe Delilah quanto minha mãe Amelie eram enfáticas quanto a priorização das minhas vontades e o fato de tornar-se ou não uma debutante esse ano estava incluso. Ainda não tenho certeza da minha escolha, mas sei que tendo uma ou não, minhas mães irão me apoiar.
Decidi passar o restante daquele divertido dia em contato com o que mais fazia os meus olhos brilharem: a escrita. Tomei posse dos meus papéis e da minha máquina de escrever, sentei-me e deixei que as palavras me guiassem.
"Querida eu, que por enquanto é a única leitora dessas anotações, gostaria de dizer que o dia de hoje foi mágico. Comi bons pedaços de bolo de frutas vermelhas, o meu preferido, e interagi com Lindsay e meus tios. Bom, também me estressei com Elliot, mas ele não merece um espaço nesse papel, então passamos para o próximo ponto.
Hoje quando cumprimentei o senhor da barraca de frutas, senti mais uma vez aquela estranheza habitual sempre que alguém descobre (ou redescobre) que eu tenho duas mães. Poucas são as vezes que sofro algum tipo de descriminação por isso, felizmente, mesmo que em passos lentos, estamos caminhando para a aceitação de todas as formas de amor. Bem, ainda ouço por aí pessoas que juram que minhas mães até hoje são apenas boas amigas e olha que ambas possuem uma aliança vistosa para sacramentar a união. Mas para esses cochichos, o amor e a união é a melhor forma de resposta. Minhas mães são incríveis por não darem ouvidos a esses desocupados.
Quando me perguntam se me sinto estranha, tenho vontade de rir e perguntar por quê cogitaria sentir estranheza. Não sinto, nem um pouco. Aceitei Delilah e Amelie como minha família ainda na infância, quando fui adotada por elas após o falecimento da minha mãe. Guardo as memórias que construí com Fellicity, minha mãe biológica, em um espaço especial do meu coração. Mas, desde os 4 anos de idade, sou Mary-Ann Westville. O tesouro e o destino de minhas mães.
Todos os dias me sinto grata por ser uma Westville. Leio com orgulho os folhetos que exaltam os feitos da minha mãe na Assembleia, sendo ela a primeira mulher a ocupar uma cadeira. Delilah tornou-se o símbolo dos direitos femininos, consagrando-se como a maior cosmetóloga do Reino, expandindo os seus conhecimentos para outras áreas dos cuidados femininos e criando produtos úteis para o dia a dia que dificilmente estão fora de alguma residência do Reino e fora dele. Mamãe deu voz e possibilidades a milhares de mulheres que possuíam sonhos mas poucos lugares possíveis para realizar. Seguindo o seu exemplo, surgiram instrumentistas, pintoras, maestrinas. Mulheres de todas as classes sociais, empurradas pelo mesmo desejo de reger as rédeas do mundo. Mulheres que junto de minha mãe, estão conquistando todos os espaços possíveis e impossíveis.
Minha mãe é realmente incrível. Eu a amo. Agora, e não menos importante (se você estiver lendo isso, mamãe, não precisa ficar com ciúmes) É hora de falar da minha mãe Amelie.
Lembro-me de alisar os seus cabelos ruivos e achá-la tão bela sempre que olhava gentilmente para mim. Meu momento favorito era quando ela colocava o pequeno pincel entre os meus dedos, guiando-me para a tela vazia. Me lembro de rabiscar achando aquela a tarefa mais divertida do mundo, mas mais divertido era quando passávamos a pintar uma à outra, as cerdas faziam cócegas quando ela pintava a pontinha do meu nariz, nomeando-me como "a sua palhacinha" É impossível não sorrir perto da minha mãe. Ela tem as piores piadas do mundo, mas mesmo assim, gosto de ouvi-las todos os dias. Minha mãe é a artista mais talentosa que já vi. Suas mãos sobem e descem com precisão, seus olhos se estreitam e as pequenas rugas surgem no canto dos seus olhos, ela ainda é a bela mulher de olhos azuis que acariciava os meus cabelos depois de horas trancada no ateliê.
Espaço aquele que contém o cheirinho dela sempre que entro e fico abismada com o detalhamento que encontro. Na maioria dos quadros encontro os olhos oblíquos castanhos que tanto olharam para mim nas noites de relâmpago que adentrei nas cobertas e pedi por seu colo. Mamãe tem como sua principal inspiração a esposa, e confidencio aqui, porque sei que ela ficaria acanhada se dissesse em voz alta, que já a peguei admirando-a enquanto rabiscava os esboços em seu caderno. Para a minha mãe Amelie, todos os dias é como aquele primeiro em que revelaram o amor e eu acho isso incrível. Acho verdadeiramente bonito quando ambos os olhares se encontram, evidenciando o brilho afetuoso dos anos de união."
Espreguiço-me, sentindo os dedos doerem por tê-los usado tanto, mas realmente estava satisfeita com o que escrevi. Tudo o que tenho até agora são pequenos esboços de um desejo de ser cronista, e com as Graças da Deusa, o realizarei. Por que as minhas mães ensinaram-me que uma mulher, quando sonha, é capaz de tudo.
— Ainda está acordada? — Ouço a voz de minha mãe Delilah, encostada na porta do quarto. Do seu lado, encostada em seu ombro, minha Amelie abraçava a sua cintura de modo cotidiano. Sorri, assentindo. — Então será que nossa amada filha nos permitiria contar uma história? Igual aquelas que pedia quando era pequena.
Assenti e me aconcheguei embaixo das cobertas, deixando espaço para que elas se juntassem a mim. Relembrando a infância, fiquei entre as duas, me permitindo voltar a ser a menininha de cachos trançados que adormecia ouvindo histórias de uma Rainha guerreira, cujos traços físicos eram iguais aos meus. Pensando bem, acho que nunca deixei de ser. Olhei para as duas, usando os meus braços para abraçá-las. Realmente era muito sortuda por tê-las como mães.
— Sabia que eu amo as duas? — As apertei, rindo baixinho ao ver que minha mãe Amelie havia ficado emocionada com as minhas palavras. Aquilo era típico dela.
— Oh, minha filha, a gente também te ama muito! — Minha mãe me abraçou, choramingando. — Sempre será a nossa bonequinha.
— Sempre. — Minha mãe Delilah reafirmou enquanto secava as lágrimas da esposa. Reluzindo, o anel em seu dedo me fazia sorrir. Ainda não penso nisso, mas se um dia me casar, quero um amor bonito como o delas. Mas antes disso, quero realizar meus sonhos e o maior deles não é casar.
Olhei para cima, onde o quadro feito por mamãe repousava. Uma pintura da nossa família, minhas mães e uma versão menor minha abraçada por elas. Antes de ceder ao sono, olhei-as mais uma vez, captando o momento em que ambas se entreolharam, antes de olhar para mim. Na voz afetuosa, sussurros que embalavam os meus sonhos:
— Nossa Mary-Ann... O destino a trouxe para nos completar. Nosso tesouro, te amamos.
Fim.
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