Capítulo 8
Livres, as pétalas de petúnias acompanhavam o casal em sua caminhada pelo Parque das Rosas. Decerto, não era apenas a curiosidade das flores que os vigiavam durante o percurso no parque conhecido pelas variedades florais, justificando o nome. Jovens damas e rapazes os observavam, cochichando entre si.
— Licença. — Pediu o príncipe, assustando Delilah por um breve momento. Não haviam dialogado nem sequer uma vez desde a saída do Instituto, e sendo sincera, passou a acreditar que nada falariam até o momento atual. — Há uma pétala presa em seu cabelo.
— Ah, deixe que eu mesma tiro.
— Por favor, conceda-me a gentileza. — Killian se adiantou, pousando a mão enluvada nos cachos presos por uma tiara de cristal. — É o dever de um rapaz assegurar que a dama ao seu lado não seja importunada. Nem mesmo por uma simples pétala de petúnia.
Delilah queria perguntar-lhe sobre os conhecimentos florais que o príncipe aparentava ter, mas não lhe passou despercebida a estranha frase proferida. Levando a mão aos lábios, Delilah riu, ironicamente.
— Tais damas são tidas como sendo tão frágeis, a ponto de precisarem de uma imponente presença masculina a fim de livrá-la de todo mal?
— Não foi o que eu...
— Os senhores. — Delilah o interrompeu, compenetrada em seu monólogo. — Esquecem que uma figura feminina é a representação da justiça nesse reino. Uma Deusa que lutou sozinha. Se todas nós, que somos damas, viemos das entranhas Dela, então não é certo pensar que somos dotadas de força tamanha?
— Senhorita Delilah, eu jamais... — Killian pigarreou, sentindo-se exaurido diante do furacão Delilah, que destruía rapazes despreparados sem dó algum. — A senhorita está certa. As senhoritas são agraciadas por força, inteligência e carisma. Ou então, não seríamos todos gratos de termos vindo ao mundo pelas Graças atribuídas as senhoras.
Delilah assentiu, sorrindo. Killian era engraçado quando tropeçava em suas palavras e no modo como agia quando o nervosismo lhe atingia, além das gesticulações que fazia sem perceber. No entanto, Killian não era como os outros rapazes, que fariam valer o seu ponto por meio de dizeres chulos, que em nada faziam jus à força feminina. Aquele era um ponto positivo. Mas o príncipe não precisava saber disso.
Antes de correr para debaixo da árvore cujos galhos presenteavam a grama verde com pétalas desbotadas, Delilah abriu um sorriso zombeteiro e o deixou para trás. Seu objetivo, abaixo dos seus pés, acumulava-se em suas mãos, e em seguida era jogado para o alto, fazendo as cascatas de pétalas escorrerem pelas curvas de seu corpo como um riacho, desaguando em seus pés, para retornarem o caminho mais uma vez. A dama Westville divertia-se naquela empreitada, pouco importando-se com a opinião dos nobres que por ali passavam, reprovando-a.
Parado no mesmo lugar, Killian engoliu em seco, hipnotizado. Como poderia uma dama mortal assemelhar-se ao magnetismo de uma Deusa? Se Sibelle havia descido novamente ao mundo terreno, decerto assumia a forma daquela dama de olhos vívidos, alheia a qualquer coisa que não fosse a sensação das pétalas a fazerem cócegas em si. Delilah brilhava mais que o sol, que naquele momento parecia curvado à ela, reconhecendo-a como núcleo de seu próprio sistema solar.
— Alteza? — Delilah sorriu, parcialmente desgrenhada. — Está tudo bem? Parece ter febre.
Killian "acordava" de um longo sonho onde a mesma dama que agora pousava a cálida mão enluvada em suas bochechas era a estrela principal. Pigarreando, o príncipe assentiu, desviando o olhar da intensidade magnética que o encarava.
— Sinto-me em ótimas condições. — Disse o príncipe, aprumando-se. — Não era de meu conhecimento o gosto da senhorita por flores.
— Eu gosto, sim. — Delilah sorriu, deixando-o ainda mais acanhado. Acaso a jovem não possuía ciência do magnetismo que exalava? — Decerto, o senhor também. Ou não saberia que tais pétalas eram de petúnias.
— A senhorita insinua que o meu gênero é tão frívolo assim? — Killian arqueou uma sobrancelha, achando graça.
— Decerto. Rapazes se preocupam com bordéis e caçadas, e nada mais.
— E se eu lhe disser que não possuo tais aspirações? Me estima a caçada, mas sou bem mais que a senhorita supõe ser o forte do meu gênero.
— Só as caçadas? — Perguntou Delilah, fazendo graça.
— Só as caçadas. — Killian afirmou, acompanhando-a. — Não sou um libertino, milady. Pretendo ser um cavalheiro de apenas uma dama, e se bem percebe, ainda estou nessa busca.
Em outras palavras, Killian admitiu ser virgem. Constatando o fato, visto o modo como o príncipe ficava ao seu lado, Delilah riu e concordou.
— Pode-se dizer que Alteza é de uma espécime rara.
— Ah, pare de fazer graça de minha situação.
— Não estou fazendo graça. — Delilah ergueu o mindinho, para provar que falava sério. — É um diferencial. Aposto que suas milhares de seguidoras fiéis apreciariam a informação.
— No momento, interessa-me saber a opinião de apenas uma dessas seguidoras.
— Ah é? Acaso conheço tal dama?
— Se é da senhorita que estamos falando. — Killian sorriu de lado, esperançoso.
Delilah piscou os olhos ao saber das intenções do príncipe. Não era tola. Sabia que, dentre tantas jovens do Instituto, o chamado para que ela o acompanhasse não haveria de ser em vão. Aliado às palavras proferidas no baile, Delilah estava em vias de cair nas graças do príncipe e de toda Terithia se aquele jogo de flertes continuasse a acontecer. Por isso, precisava desviar o foco. E urgente.
— Perdão. Não queria deixá-la...
— Alteza. — Delilah começou, sorrindo fraco. — Aprecio o convite e o interesse para conhecer-me, mas acho precipitado demonstrar qualquer sinal de afeição que deixe claro as suas intenções comigo. Digo, antes de conhecer outras damas que podem fazê-lo mudar de ideia.
— Meu coração me diz que tal desejo não cessará.
— A temporada é extensa. Além do mais, não deve esquecer-se de sua posição. Um possível casamento entre o futuro rei de Terithia e uma Nova-Rica, não seria algo de fácil aceitação por parte do Reino.
— Outras senhoritas estariam ávidas para assinar os papéis do casamento tão logo pudéssemos nos casar. Mas a senhorita dispensa-me com tanta polidez. Não vá me dizer que é contra a instituição do casamento?
— Não haveria de ser. — Delilah riu, levando o olhar para as trepadeiras que se amontoavam entre troncos altos. — Aprecio a ideia de casar-me, mas desejo alcançar meus objetivos assim como os rapazes desejam experimentar a vida antes de enlaçar-se em um matrimônio. Só então poderei pensar em uma união.
— Quais objetos seriam mais importantes do que ajudar-me a governar este Reino?
— Conhecer-me. — Delilah respondeu, encarando o céu. O sol lhe recebia fazendo as pupilas brilharem em um raio de esperança que se acumulava em seu coração. — E conhecer o mundo além dos limites desse Reino. Mares cobertos de gelo, dunas desérticas, ilhas desconhecidas... É o que eu desejo.
Haviam parado para degustar muffins cobertos com amêndoas importadas quando Killian apontou para o outro lado do pequeno canal que separava as extremidades do parque. Parte do local já estava devidamente preparado para as festividades que receberia.
— Se está impressionada com esse, deve provar os que são preparados no Festival da Colheita. São divinos.
Delilah assentiu, mal podendo murmurar enquanto mordia e deliciava-se com a explosão de sabores em sua boca. Quando lhe disseram que tais comidas eram equivalentes a entrar no paraíso dos sabores, não julgou ser verdade.
— A senhorita comparecerá, certo?
— Hm? Claro, claro. — Delilah limpou os lábios, passando a língua entre eles ao mesmo tempo em que Killian lhe oferecia um paninho. Encolhendo a mão, o príncipe engoliu em seco, hipnotizado com a visão. — Lidia e Rique mal podem esperar, e mamãe não fala em outra coisa.
Killian assentiu, sorrindo com a menção à família de Delilah. Emendando-se, o príncipe prosseguiu.
— E como a senhorita comemorava as festividades? Antes de...
— Antes de ser nobre? — Delilah achou graça, continuando antes que o príncipe pudesse gesticular mais. — Bom, dançamos em agradecimento à colheita próspera por três noites seguidas. Os mais velhos contam histórias e os mais novos correm em torno da fogueira. No domingo, usamos o dia para preparar o Caldo da Felicidade, e devo dizer que é o ponto alto das comemorações. — A dama suspirou, lembrando dos tempos antigos com um misto de saudade. Quando as coisas eram mais simples e ela podia ser apenas ela.
— Caldo da Felicidade? — Killian estranhou.
— Uhum. — Delilah aceitou o braço que Killian lhe ofereceu, andando ao seu lado. Killian não deixou de pigarrear diante da proximidade entre os dois, por mais que a echarpe azulada os afastasse alguns centímetros consideráveis. — Era o prato mais aguardado. Não podíamos ter acesso a carne vermelha cotidianamente, mas naquele dia em específico, os homens mandavam matar um boi especialmente para o Festival. Daí misturavam os legumes da colheita, que diziam ser bons para dar forças aos trabalhadores pelo próximo ano. Sinceramente, eu só parava de comer quando estava em vias de desmaiar.
Delilah riu, limpando uma lágrima do canto de seus olhos que servia para representar a saudade que lhe entristecia, e a nostalgia que a envolvia. Killian mais uma vez se viu diante de uma Musa Celestial, e foi preciso muito para voltar ao assunto proposto.
— Pois então me vi tentado a comer esse preparado. Se é tão bom como diz, serei obrigado a fazer parte da horda de seguidores de tal prato.
Killian sorriu, para o espanto de Delilah com tal reação.
— Ah, mas esse não é um prato costumeiro a um príncipe...
— Como saberei se não provar? Além do mais, poderei conhecer seus familiares. Quero mesmo me desculpar pelo modo como a abordei no baile.
— Não precisa... — Delilah rolou os olhos, lembrando de todos os acontecimentos do baile, inclusive os momentos que passou trancada com a nobrezinha mimada. Aliás, por quê pensara nela justo naquele instante?
— Acaso não deseja que eu a visite?
— Não é isso!! — Delilah balançou a cabeça em negação. — Mas haverão de pensar coisas se a notícia se espalhar...
— Achei que a senhorita, pelo modo como apareceu no baile, não temesse os cochichos da sociedade.
— Não temo. — Delilah suspirou. Então, o que a segurava? Os comentários das jovens do Instituto? Mas nunca poderia ligar para tais palavras. Ou apenas uma figura a repelia? Quando pensava na jovem de cabelos vermelhos, por mais que a ideia de aliar-se ao príncipe parecesse tentadora, ainda parecia preocupada pela reação de Amelie quando a dama soubesse daquela visita. Delilah se lembrava dos olhos de Amelie com o convite do príncipe, e sem saber o por quê, aquilo lhe incomodou. Assoprando os pensamentos para bem longe, Delilah assentiu. — Haverá de provar então, Alteza. Garanto que sabor igual não há.
— Se é o que diz, milady. — Killian sorriu, floreando. — Então esperarei com ardor.
🜲🜲🜲
Ao cair da noite, quando as janelas sussurravam segredos em forma de uivos distantes, Delilah caminhou entre os corredores silenciosos segurando com cuidado a vela que tremeluzia em sua mão. Foi bombardeada de perguntas quando o passeio encontrou o seu fim e juntos, adentraram as dependências do Instituto com a certeza de uma próxima vez – mais dele, do que dela. – Desviando dos olhos curiosos, Delilah encontrou paz no jardim onde ao longe, perto das rosas vermelhas, encontrou Amelie, que não havia se dado conta de sua aparição. Ali distante, a jovem que significava o seu tormento parecia vulnerável. Como se fosse pequena pelo tamanho dos problemas que deveria enfrentar. Acaso todas as nobres nasciam com uma estrela reluzente apontada para si? E independente de qual fossem as suas vontades, deveriam seguir o proposto em seu nascimento até os fins dos tempos? Ao encarar Amelie, Delilah encontrava inconstância mascarada nas ferrenhas atitudes da dama D'Montfort. Suas percepções foram interrompidas quando os olhos de mar encontraram os seus, e o ódio transbordado deles a fizeram se recolher com um estranho sentimento no peito.
Abrindo a porta do seu quarto, encontrou Rosa ajoelhada diante de objetos ainda não identificados. O click da porta a fez sobressaltar-se, e estava prestes a se debulhar em sinceras desculpas quando Delilah aproximou a fonte de luz dos objetos que Rosa vasculhava. Eram os seus livros.
— Asseguro-lhe de que apenas tentava arrumar! — Rosa se curvou, apertando os lábios.
Delilah olhou para os livros, e para Rosa, em seguida, para os livros novamente, notando que as páginas estavam abertas. Sorrindo, a dama Westville pôs a vela em cima da escrivaninha, chamando-a para perto.
— Acaso estava tentando ler, Rosa?
— Não poderia pensar nisso, milady! Sei bem o meu lugar.
— E qual seria o lugar que te impediria de ter acesso a um direito que lhe pertence? — Delilah questionou, pegando o exemplar.
— Não queria ser mexilhona, perdoe-me. Arrumarei tudo em um instante.
— Rosa. — Delilah chamou-a mais uma vez, parando a criada. — Pode me dizer.
— Eu... — Rosa olhou para baixo, envergonhada. — Não tenho o dom da leitura, milady. Estava tentando diferenciar essas coisinhas miúdas, mas... Nada consegui.
Delilah assentiu, entristecida. Viu-se em Rosa, se não fosse por seu pai e as leituras consecutivas enquanto o homem anunciava seus produtos na feira livre. Mas nem todos puderam ter as mesmas oportunidades que ela. Então, que fosse possível para ela ajudar.
— Então... — Delilah a chamou para se sentar com ela. — Terei o prazer de ensinar-lhe. E a qualquer uma das meninas que quiserem aprender.
Rosa pôs as mãos nos lábios, estupefata.
— Não poderia ser tão ousada! Nem eu, nem as outras. Se Lady Lefrance descobrir...
— E se ela não descobrir? — Delilah sorriu de maneira travessa.
Rosa não possuía chances de retaliar. Derrotada, a criada juntou-se a dama em uma série de leituras pausadas, acompanhando o seu ritmo.
— A..m...
— Amiga. — Delilah completou. — Quando o m e o i se formam, formam mi.
— Essas letras são tão difíceis... — Rosa suspirou. — Embaralho-me toda.
— Com o tempo, ficará mais fácil. — Delilah garantiu, sorrindo. — Verá como as letras são mágicas.
E com um sorriso sincero no rosto das duas cúmplices, a noite passou como o suspiro de uma criança, sereno e leve.
🜲🜲🜲
Cedritte regava as flores, entretida com a sua função. Não percebeu quando Delilah a surpreendeu por trás, fazendo-lhe cócegas.
— Lady Delilah! — Repreendeu a jovem, molhando-se por inteiro. — Acaso deseja matar-me de susto?
— Nem poderia sonhar em perder a minha melhor companhia neste Instituto. Além de Rosa, é claro.
— Não posso competir com Rosa mesmo. — Cedritte riu, colocando o utensílio de lado. — Ela é uma boa pessoa. Cindy disse-me que recebeu um convite para ter aulas particulares com a senhorita. Não teme que Lady Lefrance descubra?
— Que estou tratando seres humanos de maneira digna?
— Não é esse o ponto... — Cedritte suspirou, limpando as mãos sujas de terra. Delilah a auxiliou, cobrindo as flores com estrume. — Sabe dos pensamentos de Lady Lefrance. O quanto ela gosta que tudo esteja nos conformes.
— Não compreendo tal pensamento. Nem posso aceitar.
— Eu entendo como se sente, juro-lhe. Mas temo perder a sua companhia... Além da senhorita, só tenho Cindy para me escutar.
— Mas não seria natural que a senhorita conseguisse se misturar dentre as jovens da sociedade? Não é como eu.
— Bom, de fato tenho linhagem nobre, mas minha família enfrentou alguns problemas financeiros a alguns anos atrás. A senhorita deve lembrar-se das palavras de Lady Amelie quando conhecemos-nos. A família D'Montfort por anos foi a nossa fiadora, e papai ainda tenta se libertar das amarras dessa família.
Cedritte suspirou, olhando para o jardim de maneira triste.
— A maior esperança de papai é o meu matrimônio, que deve ser logo. No baile, dancei com Lord Elthon, e o meu coração tentou convencer-se de que ele era o rapaz certo para mim, mas... Ah, Lady Delilah, estou tão nervosa!
— Ainda há tempo, Cedritte. — Delilah juntou as mãos com as da amiga, apertando com compreensão. — Não deve atropelar seus sentimentos.
— Acha mesmo? — Cedritte rolou os olhos, desgostosa. — E se Lord Elthon for o único que olhará para mim?
— Eu duvido. — Delilah comentou, sincera. — A senhorita é linda, graciosa e carismática. Tem um coração gigante e é a melhor pessoa para dar conselhos. Qualquer um deveria ser grato por conquistar o seu coração.
Cedritte sorriu, mais confiante após as palavras de Delilah. Limpando uma pequena lágrima no canto dos olhos, a dama voltou ao trabalho com a terra, sendo acompanhada por uma Delilah pensativa.
Seus pensamentos a acompanharam quando se despediu de Cedritte e adentrou na residência, limpando-se na barra do vestido. Atravessou o corredor e entrou na ala desértica, notando uma sombra curiosa. Aproximando-se, a dama percebeu que a origem da sombra dava-se a abertura de uma sala que originalmente mantinha-se fechada à sete chaves. Olhando de um lado para o outro e certificando-se de que não havia testemunhas, Delilah empurrou a porta o suficiente para poder passar.
O local era mágico, esplêndido e encantador. Delilah girou em seu próprio eixo, boquiaberta, olhando para as paredes do lugar. Paredes estas que recheadas de livros de todos os tamanhos, grossuras e capas que pudesse imaginar. Como aquela perfeição divina que estava ali, ao alcance dos seus olhos, pôde estar trancafiada há tanto tempo?
Pilastras de ouro maciço separavam as estantes embutidas, brilhando ao olhos da jovem. Decerto haviam sido recentemente lustradas, e por obra do engano, a criada responsável pela limpeza esqueceu a porta aberta. Delilah não podia acreditar. Para onde olhava, livros e mais livros, histórias ao alcance de todos, mundos diversos a conhecer, condenados ao ostracismo. Não era justo.
— Bem, se há tantos... Lady Zoeh não sentiria falta de um ou outro. — Pensou a jovem, disposta a fazer daquele cômodo a sua casa. Contagiada, Delilah subiu as escadas espiraladas, sentindo-se em um conto de fadas. Aproximou-se da primeira estante, erguendo suas narinas, e inspirou. O bom e velho cheiro daquelas páginas amareladas que abrigavam universos que ela queria conhecer. — Também não posso esquecer-me de Rosa. Deveríamos começar com histórias fantásticas? Breves contos? Vejamos...
Delilah sorria como uma menina prestes a desembrulhar um brinquedo novo quando um leve ranger na porta a fez desviar os olhos de sua atual diversão. De pé, a encará-la com olhos cristalinos e desconfiados, estava Amelie.
— Deveria contar a Lady Lefrance que uma de suas pupilas está bisbilhotando onde não deve? A biblioteca é estritamente proibida para nós.
— É mesmo? — Delilah sorriu irônica, encostando-se no corrimão enquanto folheava um livro. — E posso saber qual motivo infame justificaria essa afirmação?
— Bom, damas como nós não precisam perder tempo com atividades inúteis. Ao passarmos por nossas preceptoras, e obtivermos o conhecimento necessário, é o que basta. — Amelie sorriu, pronta para acrescentar seu deboche habitual. — Mas é claro que uma plebeia nunca entenderia isso.
Delilah juntou as sobrancelhas, negando-se a responder em um primeiro momento. Mas, tomada por um sentimento indescritível, suas palavras saíram antes que as pudesse conter.
— E a senhorita concorda com isso, Lady Amelie?
— Há motivos para discordar?
— Se for por motivos próprios... Mas sabe o que me parece? A senhorita age como um papagaio, a repetir tudo o que ouve. Até mesmo o seu ódio em relação a mim não é seu por completo.
Amelie inflou-se, pintando as bochechas de vermelho. O busto saliente subia e descia em uma velocidade considerável, e naquele momento Delilah a odiou por escolher vestidos tão... apresentáveis.
— Ora, ser chamada de papagaio por uma gata borralheira não me parece nada justo. — Zombou a jovem irritada, apontando para as manchas de terra no vestido de Delilah. — Não estou a replicar o que os outros dizem. Mas, se é o que deseja, posso transmitir os cochichos dessa gente, quando falam que o príncipe Killian aproximou-se da senhorita por pena.
— E qual motivo o príncipe teria para apiedar-se de mim!?
— Pelas vestes indecorosas usadas pela senhorita no baile? Pela posição que ocupa? Por sua gente ser motivo de chacota entre os jantares reais? Precisa de mais motivos...?
— Então, se a senhorita afirma que príncipe Killian está apiedado de mim, posso presumir que seu interesse em fazer de mim sua rainha também entra nessa presunção de pena?
Delilah soltou um sorrisinho quando Amelie arfou, consternada. Ela havia tocado no ponto certo para aquele castelo de cartas frágeis começasse a ruir.
— A senhorita não tem ciência das palavras que profere. Killian nunca se casaria com uma plebeia!
— Deseja a senhorita mesmo perguntar? Suspeito que não gostará da resposta.
Amelie se apoiou na parede, incrédula. Até onde eles haviam ido naquele passeio? Ela havia julgado mal, muito mal. De acordo com os cochichos de outros, Delilah era um passatempo para o príncipe antes que seu real objetivo fosse alcançado, como um tira gosto antes do grande jantar. Mas havia lido a situação de maneira errada.
— E a senhorita... aceitou? Está prometida a ele?
Delilah percebeu o tom de voz imprimido na voz de Amelie, que curvava o corpo em uma expressão perdida. Não devia apiedar-se daquela nobrezinha mimada que veio até o local de seu descanso para a atazanar, mas vendo o seu atual estado, se viu compelida a recuar, odiando a si mesma por isso.
— Estou prometida a mim mesma. — Delilah suspirou, voltando a folhear o livro. — A mim mesma, e a mais ninguém.
— A senhorita é idiota!? — Apertando os punhos, Amelie riu consigo mesma, amarga. — Recebe uma proposta de casamento do príncipe deste Reino e recusa?
— Não disse ter recebido uma proposta de casamento. — Delilah rebateu, óbvia. — Disse que o príncipe nutre interesse por mim. São coisas diferentes.
— Tais diferenças não são importantes para uma mulher! — Amelie insistiu em grave tom, estupefata. — Uma dama sabe transformar o jogo ao seu favor. Se a senhorita bem quisesse, enlaçaria o príncipe antes que ele pudesse se dar conta de que o enlaçou.
Amelie estava estranha. Delilah era a sua rival sacramentada, a dama que jurou derrotar, mas no momento, sentia-se indignada pela chance perdida. A chance que ela daria tudo para ter. Parecia uma zombaria do destino, tamanha sorte cair no colo de alguém que nem sequer a buscou.
— Devo presumir então que é uma dádiva da Deusa ser escolhida pelo príncipe? E tal recusa imprimiria a minha burrice em minha testa?
— Ainda que me doa concordar, é sim.
Delilah riu. Um riso tão natural que foi capaz de clarear as pupilas de Amelie, ainda que as janelas estivessem encobertas por cortinas. A jovem não entendia por que tal ato foi capaz de transformar em cores, sua visão nublada e entristecida.
— Lady Amelie. — Começou Delilah, secando as lágrimas de riso. — Devo-lhe dizer que a senhorita não poderia estar mais errada.
Antes que Amelie pudesse se dar conta, seus pés caminhavam na direção dela. Delilah a aguardou, brincando de se apoiar no corrimão que a impedia de cair. Ela nem podia imaginar que a rival a observava, inerte.
— Continuo achando que a senhorita é uma tola. Não são livros fúteis que mudarão isso.
— Dou-lhe liberdade para me julgar como quiser, mas por favor, não faça o mesmo com os livros. Garanto-lhe que ficará fascinada até o dia terminar.
— Até o dia terminar!? — Amelie arregalou os olhos. — E se alguém nos pegar?
— E se alguém não nos pegar? — Delilah piscou, aproximando-se das estantes. Compenetrada, ela leu os títulos dos exemplares, até achar um que fosse do seu gosto. — Perfeito. É esse.
— O diário de Mary-Ann Shelley? — Amelie torceu a boca, desgostosa. — Qual é a graça de ler o diário dessa dama?
— Eu não sei. — Delilah confessou. — Também não li. Mas adoraria se pudesse me contar.
Amelie estalou os lábios, se recusando a dar ouvidos a uma dama tão desvirtuada. Delilah não se incomodou, afinal, não deixaria de aproveitar o local por causa da presença da nobre. Encontrou um livro para si e se apoiou, folheando as folhas com curiosidade.
A jovem entediada, por outro lado, poderia refazer o caminho de volta e passar o restante da tarde com Clorance e Jolie, que certamente a esperavam para a bajular. Ou poderia acabar de vez com a estadia de Delilah, denunciando-a para Lady Zoeh. No entanto, ao encarar a dama Westville na pouca luz ambientada no cômodo, não conseguiu concretizar nenhuma das duas ideias. Delilah lia como se o mundo para além daquele livro não existisse, concentrada e sedutora. Era um disparate que aquela dama parecesse tão bem trajada com aquele vestido sujo de terra, misturando o azul da cor original com o barro. Sua pele retinta reluzia mesmo com a pouca luz, e os lábios que abriam e fechavam a cada palavra sussurrada, ah, Amelie poderia observá-los por um dia inteiro. Ao se dar conta do que fazia, Amelie quis arrancar a sua cabeça por enchê-la com pensamentos tão anormais. Delilah era a sua rival, o seu maior desgosto, e uma dama que ocupava tal posto não deveria ser observada e admirada de tal modo.
Relutante, Amelie abriu o livro gasto, sendo recebida pelas marcas do tempo expostas na folha amarela. Suspirando, a jovem prosseguiu, precisando de apenas dez minutos para estar completamente mergulhada nas passagens sufocantes do diário.
Delilah estava focada na leitura e nada a pararia, exceto pela visão que teve ao levantar suas pupilas e vê-la folhear as páginas. Amelie fungava, contendo as lágrimas que insistiam em descer. A jovem não sabia que estava sendo observada, e nem poderia saber, sob o risco daquela ponte frágil de paz ceder. Delilah não entendeu o motivo que a fazia manter tal ponte, quando pouco lhe importava os sentimentos de Amelie por ela. Era o que deveria pensar, mas seu coração apertava com a mínima possibilidade de ambas as damas voltarem a se repelir. Vendo-a tão absorta, tão serena, tão admirável, Delilah já não tinha vontade de brigar.
— E então, o que achou? — Delilah iniciou o diálogo, observando uma Amelie paralisada na última página.
— Ela... ela morreu? Sim, porque não há continuação. Todas as páginas estão em branco. Mas... mas... não é justo! Ela estava tão...
— Bem vinda à doce tortura do universo literário. — Delilah sorriu. — Nem todas as histórias terminam com um final feliz.
— Mas... Isso é tão cruel! Eles não a deixaram entrar para a Companhia por ela ser... mulher? O pai preferiu perdê-la a ter que aceitar a sua vocação?
Delilah assentiu, em silêncio. Amelie parecia distante. Pálida, a dama D'Montfort conteve as lágrimas que teimavam em descer, e tomada por outro daqueles sentimentos inexplicáveis, Delilah a segurou pela mão. O choque pelo ato despertou Amelie, que encarava fixamente a mão da dama ligada a sua.
— Quando desejamos trilhar outro caminho se não aquele que pavimentaram para nós, somos apresentadas à falta de apoio e as desmotivações constantes. Nunca é fácil para uma mulher ser aquilo que ela deseja ser. Na maioria das vezes, morreremos tentando.
— E vale a pena? Vale a pena passar por todas essas provações para morrer no meio do caminho?
— Se isso for o que o coração deseja, sim.
Delilah apertou a mão gelada de Amelie, que não podia entender como a morte poderia ser melhor que uma vida em matrimônio. A jovem foi ensinada a pensar que não há nada do outro lado da margem para uma mulher. Tudo o que existe é o casamento, e os filhos que conceberá. Mas ao conhecer Delilah, e Mary-Ann, será mesmo que não havia outro caminho?
— Isso... isso são tolices. — Amelie se afastou, abruptamente. Como um vaso partido, a pequena trégua entre as duas espatifou-se em mil pedaços. — Veja só, aqui estou eu, dando ouvidos para uma plebeia que nada sabe do mundo das damas. Se eu for vista aqui, falarão que decai ao mesmo nível que o seu.
E sem olhar para trás, Amelie segurou na barra de seu vestido, pulando os degraus. Não olhou para trás nem quando ultrapassou a porta, deixando Delilah sozinha, diante daquele rompante. Burra, idiota e mil coisas mais por se deixar envolver pela aura doce da nobrezinha. No final do dia, as coisas sempre voltariam para as estantes de ódio que abrigavam a difícil relação das duas.
🜲🜲🜲
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top