Capítulo 24
"Ah, a mudança dos ventos. Flores que despencam das árvores, pálidas e sem vida, distanciando-se do que um dia foram.
Tais flores podem ser comparadas ao surpreendente desfecho, outrora tão cheio de expectativas, da comentada e fatídica quase união entre Arnold Clearvant e Amelie D'Montfort. Quem haveria de acreditar que um arranjo tão encantador amargaria em um esquecido vaso de decepções?
Tamanha decepção sentida pelo príncipe Killian acerca do caráter hostil de seu primo, o fez sentenciar após o não-casamento, a ida daquele que esperou ter o Trono ao alcance de suas intenções presunçosas, à um exílio longevo. Arnold Clearvant passará o resto de sua vida, quantos a Deusa o concederá, preso ao seu poder e ganância, que apenas serviu para colocá-lo nos confins do subterrâneo, onde não é possível fugir. Um final deveras inesperado para o homem que almejava o topo.
Porém, não devemos esquecer que Arnold não ousou interromper a ordem natural dos reinados sozinho. Ao seu lado, detentor de glórias e títulos que cidadão nenhum de Terithia poderia esquecer, Edgard D'Montfort como o último sopro de um homem acometido pelas próprias ambições, foi sentenciado ao mesmo vão cruel onde o Duque agora habita e consigo, arrastou a majestosa família D'Montfort para um declínio cruel. Seus atos o levaram para o último lugar onde um Marquês honrado estaria, mas o primeiro a ser pensado para neutralizar um homem vil. Edgard passará o restante de sua agora miserável existência na mais preparada prisão para conspiradores e traidores do Reino. Irônico, cara leitora, que o mesmo homem que outrora espalhava os seus bens feitos e por consequência o seu nome, acabe para todo o sempre no Lar dos Esquecidos.
Mas engana-se, minha amiga leitora, se pensas que tal árvore permanecerá sem a esperança de um amanhã. Caem as pétalas, mas ficam os botões. E tal ilustração desta frase poderia ser descrita nos olhos iluminados de Amelie D'Montfort, que bravamente estava disposta a entregar-se de corpo e alma se assim pudesse salvar aquele que outrora foi o potencial pretendente. Mas se pensas que casar-se com o príncipe ainda é a principal motivação dessa dama, querida amiga, devo informá-la que tal dedução está deveras errada.
Vi nos olhos daquela menina-mulher uma determinação nunca antes vista, o despertar de uma bela rosa após ser-lhe tirado as ervas daninhas que a impediam de crescer. Minha cara, nem todas as flores florescem na primavera.
Algumas, surpreendendo até mesmo o árido clima e os ventos ferventes, encontram espaço para desabrochar.
Crônicas de uma Lady Bem-Aventurada, edição 323."
Aida, com os olhos sem vida, encarava a poltrona vazia enquanto duas criadas pairavam ao seu lado, sem saber o que dizer. Fazia dias que aquela residência estava daquele jeito, morta. Após a prisão de Edgard, o notável patriarca dos D'Montfort, toda a família parecia ter se exilado junto. A mulher definhava pouco a pouco, olhando para móveis cuja confecção lembrava-lhe de glórias que nunca voltaria. Nada mais poderia voltar.
— Senhora, as cartas acumulam-se no antigo escritório de Lord D'Montfort. Devemos entregá-las para a senhora? Vimos que uma delas pertence a Vincent D'Mollina, e como já ouvimos o nome de tal homem... Não que sejamos fofoqueiras, mas...
Aida congelou ao ouvir o nome do homem que perturbava-lhe os sentidos desde a prisão de Edgard. Vincent D'Mollina, um primo distante e atualmente, detentor do patrimônio D'Montfort. É claro que tal homem não esperaria para reivindicar o que lhe era de direito, e não haveria nada no mundo que provasse o contrário. No mundo em que vivia, apesar dos esforços para manter aquele nome tanto quanto Edgard, na primeira ausência dele, nada mais lhe pertenceria.
Sem perceber, a mulher desolada arranhava o tecido do sofá que outrora recebia convidados e sorrisos que a reconheciam como a senhora daquela casa. Em poucos dias, se nada fizesse, Vincent a enxotaria ou, no máximo, lhe concederia um pequeno quarto para que pudesse passar a velhice. Mas Aida D'Montfort não queria que aquele fosse o fim de sua vida.
No entanto, o que poderia fazer?
— Diga a Amelie que a chamei. Precisamos resolver a nossa vida.
E assim foi feito. Minutos depois, trajada de certezas e determinação, Amelie pôs-se à frente da mãe.
— Mandou me chamar, mamãe?
— Oh, sim. — Aida esfregou as mãos, mais brancas do que o usual. — Irá para a casa da sua tia, e lá passará alguns meses até que as fofocas se cessem. Estamos hoje nos folhetos de Lady Bem-Aventurada, no entanto amanhã outra infeliz ocupará nosso lugar. E até lá, se preparará para casar-se com seu primo.
— Meu primo? — Perguntou Amelie, arqueando as sobrancelhas. Sabia dos cochichos. Parte da população estava chamando-a de noiva infeliz, pelos acontecimentos do seu deplorável matrimônio, outros chamavam-a de heroína pela escolha que beneficiaria o príncipe. Assistiu com lágrimas nos olhos a cena que jamais sairia de sua cabeça, e mesmo naquele momento, naquele último momento em que se veriam, Edgard não olhou para trás. Não a reconheceu até o fim. No entanto, apesar da ardente fissura em seu peito, com o amor de Delilah e a certeza de um amanhã, tal rachadura já não doía tanto. Ao lado de sua dama, ela poderia suportar.
— Vincent D'Mollina, o homem que virá para reivindicar o que outrora foi de seu pai. — Aida alisou as têmporas, parecendo fazer força para falar. — Terá que se casar com ele, Amelie. Não podemos ficar a ver navios.
— Perdoe-me mamãe, mas não posso fazer isso.
Amelie foi incisiva na resposta, para a grande surpresa de Aida que se exasperou.
— Acaso tem noção do que está me dizendo, Amelie? Está negando o seu futuro? Ah, não me diga que está pensando em correr atrás do príncipe novamente. Devo-lhe dizer...
— Não! — Amelie gritou, interrompendo-a. Naquele momento, estava prestes a ter a conversa mais difícil de sua vida, na frente da pessoa que ela sabia nunca ter a olhado como verdadeiramente é. — Será que a senhora nunca vai me perguntar o que eu quero, mamãe? Será que mesmo depois de toda a nossa família ser destruída, apenas pensará em status, poder e permanência nessa elite mesquinha? Não me casarei com Vincent e nem com qualquer outro cavalheiro que julgar ser o melhor para mim, pois não sabe, não tem a ciência do que eu realmente quero. E não estarei arruinando o meu futuro, estarei o salvando.
Aida levantou-se, mantendo-se a poucos passos da filha que ousou elevar o tom de voz. Onde estava a sua querida filha? Tal dama grosseira não era a sua perfeita Amelie.
— Apenas esperei que fosse o melhor momento para contar. — Amelie prosseguiu, apertando os punhos. — Estou apaixonada por Delilah, e quero viver o resto da minha vida com ela. Não serei feliz presa a um casamento de mentiras como a senhora foi, mamãe. Serei feliz ao lado da mulher que amo.
— Tais palavras são um disparate! Uma maldição! Está possuída pelo mal! — Aida berrou, encarando-a com repugnância. — Criança tola, apaixonada por uma dama? Se é que podemos tratar aquela obra do mal de uma forma tão elegante! Tal mulherzinha vulgar, inescrupulosa, filha de Lilith...
— Não permitirei mais que destrate Delilah em minha frente. — Amelie grunhiu entredentes, desafiando a autoridade de Aida. — Há tanto tempo eu me deixei repetir as suas mentiras, os seus pensamentos horríveis e fui a pessoa nojenta que a senhora sempre quis que eu fosse, mas não posso mais ouvir tais palavras e não sentir asco e repulsa. A senhora, mamãe, que não é digna deste ambiente. Mesmo que tente, sua falsa elegância nunca conseguirá cobrir a pessoa lamentável que é.
Aida possuía os olhos avermelhados e a face marcada pela raiva. Com a palma da mão aberta, avançou em Amelie pronta para ensiná-la que nunca deveria tratá-la daquela forma, no entanto, a centímetros do rosto determinado da filha, foi parada pela mão que agarrou o seu pulso, impedindo-a. Os olhos de Amelie brilhavam, ávidos e certeiros, claros como um dia de sol.
— Não deixarei mais que levante a mão contra mim. Não estou mais sob o jugo de suas ordens, Aida D'Montfort. Conheci a liberdade e ainda que me odeie por isso, não a deixarei escapar. E é uma pena mamãe, que mesmo frente a frente com um claro exemplo do caminho que a espera caso não mude suas atitudes, ainda insista em se afundar. Eu... apenas posso desejar que um dia a voz da razão encontre espaço no seu coração.
Amelie sorriu fraco, um sorriso retirado de sua tristeza por não ter conseguido salvar a sua família. Não havia nada que pudesse fazer para salvar Edgard e Aida de suas ambições, mas ainda era triste olhar para todo aquele espaço que para muitos é invejável e não enxergar nada mais que um ninho perverso de caos. Soltou o pulso da mãe, que parecia não ter mais uma alma dentro de seu corpo, apenas vazio e dor. E genuinamente desejando que um dia as coisas pudessem se resolver entre Aida e ela, Amelie deixou a dependência dos D'Montfort, que por tanto tempo foi o seu sinônimo de lar, sem olhar para trás.
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— Uma boa filha à casa torna. — Disse Amelie rindo de maneira fraca, ao ser recebida por Zoeh e o motivo da iluminação de seu olhar, Delilah. Fazia tempo que as duas não se encontravam, e apenas olhar para o seu rosto corado fazia o seu coração se acalmar. — Espero que a minha estadia não lhe traga problemas, Lady Lefrance.
— E quando foi que esta velha casamenteira de guerra deu ouvidos para cochichos? — Perguntou Zoeh, recebendo a antiga pupila. — Serão bem vindas nesta residência pelo tempo que quiserem ficar. Os comentários são apenas comentários.
Amelie e Delilah se entreolharam, compartilhando um sorriso que misturava saudade e alegria por se reencontrarem. Após a saída de Zoeh, que justificou verificar o andamento do almoço, ambas as damas saudosas trocaram um caloroso abraço, apertando uma à outra.
— Céus, eu poderia me derreter de saudade! — Delilah foi a primeira a quebrar o silêncio, encostando o nariz na curva do pescoço da dama D'Montfort. Como era bom inalar o aroma de sua amada novamente.
— Contei os dias para que estivéssemos assim, grudadinhas. — Completou Amelie, apertando-a. — Mas não poderia sair sem antes confrontar a minha mãe.
Amelie sentou-se e apertando as mãos de Delilah, contou-lhe todo o ocorrido entre Aida e ela. Derramou lágrimas que foram prontamente acolhidas pela outra, que acariciava-lhe as bochechas.
— Eu sinto muito. — Delilah suspirou. Não tinha uma boa relação com Aida, isso era fato, mas em seu interior pedia à Deusa para que um dia Amelie se resolvesse com a mãe. Queria entregar o mundo para ela, mas como não poderia, entregava-lhe o coração. — Por mais que tentemos, no final de tudo, apenas nós somos responsáveis pelas nossas escolhas. E devo dizer que estou deveras orgulhosa da minha Amelie por tomar a melhor delas.
— Sua Amelie, é? — Amelie deu um risinho, se aconchegando na amada. — E qual foi essa escolha?
— Ter parado de ser uma chata. — Delilah riu quando Amelie a beliscou, fingindo chateação. — Ah, vai. A gente não pode negar que eu sofri muito na sua mão.
— Eu posso dizer que esse foi um truque meu para que se apaixonasse mais. Até porque, nós duas sabemos que ama uma dama de personalidade forte.
— Só se essa dama for a minha nobrezinha mimada. — Delilah se aproximou, atacando o pescoço alvo de beijos. — E mesmo sem esse truque, o resultado seria o mesmo. Não há ninguém nesse mundo que conquistaria a minha atenção além de ti.
— Oh, devo ficar lisonjeada. — Amelie abriu um sorriso largo, usando o indicador para levantar o queixo da amada. — Saber que o coração que todos queriam é somente meu me dá vontade de apreciar a conquista.
— E eu posso saber o que impede? — Delilah deslizou os lábios para o ouvido da dama D'Montfort, pausando as palavras de modo despretensioso.
E abriu um sorriso deliciosamente vitorioso ao sentir os lábios de Amelie em contato com o seu.
— Lady Lefrance pediu para que... — Rosa paralisou no lugar, avermelhada dos pés à cabeça ao notar que entrou em um momento nada oportuno. As damas ofegantes separaram-se, igualmente avermelhadas, mas nem um pouco arrependidas. — Finjam que não estive aqui.
Delilah soltou uma gargalhada, olhando para Amelie como se perguntasse "onde estávamos mesmo?" e para relembrar a sua memória, a dama apaixonada novamente a beijou.
A noite chegou trazendo silêncio aos cômodos vazios e passos ritmados em uma certa direção. Portando uma vela tremeluzente nas mãos, Amelie bateu livremente na porta que a separava de sua vontade, e tão logo recebeu permissão para abrir, pousou seus olhos na linda dama que observava o tom pálido da lua. Delilah estava perfeitamente iluminada e tentadoramente provocante. Esvoaçante, sua chemise transparente lhe dava a visão de suas pernas, apenas para se esconder sob o irritante tecido novamente. Apenas voltou à si quando a voz conhecida a chamou.
— Achei que não viria. — Delilah sorriu de lado, afastando-se da luz da lua. Mas ainda estava iluminada, sob a ótica de Amelie. — E se não viesse, eu iria buscá-la.
— Se eu não viesse, enlouqueceria. — Amelie engoliu em seco ao notar que Delilah retirava a vela de suas mãos, apagando-a com seu hálito quente. — Não... tome as rédeas hoje. Quero comandar.
— É mesmo? — Delilah sorriu sugestivamente, aproximando o indicador na direção dos cachos ruivos de Amelie.
— Digo sério, Dê. — Ah, o apelido. Delilah poderia ronronar ao seu chamada daquele jeito por sua amada. — Sempre faz tudo por mim... Quero ser capaz de fazer algo por ti.
— Já faz, me mostrando esse jeitinho gracioso. — Delilah sorriu e aproximou os lábios, beijando o pescoço delicado. Amelie fechou os olhos, suspirando enquanto buscava concentração. Sabia que se aquilo continuasse, se deixaria levar e novamente seria conduzida por Delilah. Ela não queria aquilo. Naquela noite, ela queria comandar.
— Mas... mas... — Amelie ofegou, dando-lhe o espaço que precisava para que beijasse o colo. — Não é justo. Todas essas vezes só eu... Senti... Delilah... Prazer... — Conseguiu completar e a empurrar levemente, a afastando do seu pescoço. Mesmo na meia luz, a dama Westville pode a ver irredutível. Mal sabia ela que aquilo aumentava o seu tesão.
Amelie timidamente puxou Delilah para si, pedindo com aqueles olhos felinos para que a deixasse conduzir. Sem poder negar nada que aqueles doces olhos pediam, Delilah permitiu que Amelie a explorasse com as suas mãos curiosas até que ambas estivessem entregues uma à outra. Amelie ofegou ao ver sua amada nua, perfeitamente desenhada entre a escuridão. Já tinha presenciado a nudez da outra, mas aquilo... Aquilo era mágico.
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Os pássaros matutinos e o seu cantar alegre foram o segundo motivo para o despertar de Delilah entre os lençóis bagunçados. O primeiro motivo, a sua frente, rabiscava em seu caderno de maneira concentrada, ora encarando-a, ora voltando a desenhar. Em uma dessas encaradas, Amelie sorriu, notando o despertar da amada.
— Parece que alguém dormiu muito bem.
— Depois de ter sido amada pela minha nobrezinha mimada? Posso dizer que ascendi aos céus.
— Modéstia a parte, tudo o que faço é de muito bom gosto.
Delilah se espreguiçou, sorrindo e ao se ajeitar melhor na cama, notou o pequeno caderno nas mãos da outra. Parecendo adivinhar a dúvida da amada, Amelie se antecipou.
— Queria testar se ainda tenho aptidão para desenhar. E me pareceu uma boa ideia eternizar a imagem que descobri ser a minha favorita.
— Mas é claro que tem! É perfeita em tudo que faz, Amelie. E tudo mesmo. — Delilah sorriu de modo safado ao dar ênfase no "tudo".
— Eu... sempre gostei de desenhar. Me encontrava nas imagens quando me sentia solitária e agora... Acho que desejo experimentar mais do mundo. Colocar mais imagens no meu caderno.
— E eu vou estar sempre aqui para te apoiar. — Delilah fechou os olhos quando Amelie se aproximou e selou os lábios nos seus. Em seguida, ambas se afastaram ao escutar batidas na porta. Era Rosa.
— Será que ela deve me ver aqui, em seu quarto? — Amelie rolou os olhos de uma maneira fofa, levemente envergonhada. Delilah queria a beijar novamente, mas Rosa ainda esperava do outro lado da porta.
— E porquê não? — Perguntou Delilah de maneira divertida após vestir-se. Caminhando até a porta, encontrou uma Rosa sorridente e acenando gentilmente para Amelie, talvez percebendo o seu acanhamento.
— Tenho ciência de que as senhoritas acabaram de acordar, mas Lady Lefrance pediu para avisá-la que Lorde Ruffen a espera na sala de visitas. Parece-me importante.
10 minutos depois, Delilah e Amelie estavam devidamente arrumadas e sem nenhuma sombra de que haviam passado a noite juntas. Ainda não desejavam que tal informação ultrapassasse as cercas daquela dependência, temendo hostilidade para ambas e Lefrance que tão gentilmente havia cedido a estadia.
— Lorde Ruffen. — Delilah o cumprimentou de maneira formal. — A que devo a honra da visita, neste horário?
— Peço perdão se a incomodei. — Ruffen respondeu, levantando-se para cumprimentá-la. — No entanto, a boa nova que trago não esperaria por horários mais oportunos.
— Oh, se é tão boa notícia, devo sentar-me para recebê-la melhor.
— Indico-lhe que faça isso. — Ruffen sorriu e em seguida desviou o olhar para Amelie, que permanecia em pé. — No entanto, não seria melhor conversarmos a sós?
— Não possuo segredos com Amelie. — Delilah respondeu, mantendo o sorriso, para a surpresa de Lorde Ruffen que observava a situação com uma expressão curiosa.
— Mas decerto Lorde Ruffen gostaria de um chá, não é? Devo checar se também há biscoitos... Não me demoro.
Antes que Delilah pudesse se opor, Amelie deixou a sala com rapidez, deixando-os à sós. Lorde Ruffen acompanhou-a com o olhar até que esta deixasse o recinto, para em seguida voltar a encarar a dama Westville.
— Devo dizer que perdi alguns capítulos dessa história. Acaso as duas damas não odiavam-se?
— Amelie e eu nunca odiamos-nos. Apenas... tínhamos visões diferentes sobre certos assuntos. Divergíamos bastante, mas isso é passado.
— Devo admitir que é, pelo jeito que se olham... — Lorde Ruffen pigarreou, recompondo-se. — Mas não é para fazer suposições de sua relação com Lady D'Montfort que vim ter com a senhorita.
— Decerto. — Delilah sorriu, indicando que prosseguisse.
— Trago-lhe um convite.
"Há algumas semanas venho recebendo convites de inúmeros comerciantes para que o New Moon Westville ultrapasse as fronteiras desse Reino e que tal mágica chegue a outras senhoras curiosas pelos benefícios dos tais "potinhos mágicos"... Lady Westville, devo-lhe dizer que o fez ao implantar o sistema de mútua parceria entre as mulheres que aceitaram embarcar nessa produção e o modo como os produtos chegam às mãos das consumidoras, ascendeu as esperanças de mulheres que sonham em adentrar neste espaço de trabalho outrora dominado apenas por homens. Tal produto não apenas cuida das mulheres por fora, mas por dentro, em suas ideias e convicções."
— Então, o senhor está me propondo...?
— Que aceite o convite que lhe faço para espalhar o seu nome a bordo do navio da minha Companhia.
— Viajar? Conhecer o mundo? Levar o New Moon para outros Reinos?
Neste momento, enquanto Delilah tentava processar a chuva de informações proferidas por Lorde Ruffen, Amelie paralisou ao lado da dama, criando um audível barulho ao deixar a bandeja de prata cair. Piscou diversas vezes até se dar conta do que havia feito.
— Ah, Deuses... — Amelie ralhou enquanto se abaixava para recolher os cacos da antiga xícara, emitindo um palavrão ao cortar o dedo indicador. — Droga, droga...
— Amelie, tá tudo bem? — Delilah levantou-se com rapidez, abaixando-se ao lado da amada. — Ei, me deixa ver esse corte.
Enquanto Delilah tentava alcançar a garota arredia, Lorde Ruffen pigarreou ao se dar conta da cena íntima que estava presenciando. Via no olhar suplicante de Delilah o quanto ela queria que Amelie se abrisse com ela, enquanto na outra dama, via o terror das palavras que escutou. Tossiu, levantando-se.
— Parece que as senhoritas têm muito o que conversar. E Lady Delilah, fico a espera de sua resposta.
— Eu aceito. — Delilah respondeu sem pestanejar. — Aceito viajar em seu navio e levar o New Moon para outros Reinos.
— Aceita!? — Amelie arregalou os olhos, encarando-a sem acreditar.
— Como pôde aceitar ir para longe de mim? — Perguntou Amelie, recusando-se a aceitar ajuda. Esperou que Delilah levasse o visitante até a porta, que obviamente estava deveras sorridente com a aceitação da outra. Não queria parecer tão afetada, mas a mínima ideia da partida de Delilah a fazia enlouquecer. — Achei que tínhamos jurado amor uma à outra! O que foi tudo isso, então?
— Dá para parar de tomar conclusões precipitadas uma vez na vida!? — Delilah rebateu, obrigando-a parar as atividades automáticas que fazia e olhar para ela. — Não irei para longe de ti. Irei contigo.
Amelie piscou várias vezes até se dar conta das palavras de Delilah. Ela não estava a convidando para deixar Terithia com ela, estava?
— Ir embora...? Subir em um navio e deixar que o mar decida o nosso destino?
— Não era isso que queríamos? Disse essa manhã que desejava experimentar mais do mundo... Essa é a oportunidade perfeita para preencher o seu caderno com imagens novas. É a oportunidade que precisa para se conhecer, Amelie.
Amelie ponderou, olhando para baixo. Nunca imaginou um dia deixar o que sempre conheceu. Sabia que não viveriam sob a proteção de Lefrance para sempre, e que algum dia os falatórios do Reino iriam as alcançar. Não queria viver com Delilah se tivesse que esconder o que realmente eram. Não queria mais se punir por amar.
— E além disso, nada é para sempre. Poderemos voltar assim que bater a saudade. Se essa for a sua vontade, eu a seguirei.
Amelie arregalou os olhos, vendo mais uma vez aquela luz solar que irradiava de sua amada. Delilah a iluminava por inteiro, preenchia os seus dias e noites, a sua vida e o seu coração. Às vezes, quando a via tão cheia de atributos, se perguntava se realmente merecia estar ao lado dela.
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— Mas ela disse que não irá?
— Não disse. Mas também não disse o contrário. — Delilah suspirou enquanto Rosa aplicava um pouco de cor em suas bochechas. Um dia havia se passado desde a visita de Lorde Ruffen, e Amelie e ela, digamos, estavam consideravelmente afastadas. — Viajar e conhecer o mundo é um sonho para mim, mas estar ao lado da mulher que amo é algo que quero transformar em realidade. Não posso deixar o meu coração aqui.
— Quem escuta essas palavras, nem imagina que é a mesma pessoa que odiava a ideia de se apaixonar. — Rosa brincou, abrindo um sorriso de canto. — Dê tempo ao tempo. Quem sabe Amelie só esteja processando a ideia?
— Ah, pare. — Retrucou Delilah fingindo chateação. — Eu não odiava a ideia de me apaixonar. Só não havia sido flechada ainda. — A dama piscou enquanto Rosa prendia os seus cabelos com cuidado. Não deixou de reparar pelo espelho que a amiga estava mais viçosa, com um brilho radiante no olhar. — Mas agora chega de falar de mim. Quero saber o que esses olhinhos estão escondendo.
Rosa enrubesceu ao ter a seta da conversa virada para si. Delilah como sempre era deveras observadora, é claro que a boa nova que trazia em seu peito não ficaria por muito tempo escondida.
— Bom, em falar em sonhos... — Rosa abriu um sorriso esperançoso. — Sinto que estou prestes a realizar o meu.
"Depois que mamãe voltou a trabalhar, e tal Graça se deve à bondade da senhorita em convidá-la para o seu projeto, a situação da família melhorou e isto me permitiu trilhar o caminho que me levaria ao destino que sempre quis. Ainda não é muita coisa, mas a partir do próximo mês, começarei a cantar em um bar. O dono do estabelecimento é um conhecido antigo de papai, um bom homem que ascendeu assim como a senhorita. Se for a vontade da Deusa, este será o primeiro passo para voos mais altos."
— Rosa, isso é incrível! — Delilah vibrou, virando-se para abraçá-la de modo desajeitado. — Sempre lhe disse que sua voz era linda demais para ficar apenas dentro dessas paredes. Ah, minha amiga, estou tão feliz por ti...
Rosa a abraçou de volta, sentindo no calor da dama a gratidão que sentia por tê-la conhecido. Depois de conhecê-la se tornou mais confiante, mais viva. Esse era o efeito que Delilah causava nas pessoas ao seu redor, como um sol que ilumina todo o universo.
— Lady Delilah, terá que me prometer que virá me assistir nos intervalos das suas viagens. Nem pense que será tão fácil assim sair da minha vida.
— Eu jamais ia querer isso. — Delilah a apertou antes de se afastar. Pegando em suas mãos, a dama conteve as lágrimas de felicidade que queria soltar pela querida amiga. — Irei assisti-la no bar e nas óperas que protagonizará. Na primeira fila para te aplaudir até que as palmas das minhas mãos doam.
Rosa assentiu, contendo as lágrimas no rosto choroso. Ao olhar para Delilah, lembrou-se de toda a trajetória delas, o começo estranho, já que nenhuma das senhoritas enxergava-a como uma pessoa com vontades e desejos, passando pela aproximação, as noites à luz de velas em que livros eram compartilhados ou as aulas clandestinas junto com as outras criadas. Delilah era mesmo uma dama admirável.
— E afinal, ainda não me disse o motivo de estar me embelezando desse jeito. Nem mesmo permitiu que eu mesma me arrumasse. — Perguntou Delilah diante do suspense de Rosa, que havia a intimado a sentar-se na cadeira e apenas deixar todo o trabalho com ela. — Lady Lefrance não está planejando me apresentar a nenhum cavalheiro, não é?
— Minha boca é um túmulo. — Rosa respondeu, aumentando a curiosidade de Delilah, que a viu se afastar e em seguida surpreendê-la com uma caixa listrada, cujo laço despontava para os lados em cor azul. — Apenas posso lhe dizer que Lady Lefrance pediu que vestisse isso e em seguida me acompanhasse, mas sem fazer mais perguntas.
— Quanto mistério... — Delilah assobiou, dando de ombros. Levantou-se trocando o vestido de seda azul pelo traje escolhido pela dona do Instituto, e ao vesti-lo, se surpreendeu com o modelo. Aquela era a primeira vez em toda a sua existência que um par de calças entrava em contato com as suas pernas, e mais estranho ainda era combinar essas calças com um fraque branco. Delilah encarou-se no espelho olhando para os botões dourados que compunham a parte de cima da indumentária, as correntes que prendiam os botões e principalmente, o penteado que Rosa havia feito. A amiga havia trançado o seu cabelo e o enfeitado com ervinhas e botões de flor, dando-lhe um aspecto adorável. E ela realmente estava usando calças.
Delilah desceu as escadas e a seguiu, curiosa para saber o que lhe esperava. De alguma maneira desconhecida, seu coração batia rápido em ansiedade pelo inesperado, que chegado aos seus olhos, justificou as batidas rápidas do seu coração.
Lá, no meio do jardim florido, agraciada pela luz solar da manhã, estava ela.
Vestida de branco, vestida para casar. Com ela.
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