Capítulo 19


Amelie folheava as páginas do livro que, tendo passado uma semana desde que voltou para casa, era a sua companhia mais apreciável. A história de Cristhine e Isolda eram o seu alento após dias inteiros em que ficava a disposição de sua mãe ou em companhia de suas amigas mais próximas, Jolie e Clorance, que sempre a visitavam para contar-lhes novidades as quais ela estava dispersa o bastante para assimilar. Ou ainda, passava seus dias em companhia de Arnold, visita constante que sempre exigia a sua versão mais encantadora. Quando estava em seu quarto, alheia às expectativas que mantinham sobre ela, enfim poderia descansar.

Descansar. Será que era mesmo capaz de deixar a mente silenciosa quando as letras daquele livro saltavam aos olhos, deixando as páginas parcialmente amareladas para se tornarem reais? De repente, ela não via mais Cristhine e Isolda, as duas amantes impossíveis.

Nas páginas daquele livro, estavam Amelie... e ela.

A jovem de cabelos revoltos contra o vento aparecia em suas lembranças sempre que fechava os olhos, e agora, tomava seus pensamentos sempre que lia. Em cada letra daquele amor impossível, revisitava os momentos que passou ao lado daquela que sempre enxergou como rival. Os beijos que trocaram pinicavam os seus lábios com o doce e triste sabor da lembrança. Seus dedos ágeis a tocando, conhecendo seus pontos mais secretos e a fazendo perceber que o seu corpo era um templo a ser consagrado, e Delilah o consagrou como ninguém mais faria. Delilah... A jovem revolucionária que não só mudou os seus pensamentos, mas também o seu coração.

Amelie alisou as páginas parcialmente manchadas com lágrimas que ela não percebeu derramar. Havia chegado na parte em que as amantes se despediam, jurando um amor que não era possível eternizar. Cristhine partiria, para a tristeza de Isolda. Mas uma palavra, uma chance, a faria ficar. Isolda apenas precisava dizer que sim.

Mas Isolda não conseguiu. Não podia. Estava prometida a um importante Lorde da região, e em vias de casar-se, não poderia ser vista como uma desonra para sua família. No entanto, Isolda sabia que não seria feliz. A sua felicidade estava partindo naquele barco, sem olhar para trás. Sem lhe dizer mais um adeus.

A expressão no rosto de Delilah lhe apareceu no momento em que mais lágrimas escorriam pelo dorso de sua mão. Não entendia o motivo de suas lágrimas, se já havia entendido que um romance entre duas damas não era possível, a explicar por aquele livro que estava nos fundos da biblioteca pública e que discretamente, ela o surrupiou. Se já havia aceitado o seu destino como esposa de um Duque, então por que lágrimas teimosas como as que escorriam em seus lábios insistiam em aparecer?

Fechou o livro, fungando. Sentia-se tola por ter se apossado daquele livro. Decerto, não estava em dia com a sua sanidade mental quando realmente considerava um romance entre mulheres, algo que deveria estar estritamente proibido em sua mente. Então por quê... A desejava tanto?

Assim como o livro, seus olhos se fecharam em meio ao luar salpicado de estrelas e indecisões. Quando acordasse, seria outra. Definitivamente, seria a Amelie que todos procuravam, sem importar-se com o que havia dentro daquela casca que ela tanto procurava manter.

Ao raiar do sol, protagonizado pelo canto dos passarinhos, Amelie despertou como de costume e asseou-se, esperando por recomendações que não vieram. Decerto sua mãe não havia preparado nenhuma tarefa, era o que a jovem de olheiras profundas pensava. No entanto, ao adentrar novamente em seu quarto, a viu de pé, portando aquele proibido livro em mãos. Se o seu pequeno mundo estava trêmulo, naquele momento havia acabado de desabar.

"Amantes Impossíveis", Amelie? — Rosnou Aida, proferindo o título do livro com profundo nojo. — Ennerie entregou-me o exemplar quando dobrava seus lençóis de cama. Não me diga que agora devo me preocupar com uma filha perdida.

Amelie engoliu em seco, desviando do olhar severo da mãe para a criada. Ennerie era uma jovem criada recém contratada, chegando dois dias antes dela. Não era possível desfazer o erro com as criadas mais antigas, que a viam como uma jovem mimada e sem salvação, mas poderia fazer diferente com Ennerie. Ainda não entendia o motivo daquelas estranhas vontades, mas sabia em qual endereço colocar a culpa daqueles sentimentos novos que a agarravam sem intenção de soltar.

Sorriu e cumprimentou Ennerie sempre que podia e por vezes, a dispensava dos serviços domésticos que diziam respeito aos seus cuidados. Pensou estar criando uma fiel amizade como Delilah e Rosa, mas ao encarar a criada, e vê-la desviar o olhar, esperando por novas instruções de Aida, percebeu que uma amizade como aquela nunca chegaria até si. Percebeu à duras penas que em sua vida, não haviam pessoas que pudessem ficar. Que diferente de Delilah, ela não era cativante, e talvez nunca pudesse ser.

— Não escutou a sua mãe, Amelie Louise D'Montfort!? — Aida levantou a voz, se aproximando antes que Amelie percebesse. — O que este livro estava fazendo em sua cabeceira? Um romance entre damas? Pela Deusa, que vulgaridade tamanha!

— Eu... — Amelie percebeu outra coisa. Talvez a culpa não fosse de Ennerie, nem dela própria. Talvez a culpa não fosse de ninguém. Naquela casa, desde que se entendeu como uma parte da grandiosa família D'Montfort, passou a fazer parte do quadro de indivíduos que faziam parte de uma pirâmide social. No topo dela, Edgard D'Montfort. Abaixo, Aida.

Olhou para a mãe mais profundamente, percebendo que Aida era tão vítima quanto ela. O que será que aqueles olhos vazios escondiam? O que será que Aida teve que sufocar para juntar-se ao seu pai? Quem era Aida antes de ser corrompida pelo tempo? Quem era Aida antes de Edgard?

Queria mesmo que Aida se libertasse daquele casamento ruim assim como ansiava para um dia se ver livre das correntes que a prendia aos dois. Talvez o casamento com Arnold fosse bom. Talvez lhe desse a estabilidade que precisava. Ou talvez só a jogasse em um buraco maior.

Seus pensamentos foram interrompidos quando um doloroso tapa a atingiu. Seus cabelos voaram com o impacto, resvalando no ar antes de voltarem à posição inicial.

— Sabe o quanto seu pai e eu temos trabalhado para dar-lhe uma posição decente na sociedade? Primeiro, deixou ser vencida por aquele projeto de nobre, agora... Me diga, foi aquela jovem incorrigível que lhe deu isso!?

— Se Delilah é uma jovem incorrigível, então eu gostaria de ser como ela. — Amelie rebateu de punhos fechados, sentindo o ardor na bochecha direita. — Assim quem sabe... Eu poderia ter coragem suficiente para tomar as rédeas da minha vida.

Aida estava chocada. Amelie respondeu-lhe e trazia na expressão um rancor nunca antes visto na filha que sempre acatou suas decisões. Sem poder ir contra suas palavras, a severa mãe apelou para a tática usada por todos aqueles que não possuem razão. Mais uma vez, Amelie sentiu a bochecha queimar.

— Não me faça descartá-la como uma decepção, Amelie. Sua vida será muito pior se seu pai e eu decidimos que nossa filha viverá melhor com as Irmãs. E juro-lhe, que se Ennerie ou qualquer outra encontrar mais uma dessas barbaridades em seus pertences, é o que farei. — Aida passou por Amelie com extrema arrogância na forma de andar. Mas Amelie sabia que sua mãe era tão subordinada quanto ela. Se lhe bater a fizesse se sentir um pouco dona de suas ações, então que fosse feito. — Lembre-se de estar devidamente apresentável esta noite. Iremos ao concerto com o Duque, e nada pode dar errado. Entendido?

— Entendido, mamãe. — Amelie respondeu, entredentes, vendo a mãe levar a sua única companhia. Talvez Amelie realmente tenha sido feita para não possuir nada.


🜲🜲🜲


À noite, suas bochechas haviam sido pintadas em tom de rosa claro, dando-lhe cor através das sardas que foram devidamente cobertas com pó. Amelie trajava um vestido de seda da mesma cor que suas bochechas coradas, caindo-lhe pelos pés. Pequenos brilhos de cor magenta enfeitavam a barra, e nos cabelos, uma coroa de flores havia sido colocada após os criados ficarem sabendo que Arnold apreciava aromas florais. Amelie retesou-se, sabendo que, caso a informação se revelasse verdadeira, Arnold ficaria cada vez mais próximo dela.

Amelie sorriu ao pensar que mulheres eram vestidas e enfeitadas como leitões trocados entre donos de fazendas. Não haviam perguntas sobre as preferências dos leitões assim como não haviam perguntas sobre as preferências delas, tampouco se estavam de acordo com tal troca. Sorriu ainda mais quando pensou que havia passado tempo o bastante com a dona daqueles pensamentos para tornar-se uma revolucionária como ela.

E ao olhar para a dama de pensamentos tão revoltosos, a viu com Killian, parado ao seu lado. O olhar de Delilah estava fixo na ópera que tocava, e o do príncipe, nela. Enquanto analisava a cena, do outro lado do salão, Arnold aproximou-se, pondo a mão sugestivamente em seu ombro. E automática, Amelie sorriu e internalizou que eram assim que os caminhos deveriam seguir, apesar de sua crescente vontade de interligar os seus caminhos com os dela.

Delilah acenou sutilmente quando o seu olhar deparou-se com as íris de Killian voltadas em sua direção. O príncipe estava no andar mais alto do salão, ao lado de Jaccan, o grande homenageado da noite. E daquela forma, com o príncipe sentado em um lugar de grande destaque e ela, destinada ao espaço direito do salão, Delilah pensou que a noite prosseguiria sem que os dois se esbarrassem de fato. No entanto, antes mesmo do primeiro acorde rasgar o vento tensionado, os Westville curvaram-se em respeito ao herdeiro real, que havia descido de seu luxuoso lugar para juntar-se à ela.

É claro que a mudança de posição, — mais ainda uma tão pouco usual — um príncipe que se rebaixava por uma ex-plebeia, causou burburinhos na plateia ávida por informações. Delilah sorriu e curvou-se conforme a sua família, parcialmente retesada. Não era de seu atual gosto ser alvo de comentários acerca de um potencial matrimônio que já era grandemente inflado pelos panfletos de Lady Bem-Aventurada, mas não poderia ser indiscreta com o príncipe.

Reconhecia nele um grande amigo, apesar das claras investidas, Killian era um bom homem. E certamente merecia alguém que o amasse integralmente. Delilah não cumpria essa função.

E nem poderia cumprir, quando o motivo de seu palpitar estava a metros de distância. Junto à Arnold, é claro, como era da vontade dos pais da dama, e lhe doía admitir, mas depois da conversa que tiveram, Delilah passou a pensar que tal união também era da vontade dela. Amelie poderia vir consigo, se quisesse. Poderia confiar em sua palavra e juntas desbravarem o desconhecido. Mas negando-a, a jovem dona de seus pensamentos decidiu ficar. Sendo noiva de outro.

— Alteza, não deveria estar ao lado do Rei? Afinal, esta ópera é em comemoração ao aniversário dele.

Enquanto Delilah cochichava perto o bastante da orelha do príncipe, Amelie os fitava ao som de Verão, de Vivaldi. A atmosfera tensa não estava apenas nos arcos dos violinos, mas também em seu coração.

— Meu pai compreende que o desejo de juntar-me à senhorita é mais forte. Veja, não é lindo a forma como o som é propagado destes instrumentos?

Era lindo sim, e Delilah devia admitir. A forma como os músicos pareciam concentrados e mesmo sem se olharem, a sincronia de seu som era admirável. Por vezes, naquele ribombar idêntico à uma tempestade, Delilah sentiu o seu coração fraquejar. Era nítido o desvio do seu olhar. Amelie também a encarava.

Verão. Quente, pulsante, avassalador. Ares que se seguravam dentro do peito até que a necessidade de ar surgisse dentro da boca ardente. A jovem de cabelos ruivos mal podia manter-se de pé, hipnotizada com os movimentos dos dedos dos músicos, que ora cortavam o ar com relâmpagos ensaiados, ora cortavam o ar com trovões ensurdecedores.

Delilah engoliu em seco, lembrando-se da promessa que fez a si mesma; não confundiria ainda mais as coisas. Amelie não a queria, a própria dama explicitava a sua vontade, então... Por quê? Por quê o seu corpo e o seu coração, aquele estúpido órgão, ainda a queria e desejava? Por quê, segundos depois de desviar o olhar e obrigar o seu cérebro a não encarar, seus olhos sedentos refaziam o caminho dos cachos ruivos ondulados que a faziam arquejar?

Amelie foi a primeira a esconder-se, balbuciando rápidas desculpas para se isolar. Estava estranha, palpitante e sôfrega. Em certo momento da apresentação Arnold aproximou-se e com dedos perversos, a dedilhou na cintura, trazendo à tona o horror de ser tocada por ele. Horror que juntou-se ao desejo quando encarou sua proibição segundos atrás e a desejar como nunca desejaria o Duque. Se era ao lado dele que queria estar, então por quê sentia-se tão enojada toda vez que era tocada por ele?

— Não era para ser assim... Não era... — Balbuciou Amelie, lavando o seu rosto. Aquela sensação de ar reprimido ainda machucava e retorcia o seu peito, e sem forças, buscou ar para respirar.

Foi quando a viu e antes que pudesse dizer algo, jogou-se em seus braços, fazendo dela a sua morfina. Delilah a segurou, tendo a seguido no ímpeto que a levava a ter vontade de acalmar o seu coração. Antes que pudesse se dar conta, seus pés a guiaram até ela.

— Por quê... Por quê me seguiu...? — Amelie balbuciou entre soluços.

— Apenas segui o meu coração. — Delilah riu amarga, abraçando-a e sentindo-a proibidamente. — Como pode ver, ele ainda é um grande tolo.

Amelie nada disse, agarrada à ela e sem intenção de soltar. Em todas as vezes que sentiu-se nervosa, Delilah estava lá. E Deuses, como queria que ela ficasse.

— Não julga-me por minha histeria?

— Histeria? — Delilah afastou-se apenas para a olhar nos olhos. Que eram azuis como o céu da manhã, a dama observou mais uma vez. Sentiu falta daquelas pepitas cristalinas. — Eu jamais vou te chamar de histérica, Amelie. Já li sobre os seus sintomas e o que sente é totalmente válido. Apenas precisa ser acalmada, dessa forma. — Delilah ergueu o indicador e alisou o nariz de Amelie. — E assim. — Seguiu para a bochecha, criando círculos imaginários.

E aninhada nos braços da antiga rival, Amelie realmente relaxou. Mas não por muito tempo. Ao lembrar-se de Aida e de suas palavras cruéis, a dama relutante afastou-se, segurando a barra do vestido.

— Sempre tive esses ataques. Mamãe julgava-me fraca e desde pequena, aprendi a lidar com meus problemas sozinha. Mas como pode ver, nem sempre funciona. — Amelie riu consigo mesma, contendo uma nova leva de lágrimas. — Talvez ela esteja certa e eu seja mesmo uma jovem fraca que não serve para sustentar as expectativas deles.

Delilah queria a abraçar e sem mais poder ir contra o seu corpo desejoso, empurrou-a contra a parede e a envolveu. Amelie, surpresa, aceitou aos poucos o aconchego, desabando em lágrimas. Estava cansada.

— Por quê elas não podem ficar juntas? — Amelie perguntou entre soluços, apertando as mangas do vestido de seda azul da outra. — Isolda e Cristhine... Por quê?

Delilah arregalou os olhos ao escutar o nome das personagens de "Amantes Impossíveis" no mesmo momento em que a melodia de Inverno chegava ao ambiente que estavam. Uma melodia triste e gélida como o coração de ambas as personagens que se amavam em segredo.

— O universo em que vivemos não é muito receptivo com mulheres que amam outras mulheres, Amelie. Somos julgadas, rechaçadas, apenas por desejar amar quem queremos amar. Mas, se eu puder ser um pouco romântica e citar os romances de cavalheiros apaixonados, também acreditarei que o felizes para sempre de Isolda e Cristhine aconteceu longe de nossos olhos. Meses ou anos depois, elas encontraram um espaço no mundo onde puderam se amar.

Gentilmente, Delilah limpou as lágrimas do rosto salpicado de Amelie, que preocupava-se com o possível aparecimento de suas sardas. Porém, quando Delilah as beijou a as comparou com um céu estrelado, Amelie deixou todas as suas resistências e dúvidas caírem aos seus pés. E colando os lábios urgentes, cessou a distância que ainda insistia em as separar.

Delilah recebeu com surpresa o beijo que achou não chegar mais aos seus lábios. A boca macia de Amelie era como um afrodisíaco perigoso, mas que uma vez em contato com o sangue, não podia mais escapar. Delilah a chocou contra a parede cuja extremidade possuía uma janela espelhada, refletindo todo o brilho do luar nos corpos colados. Segurou-a com delicadeza pela nuca, enquanto a outra mão acariciava as bochechas úmidas. Entre o beijo, Delilah sorriu, perdida em prazeres que nem a ciência ou o sagrado poderiam explicar.

Amelie sabia que ao colar seus lábios nos lábios de Delilah estava cometendo mais um daqueles erros difíceis de escapar. Que ao beijá-la novamente, jogava no lixo a pouca certeza que tinha de ser possível continuar a viver longe de Delilah Westville. Cada vez que provava daquele gosto proibido, cada vez que sentia aquele aroma melado dos cabelos cacheados, que agora segurava e puxava sem pudor nenhum, enroscando-se nas pernas da outra, queria e desejava por mais. E mais uma vez, seu cérebro castigado a lembrava daquela proibição.

— Nós não...

— Shhh... Apenas fica calada e me beija. — Delilah voltou a enroscar a língua na dela, que prontamente aceitou, puxando-a para mais perto mesmo que já estivessem praticamente unidas uma à outra. Sabia que quando aquela mágica acabasse passariam a ser estranhas, então que fosse o seu propósito aproveitar.

Permaneceram unidas e suplicantes até passos serem ouvidos do lado de fora. Amelie foi a primeira a se afastar, ofegante, molhada e desejosa por mais. Seu corpo possuía memórias dolorosas que transformavam-se em pontadas em seu ventre, misturado a onda de temor que veio com as primeiras batidas na porta. Rapidamente ajustou o vestido ao corpo e ajeitou-se o máximo que conseguiu e encarou-a com vontade reprimida, aliado a um desejo de mergulhar no proibido quando se afastou. E mais para si mesma, para lembrar-se que Delilah Westville era um artefato proibido, sentenciou:

— O que acabou de acontecer...

— Foi um erro e não deve se repetir. — Delilah completou, suspirando. Que o destino continuasse as mantendo rivais. Porque se Amelie Louise D'Montfort continuasse aparecendo absurdamente suplicante em sua frente, ela não sabia se seria capaz de lembrar-se dessas palavras. — Eu sei. Mas sempre que quiser repetir esse erro... — Delilah aproximou-se atrevidamente, passando o indicador pelos lábios úmidos de Amelie. Como ela queria beija-la e provar do doce do seu beijo novamente. — Eu vou estar aqui para errar.

E sob o fim de Inverno e pelas costas de Arnold, que encarava a angústia na expressão de Amelie e o olhar que ambas trocaram, Delilah retirou-se, apertando os punhos para conter a imensa vontade de gritar.

— Não aconteceu nada. — Amelie tranquilizou-o, sabendo que a ideia de procurá-la partiu de Aida, que provavelmente apenas se preocupava com a quantidade de tempo que a filha passava ao lado do Duque. Para garantir aquele matrimônio, deveria estar presente até mesmo quando não queria estar.

Mas Amelie sabia que dentro de si algo havia acontecido, mais uma vez.


🜲🜲🜲


Delilah agradeceu e aceitou a companhia da criada que sua mãe havia designado para aquele passeio, sabendo que parte da presença da mulher além de cuidar que nada de impróprio acontecesse a uma casta jovem como ela, devia-se ao fato de sua mãe estar interessada nas notícias que lhe diziam respeito. E o fato de ter sido convidada pelo príncipe um dia após a ópera para um passeio na praça central certamente lhe traria informações interessantíssimas. Por isso mesmo com todos os protestos da filha, a composição das roupas e dos acessórios que Delilah usaria partiram de panfletos de mães entendidas no que tange os melhores métodos para segurar um rapaz.

— Mas mamãe, é apenas um passeio. — Delilah insistiu. — Não precisa me vestir como se eu estivesse indo para o altar.

— Ora, querida! Se o príncipe lhe ver nesses trajes, realmente acabará no altar! — E Austina prosseguiu ao lado das criadas que enrolavam o cabelo de Delilah. — E nesse panfleto "Clube das Boas-Mães de Terithia", todas as senhoras casaram maravilhosamente as filhas. Há até uma mãe de uma Duquesa, veja só!

Delilah suspirou, lembrando-se da conversa com a mãe. No fim, não teve conversa: sua mãe realmente a moldou como era de sua vontade. Trajava um vestido branco, de dupla camada. Seus cabelos haviam sido presos em um coque alto, e enfeitado com uma singela tiara cristalina. Estava bonita, mas não em seu habitual.

O príncipe, ao encontrá-la, beijou a sua mão enluvada, sorrindo como os raios de sol acima de sua cabeça. Delilah sorriu de volta, curvando-se.

— Achei que estivesse errado e que na verdade, estivéssemos a caminho do altar. — Killian brincou ao vê-la naqueles trajes.

— Ah, Alteza sabe como a Dona Austina é. — Delilah fingiu chateação, empurrando-o de lado. — Sabe também que não pretendo visitar esse lugar tão cedo.

— Eu sei, e prometo não incitar-lhe a se tornar a minha esposa, pelo menos não por enquanto. Apenas quero aproveitar o bom dia ao lado da senhorita.

Delilah assentiu, oferecendo o braço ao príncipe que observando a inversão de posições, riu e aceitou.

— Até porque eu pisaria em seu pé antes mesmo que tentasse.

— Eu não duvido. Até hoje tenho minhas dúvidas se aquele pisão foi intencional, no baile em que revelei minha identidade.

— Ei, eu não sou má dessa forma, tá? — Killian a encarou, a fazendo inflar os lábios. — Ok, não entraremos no mérito que Alteza mereceu.

— Mas eu contei-lhe sobre o motivo, poxa! Não foi como se não tivesse lhe contado por desejo próprio.

— É, sei que foi por causa do papel que ocupa e todas essas problemáticas... — Delilah suspirou, encarando o céu com poucas nuvens. Todos os nobres do mais "alto" até o mais "baixo" possuíam uma carruagem de expectativas para carregar, sozinhos. E mais uma vez, acima de sua promessa, seus pensamentos divagaram até as ondas dos fios ruivos da nobrezinha mimada. — Ser príncipe é complicado.

— Se é. — Killian suspirou, parecendo igualmente perdido em pensamentos. — As vezes acho que Arnold ocuparia melhor o meu lugar.

— Fala daquele nobre egocêntrico e extremamente presunçoso? — Delilah, incapaz de conter-se, percebeu tarde demais a besteira que havia feito. Arnold possuía o título de Duque e era primo de Killian, filho do irmão gêmeo do Rei. Família era família, independente das circunstâncias. — Quer dizer, sei que ele é seu primo e...

— Eu sei que Arnold não tem uma boa reputação. — Killian riu, a tranquilizando. — No entanto, não hei de negar que ele é um bom estrategista.

— Bem, ele pode até ser, mas... Não tem os mesmos valores que Alteza e nem é divertido de conversar.

— Então sou "divertido de conversar?" — Killian a encarou de soslaio.

— Nunca disse que não era. — Delilah sibilou, empurrando-o de leve. Com o canto do olho, observou a criada que andava poucos metros atrás dele, parecendo fingidamente desinteressada. No entanto, ela sabia que a mulher estava ali para contar tudo o que presenciava, sendo testemunha do "amor" entre o príncipe herdeiro e a nova rica sortuda.

— Bom, então se eu sou tão divertido assim, certamente a senhorita não recusará um pedido meu.

— Depende. Se for casamento...

— Não é casamento, ainda. — Killian deu ênfase no "ainda", retesando-a e logo em seguida reparando em seus ombros rígidos, riu e piscou um dos olhos. — Quero mostrar-lhe algo, mas precisamos partir.

Delilah olhou para a criada e em seguida para ele, que entendendo o impedimento, pediu um segundo e caminhou até a mulher que imediatamente paralisou, perdendo o ar. Poucos segundos em que ela apenas assentiu, sorrindo boba.

— O que Alteza disse para ela? — Delilah perguntou com curiosidade quando se afastaram.

— Disse que precisávamos de um instante a sós, mas que ela ficasse despreocupada por que não é de minha intenção desonrá-la. E gentilmente, ela concordou em esperá-la aqui.

Delilah ficou momentaneamente chocada com a facilidade em que Killian conseguiu despistar a mulher. Ser do sexo masculino era deveras fácil.

— Bem, eu não confiaria na palavra de um homem.

— Mas ela confiou na palavra de um príncipe. — Killian sorriu, um pouco convencido. — Desonras são gravíssimas na realeza. Se algo acontecer a senhorita, terei que assumir a responsabilidade.

É claro. Se ela fosse "desonrada" Killian deveria casar-se com ela, e não seria tão ruim assim considerando as aspirações de sua mãe. Talvez a criada tenha pensado da mesma forma.

— Hmmm... E se for ao contrário? Será que eu também terei que assumir a sua responsabilidade?

Delilah sorriu e piscou, correndo na frente. Killian abriu e fechou os lábios, procurando uma resposta que, ao fitá-la em meio às pétalas amarelas, perdeu-se no ar. Delilah era linda de várias maneiras, principalmente quando portava-se de maneira tão usual.

Minutos depois, chegaram a árvore onde Maxus descansava, e oferecendo-lhe à mão, Killian a guiou no manejo do cavalo. Saudosa, Delilah não conteve um gritinho ao poder novamente cavalgar.

— Se eu não tiver cuidado, Maxus passará a sentir saudades da senhorita.

— Bem, é só me chamar para montá-lo sempre que quiser. Vou adorar provar para ele que sou uma dona melhor que Alteza.

— Não duvido. Há diversas coisas em que a senhora é incomparável, Lady Westville.

Delilah sorriu, olhando-o de soslaio.

— Achei que tivesse dito que flertes estavam proibidos.

— Não é um flerte. É a verdade.

Delilah suspirou, incitando o cavalo a ir mais rápido e foi obrigada a prender a risada quando Killian colidiu com ela. Olhando-o por cima do ombro, mostrou a língua no mesmo momento em que raios de sol a iluminavam.

— Então era aqui que Alteza queria me trazer? — Delilah rodeou o lugar com os olhos, admirada. — É tão lindo!

— Era o lugar favorito da minha mãe. — Killian sorriu para si mesmo, levando a mão ao peito. — Sempre que venho aqui, me sinto como se estivesse ao lado dela. E bem, como acho-a parecida com ela, quis te mostrar esse lugar.

— Acha-me parecida com a sua mãe? — Delilah sorriu, aproximando o nariz de uma rosa. O cheiro floral a recebeu com gentileza. — Está exagerando, Alteza. Julga-me muito bem, mas não sou tudo isso.

— Mamãe era alegre e divertida como a senhorita. Também desejava mudar o Reino para que fosse saudável para todas as pessoas. Acredito que a senhorita seria a sua pessoa favorita.

Delilah também sentia que gostaria de ter conhecido a mãe de Killian, principalmente se a gentileza que ele possui tivesse sido herdado dela. Não conhecia Jaccan o suficiente para afirmar, mas o achava um tanto frio. Felizmente, o príncipe não havia trilhado o mesmo caminho.

— Eu gostaria de tê-la conhecido. Certamente, saberia muitas histórias constrangedoras ao seu respeito.

— Oh, certamente. — Killian riu com uma ponta de saudade. Possuía nos olhos vazios o nítido afastamento com o pai, e colocando-se no lugar dele, imaginava o quanto devia ser doloroso crescer sozinho. Olhando daquele ângulo, Amelie e Killian eram iguais, e talvez tenha sido a solidão em comum que a fez entender que precisava estar ao lado dele. — Às vezes, sinto vontade de encontrar-me com ela. Mas há muito tempo não sonho com suas visitas.

— Mesmo que ela não apareça, de onde quer que ela esteja, está zelando por ti. — Delilah aproximou-se pondo uma mão gentil em sua bochecha.

Killian arregalou os olhos, sentindo o toque inesperado. Ele sabia que Delilah era uma jovem de opiniões fortes e decididas e conquistá-la seria uma tarefa difícil. No entanto, ao estarem tão próximos... Parecia esquecer de qualquer coisa que não fosse a vontade de estar perto dela.

— Agora, é a senhorita que julga-me bem. Não tenho certeza. Pode ser que ela não me visite pois está decepcionada comigo. Talvez eu não esteja sendo um bom príncipe...

— Ela é sua mãe, esqueceu? — Delilah o empurrou de leve, brincando. — Ficaria do seu lado em qualquer situação. E já é a segunda vez que se coloca pra baixo assim. Quer me contar alguma coisa?

Killian arregalou os olhos mais uma vez com a precisa observação de Delilah, que conseguiu ler nas entrelinhas que ele não estava bem. Sorrindo e levemente corado, ele tinha cada vez mais certeza dos seus sentimentos pela dama.

— Não é nada com que a senhorita precise se preocupar.

— Assim chateia-me. Não somos amigos?

Killian assentiu, enquanto observava uma flor. O domo de vidro onde a sua mãe passava a maior parte do tempo, mesmo nos momentos finais, atualmente era o seu significado de lar. E Delilah estava nele.

— Percebi que não tenho grandes feitos como o meu pai. E que em um futuro próximo, posso ser um Rei de enfeite. As discussões entre grupos nas Assembleias, me dizem que enfrentarei tempos difíceis e não sei se estou preparado para governar.

Delilah ouviu e pensou. Apesar de viver em uma caixa de expectativas, nenhuma era tão pesada quanto às múltiplas caixas que Killian era destinado a carregar, por isso, por um pequeno tempo pensou no que responder. Mas, tratando-se de um amigo, e um tão confuso quanto ela, seria melhor deixar que o coração tomasse as rédeas da situação.

— Acho que discussões sempre existirão e é isso que compõe a essência de um Reino. — Delilah começou, de costas para ele. — Mas eu seria errada se dissesse que Alteza não deve tomar uma decisão. Quando a hora chegar, terá projetos que deverá intermediar, para o bem de todos, como a sua mãe queria.

Killian assentiu.

— Deve-me achar um covarde por não tomar uma decisão oficial em relação às expectativas dos Nobres Reais, não é? Principalmente quando parte dos desejos deles signifique a perda de privilégios que famílias como a sua conseguiram conquistar.

Delilah entregou-se ao silêncio por enquanto, pensando nas palavras de Killian. Além dos preparativos acerca do aniversário do Rei, outro assunto movimentava os cochichos da capital: os pedidos inflados dos Nobres Reais para que o Rei volte as suas atenções para as reivindicações e por outro lado, as respostas dos Revolucionários que julgavam os pedidos inconstitucionais.

— Novamente, eu não estaria mentindo se dissesse que penso que a realeza deve ser mais clara nas discussões que permeiam as Assembleias. No entanto, tenho ciência que a Coroa nutre relações especiais com figurões dos Nobres Reais, incluindo Edgard D'Montfort. Então em tese nem Alteza nem seu pai podem ser tão incisivos e correrem riscos de quebrar relações.

Killian admirou-se com o conhecimento político da dama, e sorriu. Delilah era mesmo uma dama de diversos valores, como havia dito, ela era verdadeiramente incomparável. Killian não podia negar, estava apaixonado. E é de conhecimento que rapazes apaixonados não possuem controle de suas ações.

Aproximando-se e sem poder se conter, Killian a beijou. Um beijo apaixonado que Delilah sentiu ao recebê-lo, carregado de vontade. De olhos abertos, ela o viu franzir as sobrancelhas, provando do seu gosto e aparentando estar perdido em pensamentos. E mesmo tendo a opção de desviar como já o fez antes, Delilah fechou os olhos e aceitou.

Tomou o rosto de Killian, segurando-o com delicadeza pelas bochechas. Killian era esperançoso e ávido e por vezes, batia os dentes nos dela. Isso a fez rir e se afastar momentaneamente.

— Não fiz certo? Estou te machucando? — Perguntou Killian, com o semblante preocupado.

— Não, não é isso. — Delilah balançou a cabeça em negação, olhando-o com carinho. — É que... Onde está aquela conversa de "eu não seria capaz de desonrar a senhorita?"

— Mil perdões, Lady Delilah. — Começou Killian, abaixando a cabeça. — Deixei-me levar pela emoção e...

Delilah o calou, sorrindo com um misto de divertimento no olhar. Retirando o dedo indicador dos lábios do príncipe, ela se aproximou e o beijou nos lábios.

— Estou apenas apenas brincando. Não me importo com esses preceitos antiquados pois, se pensarmos por essa ótica... — Delilah o olhou com atrevimento, passando o indicador por seus lábios. Relembrou o ato repetido nos lábios de Amelie e para esquecer da ruiva, voltou a se aproximar. — Também estou desonrando-o, Alteza.

E sem dar tempo para resposta, Delilah o beijou. Killian, surpreso, ainda demorou alguns segundos para envolver seus dedos na cintura da dama, repensando os seus atos. Delilah não deveria ser beijada daquela forma, mas se ela estava tão entregue ao momento, ele não seria capaz de voltar atrás. Killian a apertou e beijou, sentindo-a por inteiro.


🜲🜲🜲

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top