Capítulo 13
"Abrigada na bela vista proporcionada pelos bons ventos que rodeiam nosso tão amado Reino, sou informada pelos meus passarinhos que, nos sinos do Templo, a melodia primaveril da marcha matrimonial envolve nossa Capital, convidando moças e rapazes à se apresentarem nessa tão valiosa união.
Ah, os bons ventos do casamento... E as surpresas que tal momento da temporada nos reserva. Apresentadas as damas e identificados os solteiros da região, é chegado o momento de acompanhar o enlace, os suspiros e as juras de amor.
Ao mesmo tempo, acompanhamos a corrida matrimonial de damas não cobiçadas. Veja bem, querida leitora, se não é adorável acompanhar as têmporas de mães desesperadas, subirem e descerem com a possibilidade de abrigarem suas filhas infortunadas por mais uma temporada? Meus passarinhos me dizem que uma jovem de beleza pouco atraente teve todas as suas fichas lançadas no tabuleiro casamenteiro, levando o seu bom pai à falência. O homem, que achou ter lucros com tal investimento, ao apostar na possibilidade de sua filha fisgar um solteiro bem aperfeiçoado em posses, atualmente está caído em desespero. Ah, as emoções da temporada... Uma ficha, apenas uma, determinará sucesso, ou um terrível fracasso.
Apesar de tal temporada transbordar de flores cálidas e gentis, nenhuma se compara ao frondoso arranjo de Lady Lefrance. Como uma entusiasta por casamentos, não posso negar que espero ansiosamente pelo grande acerto da mulher que é conhecida pela sociedade terithiana como a mão dourada do setor casamenteiro. Tal senhora é tão grandiosa, que em todas as temporadas, mães esperançosas colocam as vidas preciosas de suas filhas em seus pés. Lady Lefrance é uma águia fugaz, experiente e incrivelmente certeira em suas previsões.
Decerto a maior surpresa da temporada provém das peripécias de sua pupila mais badalada, Delilah Westville. Tal jovem que surgiu no mercado casamenteiro como uma candidata de pouca relevância, fisgou o coração do maior solteiro e o melhor a se ter como opção: Killian Whitenwright, o príncipe herdeiro. Poderemos ver em poucos dias, a materialização desse encanto, nos papéis que o tornarão marido e mulher. Tal feito seria o estandarte de diamante a ser colocado na mais alta prateleira de bons casamentos arranjados por Lefrance.
Outras flores tão bonitas quanto essa, enchem-a de igual orgulho. Meus passarinhos afirmam com toda certeza o desenrolar de um enlace inicialmente estranho, mas compreensível. Contrariando as expectativas que a colocavam no páreo pela afeição de Whitenwright, Amelie D'Montfort deixa a disputa para aceitar os cortejos de Arnold Clearvant, Duque de Sodhorne e primo do príncipe. Bem, não há de se negar que tal dama direcionou a sua flecha a outro membro da família. Amelie há de ter cuidado, pois com a crescente popularidade do Duque na Capital, onde mocinhas assanhadas o esperam debruçadas na janela, a dama D'Montfort corre o risco de não ser a única nessa disputa por um lugar na família real.
Tais arranjos também contemplam Lady Cedritte Tremunt, casa subordinada à família D'Montfort, Lady Clorance de Lange, Lady Jollie Breaullet e Florance Law Rovier, jovens de atributos encantadores e fortes candidatas à fisgarem corações de primeiros filhos com boa posição social. Lady Zoeh Lefrance, com sua boa safra de pupilas, decerto é o maior e melhor buquê dessa temporada. Esperemos, ávidos por bons casamentos, o desabrochar de cada broto encantador.
Crônicas de uma Lady Bem-Aventurada, edição 213"
A cidade inteira sorria com o soar dos sinos, anunciando a celebração do casamento de Lady Jannet. Damas de chapéu pomposos e cavalheiros bem trajados em ternos escuros procuravam o melhor lugar para acompanhar tal união. Entre eles, Austina e sua família se abrigavam na terceira fileira à esquerda, enquanto Aida e sua filha sentavam-se do lado oposto. Edgard não perderia tempo em celebrações como aquela, não quando sua filha ainda não havia lhe dado o gosto de vê-la casada.
— Veja. — Austina apontou sem rodeios. — Aposto que Lady D'Montfort soube que usaria esse modelo de chapéu. Oh, como é difícil ser única nesta cidade...
— Mas foi a senhora, mamãe, que a ouviu encomendar na chapelaria.
— Ora, ouvi? — Austina deu de ombros. — Ainda acho que estou sendo imitada. Bom, pouco importa. Estou bem mais vistosa. Não é mesmo, Lord Westville?
— Hm? Ah, sim, sim. — Delilah sabia que o pai não estava prestando atenção. Por isso, prendeu a pequena risada que queria escapar.
Quando a jovem noiva passeou pelo longo tapete, segurando o buquê de rosas brancas, deslumbrante como um beija flor, Delilah deixou o olhar viajar sobre Amelie. Ao lado de sua mãe, a jovem sentiu-se observada, e virou-se, buscando a origem do olhar. Nunca se sentiu tão arrependida por isso.
— ...Aqui estamos, sob o olhar da Deusa-mãe, testemunhando a união de... [...] Que ambos, marido e mulher, sejam lançados à eternidade do amor eterno e juntos, tenham estabilidade para apoiar um ao outro...
As palavras do celebrante eram como melodias distantes nos ouvidos de Delilah. Quando viu a jovem noiva trajada em branco, sentiu-se torpe. Não por ela, mas com a possibilidade de em breve, estar testemunhando aquela celebração, com a silhueta de Amelie ao invés da outra. Ler as Crônicas de Lady Bem-Aventurada antes do casório a fez ter calafrios, espasmos e uma crescente preocupação. Foi pega de surpresa com a informação do cortejo entre Arnold e Amelie, que até então parecia tão determinada a disputar pelo afeto do príncipe com ela. E se o caminho estava livre para Amelie, então... O casamento seria em breve.
Por que tal notícia a incomodava tanto? Ora, não havia de ser boba. O gosto da dama oposta ainda estava doce em seus lábios, como o sabor de um pêssego fresco. Seus dedos formigavam com a lembrança da viagem pelo corpo de Amelie, e ela nem precisava vivenciar para ter certeza que tal viagem era mais emocionante que qualquer excursão em alto-mar. Desde que a beijou, Delilah não parava de pensar nela. E ela se odiou por isso.
— Oh, minha filha, mal posso esperar para ouvir essas palavras saindo de seus lábios... Oh, isso é emocionante para qualquer mãe... — Austina limpou as lágrimas. — Em falar no seu casamento, onde está o príncipe? Não o vejo.
— Talvez ele esteja ocupado o bastante para comparecer em casamentos de súditos. — Delilah apertou o tecido do vestido azul-manhã, nervosa com a certeza de um casamento que ela ainda não havia aceitado. E nem queria aceitar.
Austina balançou a cabeça, voltando a prestar atenção nos votos do casal. E os pensamentos de Delilah retornaram para os olhos azuis onde outrora se encontravam, ecoando os votos em seu ouvido.
— Prometo-te ser tua, e só tua, para a eternidade. — Lady Jannet iniciou, com a voz embargada. — Prometo te servir e te venerar como o meu marido. Prometo conservar o nosso amor nas batidas do meu coração, que pulsará até a eternidade por ti. Prometo, meu amor, meu único amor, te amar intensamente, hoje e sempre.
Delilah sentiu as palavras ecoarem nas paredes aceleradas do seu coração, suas mãos tremerem e os lábios abrir e fechar em busca de respostas para o seu apagão repentino. O olhar de Amelie, cravado ao seu, quando todos os outros observavam o casal, a fazia emudecer.
Amelie, apesar de se odiar por encarar seu desafeto, não conseguiu desviar o olhar daqueles castanhos olhos penetrantes e que tanto a sugavam para um espaço compartilhado pelas duas. As palavras em resposta ecoavam em seu ouvido, fazendo a mente traiçoeira viajar para aquele momento, aquele lago, só elas e o luar.
— [...] Prometo te honrar como minha esposa, e tornar-me um homem digno de ti. Prometo te amar e te respeitar hoje e sempre. Prometo que nossos corações estarão unidos pela eternidade, até que a Deusa os enlace no descanso eterno.
Amelie abriu e fechou os lábios, mas nada saiu. Como poderia sair, depois de ler que Delilah e Killian estavam em vias de se casar? Bom, isso já era esperado desde que o príncipe pôs os olhos nela... E a si, por mando de seu pai, restava retirar-se de sua batalha contra a dama Westville. Naquele momento, seus sentimentos estavam embaralhados. Sentia-se desgostosa por mudar o seu foco; amava Killian e não poderia perdê-lo. Lutar por ele havia sido uma escolha sua, e não de seu pai, ou tal pensamento é decorrente de sua luta para se sentir realmente atraída por alguma coisa? Não, tais pensamentos eram fruto de sua convivência com aquela Revolucionária irritante, Amelie amava-o, não a Arnold. Por que seu pai não permitiria que continuasse a tentar? Por quê não conseguia parar de olhar para Delilah Westville? Por quê seu coração se contraia e agitava cada vez que os azuis dos seus olhos encontravam o castanho dos olhos dela?
A celebração seguiu-se de maneira tradicional, com a troca de alianças e o cumprimento aos noivos. Sacudidas por suas mães, as jovens quebravam o contato visual, sentindo um misto de confusão e temor em seus corações.
— Desejo que seja verdadeiramente feliz, Lady Jannet. — Delilah sorriu, apertando a mão da agora ex-colega de Instituto.
— Também desejo que a senhorita seja feliz, Lady Delilah. No caminho que escolher para si.
Delilah finalizou os cumprimentos ausentando-se do desjejum matrimonial, afinal Lady Jannet e ela não eram tão amigas e certamente a recém casada não nutria lembranças tão boas da última conversa. Antes que sua família se acomodasse na carruagem que os esperavam e ela fosse a última a entrar, a dama ainda teve tempo para ver Amelie e Arnold, que havia chegado atrasado, em uma conversa acalorada e de risadas abafadas. Aida era a mais feliz dos três, tecendo elogios para o Duque recém chegado.
— É uma tristeza que não tenhamos ido ao desjejum. — Austina sentou-se após retirar o redingote e entregá-lo ao criado. — Rique e Lidia adorariam comer alguns doces.
— Não éramos tão amigas no Instituto. — Delilah sentou-se em frente à mãe, desviando em seguida o olhar para o pai. Havia chegado a hora. — Também queria aproveitar a licença ofertada por Lady Lefrance para ter uma conversa importante com a senhora.
— Ora, diga-me então. Sou toda ouvidos.
Delilah suspirou, soltou o ar e enfim iniciou o assunto que tanto havia rodeado para iniciar. A todo momento de sua conversação via o semblante outrora alegre da matriarca da casa, transformar-se em feições duras e uma ordem cortante as criadas foi disparada pelos lábios raivosos da mulher.
— Não deixem que as crianças desçam. Elas não precisam escutar tamanha sandice saindo dos lábios da irmã.
— Mamãe, espere...
— Eu já ouvi o suficiente! — Disparou Austina. — Querer lançar-se como uma comerciante em busca de migalhas? Capacitar mulheres em condições vulneráveis para que tenham uma forma de renda? Onde está com a cabeça, Delilah? Age como uma devassa!
— Por querer ajudar o meu círculo social?
— O seu círculo social não trabalha, minha filha! — Austina se levantou, andando de um lado para o outro. — Seu pai batalhou para que não trabalhasse.
— Meu pai batalhou para que ficássemos em uma posição que nos permitisse ajudar as pessoas que deixamos para trás.
— Sim, deixamos para trás e não temos nada a ver com suas vidas! Contribuo mensalmente à sede para que levem alimentos aos mais necessitados. Não precisamos nos meter.
— E somente alimento é necessário para sobreviver? Como ficam as questões de saúde, educação, o mínimo de dignidade que essas pessoas precisam? Tais pessoas que um dia fomos e ninguém, absolutamente ninguém nos estendia a mão. Se o papai não tivesse me ensinado a ler e me portar nesse mundo, eu estaria no mesmo lugar onde as portas estavam trancadas para mim.
Austina balançou a cabeça em negação, não suportando tais palavras juvenis. Delilah não entendia a posição que ocupava agora, não era possível que a severa tutela de Lady Lefrance não mudasse os ventos tortos de sua cabeça? Precisava ser mais enérgica?
— E o seu casamento? E a sua posição como senhora da sociedade terithiana?
— Sempre há oportunidade em outras temporadas e... — Delilah pigarreou. — Poderei guardar este dinheiro para a minha segurança.
— Será a esposa de um príncipe, minha querida. O que mais pode querer nessa vida?
— A minha estabilidade.
— Ora, sua...
— Acho que podemos dar esse voto de confiança para nossa filha, Austina. — Comentou Garon, pela primeira vez em toda a conversa. Os olhos de Delilah se iluminaram com a grata defesa. — Sabemos como as jovens são. Deixe-a tentar. Se ela se cansar, bom... Ao menos terá satisfeito a sua vontade.
Conhecendo a sua filha, sabia que enquanto tivesse forças, Delilah nunca pararia. Mas tal informação não precisava ser passada para Austina, que também conhecia a sua filha.
— Pensei em usarmos a cozinha de casa enquanto não conquistamos um lugar próprio... Iremos fazer poucas unidades, apenas para testar o mercado. Papai convocará as mulheres de seus subordinados e já combinei o fornecimento dos materiais com a Companhia Ruffen. Além disso, usaria minhas dispensas nos fins de semana para capacitar as interessadas no projeto. Basta apenas a senhora me dar o seu aval. — Tentou Delilah, convincente. — Prometo não dar trabalho nenhum.
— Trazendo um monte de mulheres para casa, atrapalhando as criadas e se comportando como uma mal-criada? — Austina riu, desgostosa. Alisando as têmporas, pediu à criada que lhe servisse chá. — Já fizeram tudo pelas minhas costas. O que poderia eu dizer?
— Assim a senhora me ofende. — Delilah se defendeu. — Não fiz nada pelas suas costas. A senhora sempre soube que admiro muito os negócios do papai ao ponto de um dia também querer o meu.
— O que sei é que o seu pai a mimou deveras. — Austina olhou para seu marido com olhar de poucos amigos. — Achou que seria nossa única filha e tratou de ensiná-la tudo para que um dia pudesse herdar os negócios da família. Nem quando Rique nasceu ele desistiu dessa vontade.
— Rique também terá a vez dele. — Garon suspirou. — Não precisamos apressar as coisas.
— Não precisamos é que a nossa filha fique com as mãos calejadas em trabalhos que não lhe dizem respeito. — Notando a presença da criada, que segurava o ar diante da discussão, Austina pediu que o chá lhe fosse servido em seu quarto. — Se é a minha permissão que deseja, apesar de não ser necessária já que arrumou tudo conforme a sua vontade, a tem. Mas não a minha aprovação.
Delilah suspirou pesadamente ao observar os passos decepcionados de sua mãe. Desabou no sofá quando esta saiu, sentindo um peso considerável deixar os seus pulmões.
— Acha que ela nunca me perdoará?
— Austina não se ressente de ti, filha. — Garon sorriu, tranquilizador. — Tem que entender a sua mãe. Viemos de um lugar difícil. Às vezes, mal tínhamos o que comer. Antes de nos casarmos ela sustentava a família como lavadeira, mas tudo era muito difícil. Sua mãe não quer que o mesmo aconteça com a sua preciosa filha.
— Eu sei, pai, mas às vezes... Ela é muito dura. Tenho a impressão de que ela nunca me compreende, mesmo que eu me esforce para ser compreendida.
— Bem vinda ao curioso mundo das mães. — Garon acariciou-a nos cabelos, brincalhão. — Dê um tempo para a sua mãe. Ela verá que se excedeu mais tarde.
Conhecendo a sua mãe, Delilah sabia que era mais fácil fazer as pazes com Amelie D'Montfort, do que escutar um pedido de desculpas de sua mãe. No entanto, não querendo preocupá-lo, ela sorriu e assentiu, pedindo a bênção antes de se ausentar.
🜲🜲🜲
Com a aproximação de uma nova leva de bailes e o esperado Torneio de Varenhaal, as jovens retornaram ao Instituto ávidas por conhecimento. Muitas, depois das expectativas colocadas por Lady Bem-Aventurada, procuravam Lady Lefrance em busca do refinamento perfeito para uma dama. Outras, treinavam sozinhas, passos de dança ou um simples "Claro, milorde" em treino visando um possível convite para a valsa. Destoante das jovens ansiosas, estava Amelie.
Havia acordado cedo depois que retornou ao lar de Lefrance, remoendo a conversa do dia anterior. Seu pai a intimou a desviar suas atenções para o Duque, e isso não era passível de discussão. Edgard era rude, e temível sempre que seus olhos parcialmente avermelhados voltavam à ela. Quando buscava a sua mãe, via que seu estado catatônico era pior que o dela.
Suspirou, movendo os dedos sobre as teclas do piano. Acaso as mulheres possuíam mais chances que as que lhe foram dadas...? Pensando daquela forma, assemelhava-se... à ela, e seus pensamentos torpes.
Não seria mentira revelar que começou a pensar nas palavras da Westville, que tanto foram rechaçadas por si. Agora, ela não conseguia parar de pensar em outra escolha, outro eu que não fosse o esperado por seus pais e pelo mundo. Mas sabia que aquelas eram ideias tolas.
Não percebeu que seus dedos começavam a tocar o seu próprio réquiem, quando ao levantar os olhos pesados por anos de desconhecimento, a reconheceu. O principal artefato de suas dúvidas, ela.
— Desculpe. Atrapalhei? — Delilah piscava repetidamente, parecendo se dar conta de que estava a alguns metros de Amelie, encarando-a. Estava observando as flores no jardim quando foi arrebatada por aquele som, que a envolveu até a depositar na frente da dama de cabelos ruivos. Não conseguiu focar em outra coisa que não fosse a expressão serena estampada na face angelical. — Por favor, não pare de tocar por minha causa. Estava... Belo.
— Devo sentir-me lisonjeada com os seus dotes consideráveis acerca do bom som em um piano.
— É verdade que não tenho conhecimento. Tampouco sei tocar mais que alguns arranjos curtos. Mas realmente achei bonito. Um pouco triste; quase como um lamento. Mas bonito.
Amelie soltou uma risada fraca, balançando a cabeça em negação. Em seguida, endireitou-se na banqueta e lhe ofereceu o lugar.
— É espantoso saber de tal informação. Depois que ficamos em evidência pelas sábias palavras de Lady Bem-Aventurada, não podemos estar abaixo de suas expectativas. Vou ensinar-lhe o básico para não passar vergonha em um sarau. Terá que ser anfitriã de muitos, quando casar-se com o príncipe.
— Posso saber o que a senhorita ganharia ajudando-me? Achei que estávamos destinadas a odiar-nos pela eternidade. E bom, se não se opõe mais ao meu suposto enlace com o príncipe... É por que os boatos são verdade.
— Há muitos boatos sobre mim, Lady Westville, afinal sou a filha do Marquês de Sars. Se são verdade, bem, a Deusa há de saber. E respondendo-lhe: Não faço pela senhorita. Estou oferecendo minha ajuda devido a evidência de Lady Lefrance. Temos de ser exemplo para a próxima temporada. Essa ajudinha de nada não irá mudar o que sinto pela senhorita.
— É claro que não mudaria. — Delilah sorriu de forma contida, buscando seu assento ao lado da dama. Daquela forma, tão próximas, reflexos do seu corpo a fazia lembrar da noite de luar em que teve a rival nos braços. Sem perceber, seus pelos se eriçaram. — Então, o que faço agora?
— Observe-me. — Amelie suspirou, tentando não focar-se nos sinais de seu corpo que nutriam a ciência da proximidade da dama transbordando aromas de rosa e coco, do braço que quase tocava o dela, e do calor do seu corpo que irradiava o seu. Pigarreou, voltando às teclas. — Já a ouvi tocar e é terrivelmente horrorosa. Não pode agir como se o piano fosse seu inimigo.
Outrora, reclamaria pelo xingamento dito sem pudor algum, mas naquele momento, apenas queria aproveitar a presença da dama ao seu lado. Amelie fechava os olhos e se preparava para tocar, levando Delilah ao profundo hipnótico. As primeiras notas inundaram o cômodo, fazendo-a fechar os olhos por instinto.
— O que a senhorita está tocando?
— Shhh... Não fale enquanto estou tocando. — Amelie sussurrou. — A senhorita não conhece Chopin?
— Devo lembrar que não venho dos mesmos lençóis de seda que a senhorita, Lady Amelie.
— Oh, claro, claro. — Amelie deu um risinho. — Permita-me mostrar-lhe a intensidade de uma boa música. E se me permite dizer, sou muito boa com os dedos.
Amelie não insinuou mas, com as palavras ditas em um sussurro sugestivo, o ventre de Delilah ardeu com vontade reprimida. Quase estava lhe suplicando para que ela fizesse de suas palavras verdade, não com o piano, mas com ela.
— É claro que não perderia a oportunidade de ser convencida. — Delilah estalou os lábios, arrependendo-se de ter abaixado a guarda para aquela lady mimada. Ao se envolver com Amelie D'Montfort, sempre acabava no pior estado: sensível e imaginativa.
— Estou ensinando-lhe, não é de bom tom ser tão mal agradecida.
As damas entreolharam-se compartilhando faíscas cortantes no olhar, no entanto, o sorriso que Amelie escondia sob o rosto convencido a desequilibrou totalmente. Cedendo, Delilah a ouviu tocar, dolorosamente maravilhada.
As horas do fim da manhã passaram em treinos calorosos e que pouco a pouco, deixava a rivalidade de lado para dar lugar ao divertimento da companhia uma da outra. Sem perceberem, aquele beijo baixou as armaduras que ambas armaram ao se conhecerem; despidas, as duas encontravam-se novamente.
— Deve ser mais suave nessa parte, entende?
Delilah assentiu, compartilhando The Sleeping Beauty com a jovem ao seu lado, que deslizava os dedos pelo piano como uma fada. O som que produziam era melódico, um tanto desajeitado – por parte dela – e bom. Em meio ao distribuir de dedos, Delilah se pegou sorrindo, e ao encarar Amelie, viu que ela também fazia o mesmo.
— Lady Delilah. — Amelie se espreguiçou, deslizando os dedos suavemente pelas teclas. — Acaso pudesse ir para qualquer lugar nesse exato momento, para onde iria?
Delilah a encarou, estranhando a pergunta. Era raro Amelie lhe perguntar coisas triviais, mas guardaria para si a boa sensação que aquela trégua momentânea lhe dava.
— Pegaria um barco, e deixaria que ele me guiasse. E a senhorita?
— Acho que lhe perguntaria se havia lugar para mais uma. — Amelie suspirou.
— E o que impede de fazer isso agora? Não digo o barco, mas... — Delilah se calou, sorrindo. Que besteira estava prestes a dizer.
— Como poderia eu pedir um lugar ao lado da senhorita?
— Não é nada. — Delilah fingiu uma tosse, prestes a dizer que lhe cederia qualquer lugar que quisesse. — Procurarei a senhorita quando conseguir o meu barco.
— Princesas não viajam. Nem rainhas.
— Mas uma jovem comum sim. É o que sou. Assim poderia eu dizer que Duquesas não viajam sem rumo.
— É, uma Duquesa... — Amelie assentiu sem muita certeza. Seus olhos baixos e ombros recolhidos fizeram Delilah colocar uma das mãos acima das suas, criando um som desordenado no piano. Amelie arregalou os olhos, assustando-se, tanto com o som, tanto com o ato que as ligavam.
— Não precisa ser uma Duquesa se não quiser. — Delilah sussurrou, encarando os atrativos lábios de Amelie. Sua respiração ficou mais pesada, os dedos alisavam os espaços entre os dedos da outra, seus braços encostaram em um contato quase íntimo. — Assim como eu não preciso me tornar uma Rainha. Amelie, eu... Nós...
Amelie piscou uma, duas, três vezes, encarando as pupilas dilatadas de Delilah. Aquilo. Era aquilo... Que ela nunca havia sentido por Killian, apesar de se convencer por anos que sim. Nunca poderia sentir aquilo que seu coração lhe dizia por Arnold. Aquela secura nos lábios e o aperto no coração.
— Precisamos falar daquele beijo. — Delilah conseguiu dizer, após dias tentando seguir seu cotidiano sem importar-se com aquele fato. Não suportava mais. — Não podemos fingir que nada aconteceu.
— Nós... — Amelie sentia o coração bater forte, rápido, extremamente pulsante. Milhões de dúvidas rodeavam a sua mente barulhenta, culpa, medo, vergonha, desejo. Entupida dos pés a cabeça, restava a ela fazer o que sempre lhe ajudou: esquivar-se. — Nada aconteceu. Não sei do que fala a senhorita.
— Então, se eu a beijar novamente, lembrará do que fizemos?
Os olhos de Amelie acenderam-se com vontade reprimida, mas seus lábios, mais rápidos, afundaram com palavras tal vontade proibida.
— A senhorita não seria capaz. Fala daquele ato ínfimo? Foi tão esquecível que não me vale a pena lembrar.
— Aquilo não significou nada para a senhorita?
— Não poderia significar. — Amelie sorriu com falso desdém. — Estou focada em meus objetivos, Lady Westville também deveria focar-se nos seus. Céus, como fui idiota oferecendo-me para treinar a senhorita! Esqueça tudo o que se passou essa tarde. Nunca poderemos ter uma relação amigável.
Amelie recolheu a mão abruptamente, causando um som desordenado no piano e no coração de Delilah. Levantou-se, segurando a barra do vestido rosê de seda e disparou entre os corredores que esconderam a sua presença. Delilah mal podia respirar, perdida em dúvidas e vontades que a consumia. O que se passou entre ela e Amelie? Por quê seu coração idiota insistia em bater agitado por uma possibilidade que não existia? Amelie era uma nobrezinha mimada, uma dama egocêntrica, e assim haveria de ser. Que fosse feliz com aquele Duque. Tal união não poderia lhe importar menos.
Mentirosa. Descaradamente mentirosa.
🜲🜲🜲
À tarde, enquanto dedos ágeis bordavam panos decorados para serem oferecidos aos combatentes do Torneio, Delilah buscou espairecer seus pensamentos em uma excursão lenta pela residência. Havia os problemas de entendimento com sua mãe, a pressão da temporada, e a reviravolta em sua relação com Amelie. Se soubesse que beijá-la reviraria a sua mente do avesso, pensaria deveras antes de fazê-lo. Ou não.
Odiou-se novamente ao pensar no tecido da chemise em contato com as curvas do corpo de Amelie e a transparência que a fazia mais que imaginar como eram, a fazia ver. Bateu-se na testa, obrigando a mente traiçoeira a procurar outro foco.
E bem no momento que implorou por outro foco que não fosse os impuros pensamentos sobre os atributos físicos de Amelie Louise D'Montfort, deparou-se com uma porta entreaberta. Aproximando-se, olhou pela fresta com cautela, não notando ninguém ao alcance dos seus olhos.
No entanto, quando achou que o lugar estava seguro para explorar, tomou um susto com a presença de Lady Zoeh no canto do cômodo. Audível, sua pesada respiração foi ouvida pela senhora, que voltou sua atenção à ela.
— Lady Westville, não está muito longe de onde deveria estar?
— Perdão, Lady Lefrance. Não queria bisbilhotar nem nada. Apenas... — Delilah rolou os olhos, buscando uma desculpa convincente. Ao pensar melhor e perceber que nenhuma desculpa enganaria aqueles olhos de raposa, resolveu dizer-lhe a verdade. — Caminhar pareceu-me mais atrativo do que bordar.
— E caminhando, a senhorita pousou justamente nesse bloco. Parece que o destino está a pregar-me uma peça.
— Não lembro de já ter visitado essa sala antes. — Delilah olhou ao redor da sala bem decorada, mas com móveis e papéis de parede antigos para a moda atual. Lustres anacrônicos, um ar de sala de reuniões e um forte cheiro de mofo lhe chamavam a atenção. — Por que ela esteve sempre fechada?
— Deveria permanecer assim se não fossem as minhas memórias... Ah, a nostalgia pode ser traiçoeira... — Zoeh suspirou, passando os olhos pela sala. — Este cômodo era a antiga sala de reuniões de meu marido, Lord Gilliard Lefrance. Está há muitos anos trancafiada... Mas hoje, minha mente resolveu lembrar de sua existência.
Delilah assentiu, descobrindo o odor daquele cheiro de coisas guardadas. Aproximando-se, ela observou os padrões na madeira da mesa larga.
— Ele devia usá-la bastante.
— Bom, não posso dizer que não usou pelo tempo que ficamos casados... Pouco, mas o bastante para que acendesse a minha vontade de esconder esse lugar.
— A senhora nunca... — Começou Delilah, incerteza da continuação de suas dúvidas. No entanto, se quisesse conhecer Zoeh, e talvez a si mesma, aquela era a hora de prosseguir. — Falou sobre o seu passado. Nem mesmo citou o seu casamento como uma forma de inspirar-nos.
— Se eu citasse o meu casamento com Gilliard como forma de persuadir as senhoritas, encontraria-me com Lilith. Isso é, se minh'alma já não estiver reservada à ela...
"Meu passado não é um passado bonito. Casei-me muito nova, obrigada por meus pais, como todos os casamentos realizados nesse Reino. Mas... Não era com Gilliard com quem queria me casar. Desde menina era apaixonada e vivia em segredo um romance proibido com o filho de um nobre inferior, que devia a minha família. Quando descobriram-nos, quem não haveria de descobrir? Era tão menina, tão cheia de suspiros... Fui obrigada a me casar com um homem mais velho, de quem eu sentia abundante repulsa. De uma hora para outra vi o meu amor verdadeiro acabar e condenar-me à eternidade com aquele homem asqueroso... Quis desistir de viver, mas não tive coragem."
Zoeh silenciou-se assim que a primeira lágrima trouxe a tona à dor de suas memórias. Delilah se aproximou, pegando-a pelas mãos. Tomada pela surpresa, a senhora agradeceu em um balançar de cabeça sem palavras, prosseguindo então.
— Tornei-me a esposa jovem de um homem já vivido. Há de imaginar o terror que passei. Dias e dias... Satisfazendo aquele homem... — Zoeh parou, suspirando.
— Eu sinto muito, Lady Zoeh, eu sinto muito. — Delilah a abraçou, compartilhando as lágrimas da mulher que devolveu o seu abraço com uma grande tristeza.
— Gilliard queria filhos. — Zoeh prosseguiu, com os olhos perdidos como quem vivencia o passado. — Todo dia, perguntava às criadas se eu já havia dado os primeiros sinais de gravidez. Mas eu não podia. Nunca consegui. Não importava o quanto Gilliard me tomasse, nunca gerei um filho dele. Meu ventre se recusou a gerar um filho daquele homem e hoje eu agradeço à Deusa por isso. Não seria capaz de amar um fruto daquela coisa...
"Nossa relação piorou quando os meses se passaram e eu não gestei. Gilliard ficou agressivo, violento, odiava-me. Mesmo na doença, quando me vi ajoelhada ao seu lado, desejando silenciosamente que morresse, ele continuou a gritar comigo, até o seu último suspiro."
— Fiquei viúva antes dos 30 anos. E como bem sabe, é natural que uma mulher se case novamente, sendo até mal visto se ela não se casar. Recebi inúmeras propostas de bons nobres e nobres inferiores, interessados na fortuna de meu marido, mas recusei todos. Desejei e cumpri o meu desejo de nunca mais casar.
— E o rapaz de quem gostava?
— Casou-se com uma segunda filha logo após o meu casamento. Nunca mais o vi depois de confessar-lhe o meu amor, horas antes da cerimônia. Ainda me lembro de seus olhos lacrimejantes quando me viram naquele vestido enorme, branco, carregando na cauda toda a tristeza que eu poderia nutrir.
Delilah assentiu.
— Foi admirável a escolha da senhora de não casar-se. Imagino que tenha sido difícil mantê-la.
— Admirável, mas não fácil. Minha família foi a primeira a se opor a minha escolha, o que culminou no meu banimento. E entre outros, bom... Imagine a vida de uma mulher negra em sociedade quando todas as referências nos colocavam em posição de servir.
"Por muito tempo, me vi banida de toda a sociedade e pensei que passaria o resto da minha vida dessa forma, reclusa em meu grande casarão deixado pelo meu marido infeliz. Até o dia em que ouvi um bater na porta, e ao abrir, vi a minha sobrinha, que também havia sido banida da família."
— Decidi dar a ela todos os ensinamentos que conquistei nos poucos anos em que mantive a experiência de casada. Não queria que minha sobrinha acabasse da mesma forma que eu. Mas talvez eu tenha... A ajudado de maneiras erradas.
— O que a senhora fez?
— A lancei a mesma maldição que a minha. — Zoeh abaixou os olhos, acolhendo a culpa que se acumulava em seus ombros. — Arranjei-lhe um casamento com um bom nobre, décadas mais velho, o melhor daquela temporada. Mesmo sabendo que a pobrezinha corria o risco de ter o mesmo destino que o meu, eu a lancei a ele.
"Não muito tempo depois descobri que essa sobrinha havia morrido no parto de sua primeira filha. Tive medo que a minha sobrinha não se casasse e acabasse passando por dificuldades, mesmo que meus bens fossem todos para ela quando eu viesse a falecer. No fundo, sou uma hipócrita: detesto casamentos porque já obtive o meu, mas não aceito a ideia de uma mulher não casar-se nessa vida. Mesmo que eu estivesse a mandando para a roda da morte."
Delilah viu a mulher segurar-se na mesa envelhecida, pondo a mão sobre os lábios para conter o pranto. Zoeh estava despida de qualquer casca que a manteve por décadas, a mulher conhecida por seus olhos de águia agora era nada menos que um coelho em busca de proteção. Apertando a barra do vestido, a dama Westville digeriu aquela cruel revelação.
— Sua sobrinha poderia ter se mantido... Se a tivesse deixado ficar.
— Eu sei. — Zoeh se recompôs. — Mas naquela época, queria sentir-me útil. Achei que dar-lhe o melhor era dar-lhe o que deram a mim. O que dão a todas as mulheres.
— Um casamento feliz. — Delilah sorriu para si mesma, pronunciando as palavras de forma dolorosa.
— Quando consegui aquele feito, a sociedade quis saber como "restaurei" uma perdida e a transformei em uma pérola. Uma mulher negra que se mantinha sozinha conquistou um bom casamento para uma sobrinha também negra? Fui chamada para ser a mentora de diversas jovens na temporada seguinte, e partir daí, meu império de jovens em casamentos felizes foi crescendo.
— Todos os casamentos foram felizes?
— Dificilmente um casamento é feliz, minha querida. — Zoeh sorriu com um buraco no coração. — Alguns são apenas mais toleráveis que outros. E eu rezo, dia após dia, que as senhoritas encontrem homens toleráveis em seus caminhos. Como a sua tutora, é tudo o que posso fazer.
Delilah assentiu, voltando-se para a janela de vidros empoeirados. Tudo o que alcançava os seus olhos era o tom cinzento do que poderia ser a luminosidade do céu escondida pela poeira dos tempos passados e da perpetuação daqueles dogmas no presente. Se ela nada fizesse, tais prisões se arrastariam pelas fendas hostis do futuro feminino.
— Não é injusto que a única escolha das mulheres seja essa? Não é necessário que mudemos nosso pensamento?
— Já fui como a senhorita, Lady Westville. Uma jovem sonhadora, acreditando nas minhas ideias ambiciosas. Mas no final, acabamos todas com "isso" no dedo. — Zoeh apontou para a aliança reluzente, mantida mesmo após a morte do marido. — Por toda a eternidade.
— Então provarei, nem que para isso eu morra tentando, que as mulheres não são reféns desse círculo dourado. Provarei, Lady Zoeh, que nenhuma mulher precisa passar pelo o que a senhora passou. Provarei que temos escolhas. Provarei que somos dignas de termos uma.
Zoeh arregalou os olhos, vendo em Delilah uma distante figura da jovem que um dia foi. A cópia sorria para ela, estendendo-lhe a mão, e suas lágrimas caíram copiosamente quando ao lado de sua versão juvenil, estava a sua sobrinha, radiante, alegre, como as suas lembranças a haviam eternizado. Ela sorria ao lado de Delilah e sua versão juvenil, mesclando-se em um só corpo, e desaparecendo ao encontrar-se com a alma da jovem a sua frente. Aquela que carregaria o legado.
Internamente, ela torcia para que Delilah conseguisse estraçalhar o caminho que ela própria pavimentou.
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