Capítulo 12
Florence sempre apreciava as visitas matinais de seu primo Killian. De toda a família, incluindo seus pais, que a consideravam um estorvo, seu amável primo a retirava de uma inquieta solidão que há muito tempo se instaurou em sua rotina.
Toda a má relação com sua família começou após a sua recusa em casar-se com Killian. As uniões entre parentes eram naturais em sua linhagem, e um matrimônio entre os dois seria mais que bem vindo na Coroa, mas Florence não o via com esses olhos. O Killian que outrora escondia-se embaixo de galhos frondosos de árvores e sempre lhe permitia ficar com o último biscoito de cereais, o seu favorito, nunca poderia ser o seu marido.
— Prima Florence. — Killian a beijou na mão. — Chamou-me tão depressa; temi que estivesse com a saúde fraca.
— Sinto-me perfeitamente bem. — Florence sorriu, abrindo espaço para que o príncipe se sentasse. — Chamei-lhe por outro motivo. Quero conversar sobre o seu futuro matrimônio, meu primo.
— Meu futuro matrimônio? Acaso Lady Bem-Aventurada andou escutando inverdades daqueles passarinhos?
Florence balançou a cabeça em negação, suspirando. Antes de voltar a falar, a dama de bochechas avermelhadas assegurou-se de estarem sozinhos.
— Ora, todos dizem que os trâmites do casamento com Lady Westville já estão encaminhados. Negará para a sua prima?
— Lady Delilah lança-me ao limbo de seu silêncio. — Killian confidenciou, cabisbaixo. — Tal dama é instigante ao mesmo tempo que geniosa.
— Tais atribuições não seriam suficientes para que voltasse os seus olhos para outra dama? Uma que não exigisse tanta dedicação?
— Meus olhos não conseguem encantar-se tanto quanto se encantam ao vê-la.
— Acho que não está se permitindo olhar mais atentamente, meu primo. Vejo uma dama perfeita para ocupar essa posição.
— E quem seria tal jovem?
— Lady Amelie D'Montfort. — Florence afirmou. — É uma dama vistosa e de boa gente. Perfeitamente adequada para ocupar um lugar ao seu lado.
Killian entortou os lábios, retendo-se ao silêncio. Em seguida, esfregou as mãos, retomando a fala.
— Decerto Lady D'Montfort é muito adequada. Para os Nobres Reais, tal dama seria a aposta perfeita para aproximar as boas relações entre a Coroa e a Nobreza, mas... Falta-lhe algo. Uma qualidade que não sei se será possível conquistar após o matrimônio.
— Não entendo, meu primo. Lady D'Montfort é uma joia rara em questão de qualidades.
— Não digo sobre suas atribuições, que decerto são muitas. Mas... — Killian coçou a barba inexistente. — Ao estar na presença de tal dama, sinto-me diante de uma tela vazia. Lady D'Montfort tem a capacidade de adaptar-se, isso é positivo, mas em uma dama, busco por estabilidade. Creio ser por isso que Lady Westville me encanta tanto.
Tais palavras haviam sido um golpe e tanto em Amelie, que ouvia a conversa com um ponta de esperança no fim do corredor. Escutando o príncipe, a dama sorriu sem mostrar os dentes, prendendo uma risada amarga que insistia em sair. Não havia sido o suficiente para Killian, apesar de ter se esforçado. Ele nunca a viu como uma possibilidade, ignorando os sentimentos dela, que o viam como uma certeza.
— Uma tela vazia... — Amelie sussurrou as palavras, sentindo a dor da rejeição. Naquele meio segundo em que suas pernas se recusaram a sair do lugar, ouvindo todos os elogios que o príncipe fazia a sua rival, lágrimas impossíveis de conter começaram a molhar as suas bochechas. Não havia sido criada a vida inteira para ser moldável? O que havia de errado? Se ele lhe desse uma chance, ela se esforçaria para se pintar em uma personalidade que lhe fosse de gosto. Se ele a quisesse, ela faria de tudo para ser querida. Então por quê Killian continua a lançá-la para longe?
🜲🜲🜲
Delilah tão cedo acordou, encaminhou-se à pilha de cartas que a esperavam. Leu cartas de Lidia e Austina, que perguntavam as boas novas, e aquela que tanto esperou. Seus dedos ágeis mal podiam se conter ao ler o nome de Lorde Ruffen, e a resposta que esperava deixava o seu coração em tremores. Rosa aguardava ao seu lado, tão ansiosa quanto. Em suas mãos, um livro de receitas, que outrora estava sendo o seu objeto de estudo ao acompanhar o descanso da dama.
— Qual foi a resposta? — Rosa perguntou, incapaz de esperar. — Lorde Ruffen escreveu boas novas?
Delilah rolou os olhos pelas palavras escritas com tinta preta, receosa. Ao finalizar, largou a carta em cima da cama e olhou para Rosa, pensativa. Tal demora apenas deixava a criada mais em polvorosa.
— Ele... Não respondeu. — Delilah mordeu os lábios, suspirando. — Apenas disse que deseja me encontrar para dar-me a resposta pessoalmente.
— Em um dia de semana? Não é de conhecimento dele que a senhorita não pode sair do Instituto?
Bem, talvez fosse, foi o que Delilah pensou. Tal convite não fazia sentido se o homem soubesse da sua condição, mas ao ler as palavras do Lorde, teve a impressão de estar sendo testada. E se tal teste duvidaria de sua capacidade de estar no lugar marcado, na exata hora descrita na carta, ela provaria o contrário.
— É fato que não posso sair. — Delilah começou, com aquele sorriso travesso que Rosa sabia ser indicativo de problemas. — Mas há de ter um jeito.
— Qual jeito a faria passar despercebida entre as outras criadas e Lady Lefrance? Sabe que corre risco de ser expulsa se aprontar...
Rosa tinha razão, havia o risco. Mas com ele, surgiam as melhores ideias, e uma delas já começava a inundar os pensamentos travessos da dama que sorria, decidida.
— Lorde Ruffen há de me aguardar. Ah, se há.
À tarde, as damas se reuniram diante de uma tela em branco, tintas e o olhar severo de Lady Lefrance. Na busca pela perfeição de seus dotes femininos, tais jovens praticariam as suas habilidades artísticas, muito apreciada entre os homens de bem. Diante de alguns rabiscos e outras imagens grotescas, Zoeh pigarreou, colocando-se diante de todas:
— Levem esta tarefa à sério! — A voz da mulher reverberou. — Se desejam brilhar como diamantes preciosos, devem ser perfeitas em tudo o que lhes é esperado.
Amelie assentiu, encarando a sua tela em branco como se estivesse encarando a porta de sua alma. Seu dedo tocou o objeto, escorregando sem emoção. As palavras de Killian, a comparando com um ser vazio, ainda ecoava em seus sentidos magoados.
As inconsistências da vida irônica, a deixou ao lado de Delilah, que encarava a tela como um ato que facilmente a deixaria entediada. Os seus olhos lânguidos, e a boca semiaberta, era um disparate para a dama que tanto tentou ser perfeita e não conseguiu. Delilah era injusta, em seus trejeitos desleixados e a zero vontade de ascender entre as outras damas. Era isso que a deixava tão atrativa? Seu desprazer em estar naquele lugar a deixava desejável?
Seus olhos se encontraram, os dela, curiosos diante do olhar hipnótico da outra. Delilah encarou Amelie como se soubesse de seus pensamentos acerca de si. No entanto, nada disse quando sorriu de maneira fraca, voltando a se concentrar, ou tentar, em seu afazer.
Amelie sentiu seu coração formigar diante daquele sorriso. Por quê Delilah sorriu para ela? Comemorando a sua derrota? As lágrimas do seu peito? Em breve, ela estaria ao lado de Killian como a sua amada esposa e aquilo lhe doía. Oh, como doía.
Tomada por uma raiva dirigida à dona de seus pensamentos tão incertos, Amelie fez daquela tela estúpida o centro de sua indignação. Pintou e desenhou, sentindo seus dedos queimarem diante da pressão que fazia. Mas não importava. À ela, que pouco a pouco dava luz às suas ideias tortas, restava-lhe o esplendor de seu ódio.
Delilah sentiu um arrepio lhe tomar diante daquela pressão invisível que a ligava à Amelie, mesmo que notáveis passos as separassem. Tal pressão comportava-se como um imã, que a arrastava sem que apresentasse resistência. Deixou que o olhar viajasse até as curvas da "rival", que movimentava o corpo em um frenesi. Seu busto apresentável subia e descia no ritmo de sua respiração pesada, e Delilah não deixou de reparar na vermelhidão em sua pele, que parecia combinada com o vestido magenta que usava. Amelie estava...
— Acaso deseja perguntar-me algo, Lady Delilah? — Zoeh se colocou à sua frente, interrompendo seus pensamentos torpes. Delilah não chiou, apesar de parte de sua mente inconstante chatear-se com a interrupção. Piscando, a dama voltou ao risco solitário de sua tela de desenho.
— Nenhuma dúvida, Lady Lefrance. — A dama forçou um sorriso, engolindo em seco ao se perguntar o que raios fazia ao expectar os movimentos corporais de Amelie. — Estava apenas... buscando inspirações.
"Nos peitos de Lady Amelie."
Amelie suspirou, encharcada de suor dos pés a cabeça ao olhar para o seu trabalho, e tamanho susto teve ao notar os resultados de sua raiva. Pintada com perfeição, estava a dama que surgiu como uma pedra no sapato em seu caminho.
Uma mulher de pele negra e cabelos cacheados que batiam em seu busto, posava para ela, trajada com um pano branco que serpenteava por seu corpo como uma cobra à espera do bote. Suas feições se assemelhavam à Deusa, mas havia em seus lábios entreabertos resquícios de Lilith. Uma mulher deusa-demônio alada, que incendiava o seu coração.
— Tal desenho é... intrigante. — Zoeh encarava o desenho com uma expressão que contrariava suas palavras. Tal obscenidade não era viável para boas jovens como as suas pupilas, que deveriam sempre estar alinhadas aos preceitos da moral. — Diga-me, Lady Amelie, há alguma inspiração por trás de uma pintura tão específica?
Amelie sentiu as suas bochechas queimarem. Onde raios estava com a cabeça ao deixar suas reclamações a dominarem, ao ponto de desenhar uma figura tão pecaminosa? Que a Deusa a perdoasse por compará-la a uma figura tão vulgar.
— Não tive inspiração nenhuma, Lady Lefrance. — Amelie mentiu descaradamente. — É apenas uma figura tola.
"De seus pensamentos tolos, ela pensou."
🜲🜲🜲
Trancada em seu quarto, Amelie encarou o retrato posto na cama. Segurando uma tesoura, aproximou-se de seu trabalho prestes a dar um fim nele, e assim livrar-se de suas aflições. Mas ao olhar para aqueles olhos castanhos oblíquos e angelicais, segurou o seu pulso, retendo a sua vontade de o despedaçar. Naquele momento, possuía a vontade de destruir Delilah. A garota que chegou no Instituto como quem não queria nada, roubou-lhe tudo. Mas não conseguia. Algo mais forte do que ela lhe minou a coragem. Desabando ao lado da jovem alada, a dama suspirou. Precisava tirar Delilah Westville da sua cabeça.
A noite recém caída trazia na escuridão do céu, a luz das ideias travessas de Delilah. Rosa andava de um lado para o outro, mordiscando as unhas e recusando-se a seguir as instruções da dama que lhe suplicava com olhos pedintes. Se fossem pegas...
— O quê pede a mim é muito arriscado, Lady Delilah! — Rosa apelou para o falho juízo da dama travessa. — Se a senhorita for pega, eu...
— A ti nada acontece, se a mim cair toda a culpa. — Delilah a tranquilizou, a pegando pelas mãos. — E eu não serei pega. Confia tão pouco assim em mim?
— Se Lady Lefrance perguntar sobre a senhorita...
— Diga que não me juntarei as jovens; sinto-me indisposta. — Delilah espreguiçou-se, fingindo uma indisposição. — Não serei capaz de sair do quarto e nem quero ser incomodada.
— Lady Delilah...
— Ah, Rosa, o que é da vida se não as pequenas aventuras? — Delilah sorriu, animada com sua ideia. — Tudo o que precisa fazer é arrumar-me um desses uniformes. Pegarei uma cesta e sairei para visitar a cidade.
— Mas e se...
— Se algo der errado, o que não vai acontecer, pois sou extremamente cuidadosa, penso em minhas possibilidades de fuga. Mas acredite minha amiga, dará tudo certo.
Delilah encontrou a noite acima de si, repleta de estrelas e um ar puro para respirar. A saída do Instituto não havia sido fácil como esperava; foi parada ao pé da porta pela governanta. Seus joelhos congelaram e as possibilidades de fuga prescritas sumiram de sua mente, mas para a sua falta de surpresa, não foi reconhecida. Nas vestes em que se encontrava, tecidos baratos e a costumeira touca branca acima da cabeça, não se destacava. Para a nobreza e as pessoas que faziam parte daquele círculo de poder, pessoas como ela eram todas iguais. E não seriam vestidos de seda ou joias bem cravejadas que mudariam isso.
Respirou fundo antes de caminhar com sua cesta, sentindo o ar da noite abrir os seus pulmões. Viu a cidade que abrigava as feiras e mulheres bem paramentadas dar lugar aos festejos da noite, homens que tropeçavam em busca de casas de bebidas e mulheres com vestidos marcantes e lábios pintados na cor de um vermelho vivo. A pouca luz guiava o seu caminho até a porta da Companhia Ruffen, onde anunciou sua chegada e esperou.
O criado a observou, enquanto abria as fechaduras para que passasse. Delilah sorriu, esperando que a gentileza lhe fosse retribuída, mas o rapaz de face acanhada decerto se perguntava o que uma criada como ela estaria fazendo ali.
Passadas as deduções, o homem a guiou para dentro da Companhia, abaixando a cabeça quando avistou o seu senhor.
— Ora, se não é a jovem em pessoa. — Lorde Ruffen, abrigado pela escuridão, emitiu uma risada divertida. — Vejo que a menina realmente conseguiu sair da gaiola que a guardava.
— O senhor nutria dúvidas em relação a minha capacidade? — Delilah respondeu, para o espanto do homem que a acompanhava. — Achei que tivesse ficado claro em nossa conversa, que eu não tenho pretensões de desistir.
— Oh, se poderia eu nutrir dúvidas acerca de uma jovem que procurou-me com tanta altivez... E depois de ouvir histórias suas, tive a certeza de que a senhorita não é do tipo que desiste de suas convicções.
Naquele momento, Delilah teve o vislumbre de suas figuras que, em seus passos, ganharam contornos à meia luz. Seus olhos se arregalaram de surpresa quando uma das silhuetas ganhou face.
— O príncipe contou-me sobre a senhorita. — Continuou Lorde Ruffen. — É certo que a senhorita recusou um notável matrimônio?
— Lorde Ruffen. — Disse Delilah encarando Killian, que a observava, e em seguida voltando a encarar o alvo de sua comunicação. — Não vim até aqui para falar-lhe das minhas pretensões casamenteiras. Vim atrás das respostas que procuro, e se bem lembro ao senhor, prometeu dar-me.
— E é justo que as receba. Por isso tomei a liberdade de chamar Alteza para essa conversa. Afinal, não se discutem negócios sem a presença da Coroa.
— Então, milorde decidiu favoravelmente à minha proposta? — Delilah se animou, esperançosa.
— Eu recusaria, e estava prestes a recusar, quando minha filha e esposa me perguntaram onde fui capaz de obter produto tão milagroso. Não sei o que a senhorita colocou naqueles potes, Lady Westville, mas estou sendo atormentado pela reposição deles há semanas. — Lorde Ruffen entortou os lábios e levou à mão até a têmpora, parecendo se lembrar dos pedidos ávidos das mulheres. — Não tenho fé que o mercado de produtos para o uso feminino seja mais rentável que o antigo ramo em que a minha Companhia se especializou. Mas diante de uma nova promessa no mercado, bons comerciantes como eu não podem deixar a chance passar. Há riscos em nossos negócios, Lady Westville. É nosso dever corrê-los.
"E por isso, a partir desse dia em diante, a Companhia Ruffen está a postos para entregar-lhe o que precisa. É claro que precisamos discutir sobre a porcentagem dos lucros obtidos, os impostos da Coroa... Mas creio poder dar-lhe essa boa nova agora."
Delilah apertou os lábios e finalmente deixou o sorriso brotar, incapaz de conter tanta alegria em seu peito. Pouco a pouco, sua ideia que parecia impensável e fora de questão nascia como um broto de flor singelo, prestes a virar uma linda flor. Agora, era preciso convocar mulheres que estivessem dispostas a embarcar nesse sonho com ela. Que certamente haveria de se realizar.
Delilah deixou a Companhia prometendo resolver as questões burocráticas até o final da semana. Esperava que a proximidade do baile deixasse Austina mais maleável, já que ainda precisava contar-lhe, junto de Garon que faria o papel de mediador, de sua boa notícia, que para Austina não pareceria tão boa assim. Sabia que uma conversa difícil estava prestes a chegar, mas naquele momento, permitiu-se aproveitar o sentimento bom que brotava com a sua conquista.
— A senhorita aceita ser a minha companheira de viagem?
Delilah foi retirada de seus bons pensamentos com a chegada de Killian, que estava parado atrás de si. Ele não falou além do necessário na conversa posterior com Lorde Ruffen, além de elogiá-la e desejar sorte em sua empreitada.
— Creio ser capaz de andar sozinha, Alteza.
— Depois do que a senhorita tem me mostrado desde que nos conhecemos? Não poderia eu duvidar. Já a vi com o vestido rasgado, com um modelo ousado e agora está trajada em tais vestes... Acredito que a senhorita seja capaz de tudo.
Delilah não respondeu, e nem o encarou. Talvez esses dois indicativos o tenha feito perceber que sua conversa anterior com o Lorde a chateou.
— Não mencionei a sua recusa em unir-se à mim como uma forma de acuá-la. Apenas pontuei que era corajosa o bastante para trilhar o seu caminho sozinha.
Killian aproximou-se para tocar em seu ombro, mas a viu desviar. Suspirante, o príncipe recuou.
— Chateia-me que nós mulheres sempre sejamos relacionadas ao casamento, como se tal "dádiva" fosse o marcador de nosso caráter. Sou corajosa por muitos motivos. Recusar um possível matrimônio com Alteza não é o maior deles.
Killian assentiu, abaixando o olhar. Não queria magoá-la. Delilah era como o vento, inconstante e arrebatador. Seria um golpe para ele vê-la se afastar por causa de suas atitudes tolas.
— Com todo o meu coração, peço-te desculpas pelos meus atos. Pode não acreditar em mim, mas... Meus pensamentos acerca da admiração que tenho pela senhorita são sinceros.
Delilah assentiu, segurando a cesta com mais força que o necessário. Sabia que jogar suas frustrações em cima de Killian era errado. Mas depois da conversa que teve com as jovens do Instituto, e os olhares de repulsa que recebeu, quando defendeu o seu ponto, tais expressões de descontentamento a magoaram mais do que queria admitir.
— A senhorita permite que eu me redima oferecendo-lhe uma cavalgada? Maxus é um bom menino. Ele vai saber obedecê-la.
Apertando os lábios, Delilah se virou para o encarar. O príncipe parecia genuinamente arrependido e sua proposta era tentadora demais. Sentir o vento batendo em seu rosto enquanto matava a saudade de uma cavalgada? Ela não podia recusar.
Delilah entregou-lhe a cesta e montou em Maxus, mal podendo esconder o sorriso pela oportunidade. Enquanto Killian encontrava o ponto de equilíbrio na permanência em cima do animal e o segurar da cesta, a dama segurou nas rédeas e iniciou os seus primeiros comandos. Sentindo o cavalo andar, ela sorriu.
— Como se sente? — Killian perguntou, enquanto eles passavam pelas ruas da cidade.
— Maravilhosamente bem! — Delilah quase gritou, sentindo o ar bater em seu rosto.
— Alegra-me ter a encontrado hoje. — Killian continuou, envergonhado. — Poderíamos fazer isso mais vezes. Se quiser, é claro. Também posso lhe mostrar a redoma de flores nos jardins do Castelo.
— Eu adoraria. — Delilah respondeu, genuína. — Se prometer que também terá doces como no Festival.
— Terá tudo que desejar. — Killian sorriu, olhando-a pelas costas. Aquela jovem travessa, em vestes de criada, aquela que escalava muretas para poder fugir, e conversava com ele com tanta naturalidade, havia arrebatado o seu coração. Ela só precisava aceitá-lo.
Delilah ainda encontrou tempo para inteirar Rosa acerca das notícias e comemorar a sua conquista com ela. Sorrindo, Rosa apertou as mãos.
— Então... A senhorita quer mesmo chamar a minha mãe para treinar as mulheres?
— Essa sempre foi a minha ideia. — Delilah sorriu, apertando as mãos da amiga. — Será muito bom ter uma mulher experiente como a sua mãe ao meu lado, fora que ficará muito mais fácil para que foque em seus sonhos.
— Sonhos? — Rosa arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Disse-me que arca com quase todas as despesas da família. Agora, com mais um integrante para ajudar, poderá guardar dinheiro para um dia estar em cima de um tablado, liderando uma ópera.
Rosa sorriu. Um sorriso triste e desesperançoso.
— O canto para mim ajuda-me a espantar os problemas e as tristezas. Mas sei que cantar diante dessas janelas é a única realidade possível pra mim.
— E por quê haveria de ser? — Delilah negou com a cabeça, inconformada. — Enquanto estiver respirando, Rosa, pode sonhar. E no meu sonho, que irá se tornar realidade, eu a vejo lotando sessões com a sua música.
— E a senhorita estaria casada com o príncipe, observando-me?
— Observando-lhe, sim. — Delilah sorriu. — Mas não sei se casada com o príncipe. No meu sonho, por enquanto, eu estarei lhe observando como uma grande comerciante. Ah, e também estarei lhe esperando para embarcar em um navio comigo. Levaremos as minhas criações e a sua voz para os quatro cantos desse mundo.
Rosa sorriu, intercedendo à Deusa para que aquele bonito sonho se tornasse realidade. A criada gostava dos pensamentos da dama, apesar de temer a maioria deles por achá-los arriscados demais. Delilah foi a única na vasta gama de senhoras que conheceu que lhe disse ser possível sonhar. E a partir daquele momento, em seu coração, ela passaria a acreditar nisso.
Antes da noite enfim levar criadas e senhoritas aos seus devidos aposentos, Delilah revisou os estudos recentes das criadas que aceitaram ter aulas com ela. Além de Rosa, todas estavam em notável evolução, lendo palavras inteiras em um tempo menor que antes. Havia muito trabalho a ser feito. Mas com paciência e vontade, haveriam de conseguir.
🜲🜲🜲
A madrugada que se instaurou no Instituto, deixando-o em total silêncio, deu voz aos pensamentos de Delilah e Amelie. A primeira, que rolava na cama sem conseguir dormir tamanha a felicidade que lhe contagiava, resolveu estender a sua noite entrando em contato com o que mais lhe fazia bem.
Deixou a inquietude de sua cama e das dependências do Instituto para caminhar no vasto perímetro verde que rodeava o casarão. Caminhou e caminhou sentindo o frio bater contra a fina chemise que lhe abrigava o corpo, no entanto, certa do que iria fazer, precisaria se acostumar com ele.
Amelie escutou passos que ecoaram sob os seus pensamentos turbulentos. Não havia saído de seu quarto desde que a vergonha a acometeu, depois de cair no limbo da imoralidade com um desenho deveras vulgar. O objeto que outrora jazia ao lado de seu corpo agora morreria esquecido no fundo do guarda roupa, de onde nunca mais sairia. Mas nem mesmo a saída do objeto do alcance de seus olhos acalmou o seu coração.
Tais passos ecoantes a fizeram deixar a maciez de seus lençóis, para observar a origem do som na janela. Os passos de Delilah contra a grama eram captados pelos seus olhos azuis, e diante da escuridão noturna, ela viu a massa de cabelos castanhos tremular contra a brisa passageira. Naquela chemise branca, ela parecia mesmo com a mulher de seu quadro.
O ato de segui-la não foi entendido pelo lado racional de sua mente, no entanto o emocional sabia que aquela era a escolha certa a fazer. Praguejou contra o frio, encolhendo-se com os braços e odiando a jovem e se odiando o dobro por colocar-se naquela situação.
Chegando ao seu destino, Delilah sorriu satisfeita. Havia descoberto aquele lago de águas calmas por acaso, quando ainda lutava contra a ordem de ficar naquele lugar. Prometeu a si mesma que o visitaria um dia, mas passado o tempo que estava no Instituto, nunca o fez. Não havia dia melhor que o hoje.
Rolou a chemise pelos pés, sentindo a nudez arrepiar-se com o frio. Seu corpo acanhado se recusava a se aproximar, sabendo o gelo que a esperava, mas sua mente não acompanhava o raciocínio lógico de seu corpo. Caminhou pausadamente até experimentar a temperatura da água pelos pés; soltou um gritinho antes de entrar por inteiro.
Delilah suspirou sentindo os lábios se chocarem contra os dentes, aquilo decerto era um sinal para que saísse, mas não havia nada no mundo, nem mesmo o seu estado de saúde, que a tiraria do relaxamento daquelas águas. Rodou o corpo e os braços, encarando o seu reflexo sob a luz da lua, sim, era aquilo que precisava para sentir-se viva.
— Millone disse-me que viu uma jovem bastante parecida com a senhorita sair hoje. Até julguei que ela estivesse enganada, mas ao vê-la nessa situação... A senhorita é bem do tipinho que faria isso.
Amelie estava a alguns metros do lago, de braços cruzados e refletida pela luz lunar. Seus cabelos ruivos ganhavam fios de prata, iluminando-se aos castanhos olhos de Delilah.
— Não lembro de dar-lhe satisfações, D'Montfort.
— Nem poderia pedir tal coisa. — Amelie grunhiu, irônica. — Mas não posso dizer o mesmo de Lady Lefrance.
— Deseja contar a ela? Vá em frente, então.
— Talvez eu poderia... Mas isso não encrencaria a sua criada? Sim, porque há de ter um dedo dela nisso.
Ao ouvir a menção à Rosa, o sangue de Delilah esquentou. A jovem nadou para a parte rasa da água, de onde era possível ver o reflexo das curvas do seu corpo.
— Quer me ferrar, D'Montfort? É livre pra isso. Mas se prejudicar Rosa, se verá comigo e dessa vez, não será apenas um tapa que irei dar. Se tem amor ao seu rostinho de boneca, então não envolva Rosa nisso.
Amelie umedeceu os lábios ao reparar nas gotículas de água que caíam do rosto e do cabelo de Delilah, alastrando-se pelo colo. E ao falar nele, Amelie desceu mais, vendo o delineado do corpo da dama sob as pequenas ondas da água. Sua garganta secou.
— Tanto amor por uma criada? — Amelie soltou uma gargalhada e abanou as mãos, desdenhosa. — É uma regra entre os seus apiedar-se da miséria?
— Não. — Delilah respondeu, firme. — Somos acolhedores porque somos família. Isso é uma coisa que a senhorita e nenhum dos seus jamais poderá entender.
— Família? — Amelie riu. — Fico agradecida. Não possuo vontade de entender o sentimento de um grupo de mortos de fome.
— Se entendesse, poderia ser uma pessoa melhor. Poderia se conhecer mais.
— E quem disse que não me conheço?
— As suas atitudes desesperadas. — Delilah a encarou. — Sua intriga comigo. Seu amor pelo príncipe.
Amelie tomou aquelas palavras como um desaforo. Como assim, aquelazinha achava que sabia mais de seus pensamentos do que ela?
— Atitudes desesperadas? Intriga com a senhorita? Amor pelo príncipe? — Amelie gargalhou, segurando a barriga. — O quê acha que sabe? Não possuo intriga alguma com a senhorita, apenas acho que este não é o seu lugar. Não estou desesperada, não tenho a mínima ideia de qual seja esse sentimento. E sobre o meu amor pelo príncipe, não preciso prová-lo à senhorita. Eu o amo, e isso basta.
— A mim, não importa provar mesmo. — Delilah suspirou, mexendo os ombros. — Mas deveria importar a senhorita. O ama mesmo? Ou apenas segue o que sua mamãe e seu papai pedem?
Amelie fechou os punhos, sentindo uma torrente de raiva a acertar. Delilah dizia besteiras, muitas besteiras. Não havia sido induzida a gostar do príncipe por ninguém, então... Por que tais palavras lhe doíam tanto?
— Meus pais nunca pediram isso a mim! Apaixonei-me por mim mesma. Eles desejam que eu me torne a rainha, mas eu também desejo.
— Se a senhorita não consegue enxergar a manipulação que sofre... Não serei eu a tentar abrir os seus olhos.
— A senhorita quer me confundir, é isso! — Amelie riu, agitada. — A senhorita é o mal deste lugar. É o meu mal! Se finge de boazinha, de jovem desapegada, mas não passa de uma cobra traiçoeira! — Amelie não percebeu que os seus pés a levaram para a água, sentindo a água fria chacoalhar seus sentidos. Sem se intimidar, Delilah ergueu-se em sua frente, revelando a nudez.
— Sou o mal por fazer que a senhorita enxergue algo que esteve na frente dos seus olhos esse tempo todo? Não é por minha causa que Killian não olha para a senhorita. É por si mesma.
— Mentira! Mentira! — Amelie, perturbada, a encarou com os olhos e a face avermelhada, segurando lágrimas de um sofrimento que a muito lhe acometia. — Se a senhorita não tivesse aparecido... Tudo... tudo ficaria mais fácil...
— Se não fosse a mim, seria outra, ou nenhuma. Mas nunca seria a senhorita.
Amelie deixou a raiva agir por si e diante das palavras da outra, ergueu a mão pronta para desferir-lhe um tapa. Mas Delilah foi mais rápida e a segurou pelo pulso, impondo força.
Amelie a chutou na canela, espirrando água para cima e diante da surpresa e da pontada de dor, Delilah deixou seu pulso escapar. Livre, a dama empurrou-a na água, onde Delilah esticou a perna para fazê-la cair. Aproveitando do rápido desequilíbrio de Amelie, Delilah se atirou na dama, levando as duas para a água.
Ofegantes, as jovens se encaravam, raiva e algo mais sendo compartilhado nos olhares cravados. Delilah, nua, observava o contorno do corpo de Amelie que perfeitamente estava explicitado na fina chemise rendada que usava, grudando-se em seu corpo. Já Amelie, trêmula dos pés à cabeça, deixava os olhos viajarem no corpo desnudo de sua rival; as auréolas escurecidas, o corpo retinto sendo iluminado pela luz da lua, o colo macio. Desgostosa, ela sussurrou:
— Eu realmente... realmente... odeio a senhorita. Odeio-a tanto... tanto...
— Lady D'Montfort. — Delilah a silenciou e se aproximou, face à face, respiração com respiração, raiva e vontade compartilhadas. Não poderia mais fugir do que o seu coração e mente havia escondido desde que a viu pela primeira vez. — A senhorita fica muito melhor calada. E de preferência, com a boca colada na minha.
Findando a distância, Delilah a surpreendeu com uma beijo iniciado pela turbulência em seu coração. A minutos atrás, estava atracada com Lady Amelie e agora, estava atracada de uma forma impensada, mas que muito lhe apreciava. Amelie era macia, contagiante, e hipnótica. Apesar de sua urgência, a deu chance para escapar, para fugir de um possível erro.
Mas Amelie não fugiu.
Com os olhos abertos e o coração saindo pela boca, Amelie sentiu o calor dos lábios de Delilah contra os seus. Recebeu aquele beijo com choque, é claro, mas para sua surpresa e espanto, algo em seu corpo recebeu aquele beijo com aprovação. Tomada pela vontade, fechou os olhos. Que a Deusa e a Amelie racional do futuro a perdoassem, mas ela queria aquilo. Ah, como ela queria.
Delilah a puxou para perto, disposta a cessar qualquer distância que a impedisse de senti-la. Tocou-a em sua pele quente, apesar da fria água que as abrigavam, e deslizou os dedos pela carne, apertando. Encaixou o beijo, recolocando os lábios de Amelie no eixo. Aquele era o primeiro beijo da dama, era natural que estivesse perdida.
Pediu licença com a sua língua, sendo prontamente liberada para explorar. Amelie suspirava entre os beijos, sentindo os toques atrevidos da outra. Deuses, como aquilo era bom.
Delilah sentia-se degustar um fruto proibido. Suculenta, a boca de Amelie a chamava e impedia de se afastar. O jeito que a dama consumia a sua boca a deixava insana, ao ponto de se desesperar apenas com a possibilidade de nunca mais provar aquele sabor. Delilah a queria. A queria por inteiro.
Desceu os lábios pela pele alva da dama, de onde arrancou suspiros que ela muito gostou de ouvir. A puxou pela cintura, encaixando uma das coxas da dama em seu quadril despido. Tal ato a fez suspirar mais audivelmente, a fazendo sorrir de modo ladino.
— Pela Deusa, Lady Westville, o que estamos fazendo? — Perguntava Amelie, torpe.
— Shhh... Caladinha, esqueceu? — Delilah a apertou na coxa, fazendo-a choramingar com a pequena fricção causada pelo ato.
Seria loucura dizer que cada centímetro do corpo de Amelie não sentia aquilo. Ela estava elétrica, ensandecida, como se um milhão de fogos de artifício tivessem se acendido dentro de si ao mesmo tempo. Estava pegajosa, líquida, e não atribuía isso à água.
Delilah encontrava-se na mesma situação. Sentia o ventre queimar em uma vontade avassaladora. Seu corpo doía em partes específicas, gritando para que fossem libertas de tal sensação. Clamavam por outra, oposta, muito oposta a dor.
Voltou a beijá-la enquanto a explorava com os dedos. Com a outra mão, adentrou na ondulação do cabelo ruivo, segurando-lhe pela nuca, ora passando as unhas curtas pela pele, causando-lhe sensações. Amelie se esfregava, grunhia, pedia, beijava, a amava. E Delilah estava disposta a entregar-lhe todas as sensações possíveis.
Até o momento em que um corvo, atrapalhando o momento, avisou a dama desejosa de sua loucura na forma do desanuviar de sua mente. Amelie afastou-se abruptamente, acordando do transe traiçoeiro que a colocou naquela situação.
— Eu... eu... O que a senhorita fez comigo!? — Disse Amelie, cambaleando para fora da água. Zonza, estranhamente dolorida e úmida, a dama olhava para baixo, encarando os sinais explícitos do seu corpo demarcado pelo tecido da chemise. — Isso... nós...
— Eu não fiz isso sozinha. — Delilah cuspiu as palavras, se odiando por ter dado voz aos seus pensamentos insanos. Havia beijado Amelie e agora estava... a ver navios, úmida e querendo mais.
— É claro que fez! — Amelie riu sozinha. — É pra humilhar-me ainda mais? Não, não diga nada! Esquecerei que tal vulgaridade aconteceu. Ordeno que faça o mesmo.
— "Ordena?" Não sigo as suas ordens, nobrezinha. — Delilah sorriu irônica, deixando a água. Notou o olhar secante de Amelie, que não estava tão distante de suas vontades.
— Pois deveria, filhotinha de Revolucionários. — Amelie sorriu de volta, explicitando seu desprazer. — Se ficar em meu caminho, farei tudo para lhe derrubar. Juro-lhe que faço.
E batendo os pés, Amelie deixou-a sob a luz da lua, úmida, e com a cabeça repleta de pensamentos que envolviam aquela ruiva mimada e absolutamente enlouquecedora.
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