Capítulo 1

"Há quem diga que os ventos trazem boas novas para a temporada de 1826. Mas de certo, a maior delas gira em torno dos altos pilares de Kreonellf, residência do Príncipe - e futuro Governante - Killian Whitenwright.

Os pássaros que cantam em minha janela me dizem que neste ano, o jovem Príncipe tomará uma das notáveis jovens de nosso próspero Reino como sua esposa - e futura Rainha, seja feita a vontade da Deusa -.

Na mesma janela em que ouço tão prestimosas notícias, noto os preparativos para os anos de nosso bom Rei. Acredite, fiel leitora, que tais animais juram-me que Alteza terá a sua escolhida na comemoração de seu pai?

Ainda não sou capaz de dizer-lhes quais direções estes ventos irão tomar, no entanto, uma coisa eu lhes asseguro: Nos próximos dias, Terithia acompanhará a evolução dos lilases, e desabrochará.

Portanto, minha fiel leitora, aperte o seu espartilho e ponha o seu mais vistoso vestido de baile. Pelas bênçãos da Deusa, a temporada começará."

Crônicas de uma Lady Bem-Aventurada, edição 172.

🜲 🜲 🜲


Delilah observava o quadro recém colocado no centro da parede florida. Apesar da pintura apenas representar o momento, a jovem revivia o dia em que aquele quadro foi pintado, como se nem um dia a mais tivesse se passado após este. Na ocasião, sua mãe, representada com uma expressão triunfante, estava às vésperas de puxar os cabelos com as traquinagens dos gêmeos, incapazes de cessar os impulsos da idade.

Seu pai, o calmo senhor Westville, tentava acalmar em vão a esposa, que alegava a falta de pulso firme deste com as crianças. Com os olhos, Delilah tentava transmitir as desculpas que os seus lábios eram incapazes de proferir ao pintor, que certamente teria dezenas de quadros de famílias bem afortunadas para ilustrar, e pouco tempo tinha para tais destemperos familiares.

Com notável tempo, os gêmeos Lidia e Rique se colocaram ao lado dos pais, sorridentes. Agradecendo a Deusa pela Graça alcançada, Austina se colocou ao lado do marido, e o resultado estava na altura dos olhos da filha mais velha. Delilah só deixou o passado em seu lugar de direito quando, exibindo o triunfo habitual, Austina Westville descia as escadas, com o jornaleco diário em mãos.

—Pela Deusa! Acabei de saber que Príncipe Killian está em vias de se casar. Delilah, minha filha, é a sua chance!

— Delilah, uma Princesa? — Do outro lado da sala de descanso, Garon apertava os olhos, cético. — Crê nisso, Austina?

— Oras, e por quê não haveria de ser? Eu, se em idade adequada, não pensaria em coisa alguma que não fosse essa notícia.

— Vive infeliz ao meu lado?

— Pela Deusa, homem, não! — Austina se aproximava do marido, trazendo nos dedos um carinho costumeiro aos casais. — Vivo feliz ao seu lado e com os nossos filhos. Não tenho do quê me queixar.

— Se a mana Delilah se tornar uma princesa, seremos donos do Castelo? Eles nos deixarão ter um cachorro?

— Que ideia torta, Rique! — Entrando na conversa, Lidia tomava para si a compreensão do assunto em questão. — Quando Lila for a princesa, serei a donzela mais cortejada do Reino. E terei o que eu quiser.

A conversa prosseguiu até o momento em que todos os participantes já não tinham mais argumentos para defenderem as suas observações. E pela primeira vez desde o início da prosa, a opinião da interessada se tornou digna de ser ouvida.

— O que poderia eu dizer? Não tenho tais aspirações.

— Ora, Delilah! O destino cabe a Deusa decidir. E se esse for o seu, minha querida...

— Então eu farei questão de rezar para que Ela desconsidere.

— Tais brincadeiras ainda voltam um dia para ti! — Austina avisou, com severidade na voz. — E a mala? Não vê que já estamos atrasadas?

— Se a senhora parasse de dialogar tanto sobre Príncipes, Princesas e Castelos, veria que já estão devidamente preparadas.

— E o que estamos esperando? Não temos tempo, depressa, depressa!

Carregando toda a ansiedade que uma mãe em época de apresentar a filha mais velha para a sociedade terithiana possui, Austina andava de um lado para o outro, apressando a jovem que desviava um último olhar para a pintura. Em sua cintura, Lidia se agarrava, com os olhos castanho-escuro portadores de dúvidas e imaginações.

— Promete me escrever? E voltar aos fins de semana?

— Prometo.

— Promete que vai demorar tempo o bastante? E que volta para levar Lídia?

— Rique, seu chato! Não terá a mamãe só para você!

Apartando a crescente discussão dos irmãos, Delilah se colocava à frente dos dois, usando os dedos para segurar os queixos infantis e os elevar na altura dos olhos dela.

— Prometem que serão mais unidos? E que cuidarão da mamãe e do papai em minha ausência?

— Ora, claro que cuidarei! Sou o homem da casa.

— Não é dono nem dos seus calções, Rique!

Rique correu para os braços da mãe, e Delilah encarou Lidia, vendo que todas as suas palavras haviam sido em vão. Ser a irmã mais velha daqueles gêmeos a fazia expectar aquela cena muitas e muitas vezes. Normalmente, ela era a responsável por fazer o papel de juíza de paz. Agora que estaria longe, que a Deusa zelasse pela relação entre os irmãos.

A despedida com o pai seguiu de maneira rápida, mas não isenta de preocupações. Delilah e Garon eram inseparáveis, e isso era algo que a jovem nunca confessaria em voz alta, mas lhe estimava mais que a mãe. Com os olhos cheios de lágrimas, o senhor Westville dedilhava os traços da filha, desejando-lhe sorte.

— Nunca se esqueça, minha filha, que...

— Podem roubar tudo de nós, menos os sonhos que guardamos em nosso interior. Sei disso, pai.

— Que a Deusa guie a sua jornada, minha filha. E que seja feito o que for o melhor para ti.

Austina e Delilah atravessaram os portões da Residência HanWhock, deixando para trás as recentes conquistas de sua família. Radiante, a matriarca Westville erguia a mão devidamente enluvada, esperando que o lacaio a conduzisse até a carruagem. Quando o homem de estatura baixa esperou por Delilah, ela o dispensou, sentando-se com ajuda própria.

Nem bem ficaram 10 minutos dentro da carruagem, e Austina, espiando a todo momento pela janela, ordenou que os condutores parassem. Num ato que foi recebido com extrema estranheza por sua filha, as duas deixaram o transporte, prosseguindo o restante do percurso a pé.

— Nem bem chegamos à metade do caminho, e já arrependo-me de minha decisão. Como minhas juntas doem! E este clima... Sinto-me pinicar dentro de roupas tão quentes.

— Deveríamos ter continuado na carruagem, mãe.

— E ficar escondidas dentro de uma coisinha tão pequena!? Não, não, precisa ser vista, querida. Olhe, lá vem homens de pouca relevância. Vamos indo.

Antes que Delilah perguntasse a identidade de tais homens, os mencionados chegaram as duas transeuntes, cumprimentando-as.

— Que as senhoras estejam tendo um bom dia. Como vai o senhor Westville?

— Transbordando saúde, pela Graça da Deusa. Delilah, não estamos atrasadas?

— Peço à senhora que transmita um recado meu para o senhor seu marido. A Comunidade sente falta de suas ótimas colocações.

— Sim, sim, hei de transmitir. Agora, com toda a licença...

Austina puxou Delilah para longe daqueles senhores, impedindo a jovem de acenar em modos de educação. Longe o bastante, a mãe expressava o desprazer em encontrar aquelas figuras.

— Quando eu tento afastar o seu pai desses levantes sem sentido... Aquele senhor não dispõe de modos? De certo percebeu que não havia interesse naquela conversação...

— E a senhora discorda que as lutas que eles travam são injustas? Os Revolucionários não são um levante sem sentido, mãe. A senhora sabe disso tão bem quanto eu.

— Ora, não sei! E já tenho dito que não quero o seu pai sendo parte deste motim.

Delilah suspirou, sabendo que era uma batalha perdida o entendimento de sua mãe sobre as causas dos Revolucionários, grupo que prega a igualdade social entre as estratificações sociais. Isso também lhe perturbava, além das preocupações com os irmãos. Que o seu pai esquecesse os motivos para terem chegado onde estavam atualmente.

Quando estavam próximas da feira livre, Delilah cumprimentou a representante da barraca de frutas, acenando cordialmente para a mulher que antes dividia a banca com o seu pai. Percebendo a aproximação, Austina discordou, puxando a filha para o outro lado.

— Ora se já viu coisa parecida, Delilah! Uma nobre cumprimentando uma feirante?

— Uma nobre? Feirante? O quê acha que somos, Austina?

— Nobres com o mais perfeito entendimento. E nobres não devem ter tais liberdades como o erro que acabou de cometer, Delilah.

— Não somos como essas senhoras que caminham para cima e para baixo, tendo como único motivo para as caminhadas o prazer de andejar. Se a senhora não lembra do passado, mãe... Não seguirei o seu caminho, negando-o.

— Não esqueço de onde viemos, Delilah. Mas mudamos. Hoje, somos parte desse lado da cidade.

— Se a senhora deseja pensar assim... Mas independente do que eu esteja vestido, ou em qual cama esteja dormindo, não esquecerei de onde vim. E qual caminho tenho que tomar para que eu o honre.

Austina balançou a cabeça, pensando que tal aspiração rebelde provinha dos anos de juventude, e tão bem ela fez ao encaminhar a filha ao destino que chegavam agora. Os portões da conservada residência foram abertos, trazendo uma lufada de ar para os rostos das duas mulheres.

— Por favor, anuncie a chegada da senhora Westville e sua adorável filha. Não esqueça do adorável.

— Como desejar, senhora.

Austina parecia parte dos arbustos baixos, caminhando entre eles com o busto inflado. Ao seu lado, Delilah olhava para os detalhes de sua nova residência, olhando uma última vez para trás, a tempo de presenciar o fechamento dos portões, simbolizando o fim de sua liberdade. Aceitou ir para o Instituto Lefrance, sim, mas não queria o destino que sua mãe lhe impunha. Delilah queria mais, e seus desejos seguiam para mais longe do que os ensinos conservadores de Lady Lefrance poderiam oferecer.

— Por favor, senhoras, por aqui. Lady Lefrance as espera na saleta de reuniões.

— Delilah... Comporte-se. — Advertiu Austina.

Olhando no fundo dos olhos de sua mãe, Delilah viu as expectativas irradiarem dos olhos da senhora. Suspirando, respondeu.

— Isso é um pedido ou uma ordem, Lady Westville?

As duas entraram no espaço reservado onde, atrás de uma mesa com detalhes espiralados, Lady Zoeh Lefrance as encarava com um olhar de rapina e expressão de quem as conhecia antes mesmo de pisarem em suas terras. A mulher era conhecida por suas leituras justas, e divisões precisas entre donzela com bons e desastrosos futuros. Com Lady Delilah Westville, não seria diferente.

— Lady Austina e... Delilah Westville. O que as trazem ao meu Instituto!?

— As ótimas recomendações. Ouço que a senhora é muito justa, e que as jovens que passam por seus cuidados vivem de maneira confortável.

— Não nego os boatos. — Zoeh afirmou. — Mas o povo tende a me santificar. Não sou capaz de mudar uma jovem que não deseja ser mudada. Mas uma vez em meu Instituto, assumirei que deseja seguir as minhas observações.

— Nesse ponto a senhora fique despreocupada. Minha Delilah é um doce de menina, muito boazinha. Quase não dá trabalho!

— Vejo bem. — Zoeh sorriu, analisando a menina. — Me diga, minha jovem, é de seu desejo estar aqui?

— Não poderia sonhar com outra coisa.

— Se é o que diz. — Zoeh alcançou uma pena, molhando-a com tinta preta. — Como bem sabe, apenas jovens justíssimas habitam em minha casa. Não posso manchar a minha imagem, e a honra das minhas meninas, acolhendo jovens desviadas do que é considerado o dever de uma dama.

Delilah segurou a respiração. Ela sabia o que viria a seguir.

— Por isso, é a minha obrigação perguntar... Não se acanhe, nem ache tal pergunta estranha: Mas preciso perguntar-lhe de sua mocidade.

— E com isso a senhora deseja confirmar que eu sou...?

Moça. — Zoeh disse sem rodeios. — Você ainda é uma donzela, Delilah?

Dessa vez, foi Austina quem segurou a respiração. Sabendo do temperamento da filha, aquela pergunta acertava um ponto cruel daquele campo minado.

— É curioso. — Delilah iniciou a sua colocação, cruzando os braços. — Que tal pergunta só seja dirigida a nós, moças. Acaso terei eu a oportunidade de repetir tal pergunta ao rapaz que me cortejar? Sim, pois temos consciência das escapulidas dos rapazes, que são alheios à lógica da pureza e divertem-se em bordéis e casas de libertinagens.

Zoeh Lefrance estava petrificada. Os nervos da mulher pareciam ter paralisado no tremular de seus olhos e no abrir e fechar dos lábios secos. Austina se adiantou, se colocando à frente dos modos travessos de Delilah e da consideração negativa de Zoeh, apaziguando a situação.

— Delilah, querida! Esse bom humor afastará os rapazes alheios a tamanho refinamento de palavras. O quê minha querida filha quis dizer, Lady Zoeh, e que tais direitos são fundamentais às moças e aos rapazes. Não concorda?

— Tais palavras nunca foram colocadas dessa maneira, mas posso entender. No entanto, os rapazes dispõem de necessidades que são nulas para nós, senhoras.

— Então é compreensível que um homem fuja ao seu papel de marido para divertir-se em outro lugar que não seja ao lado de sua esposa?

— Delilah, minha filha, por favor...

— Eu só preciso entender, mamãe. Que casar significa abdicar de direitos e não me opor ao fato da moral e dos bons costumes só serem válidas para mim.

Zoeh tossiu, percebendo naquele momento a mancha que se alastrava pelo papel. Pondo a pena novamente em seu lugar de origem, a mulher passava os olhos vivazes pelas feições da garota que a rebatia.

— Então posso presumir que cumpre os requisitos para estar sob meus cuidados. E que terei uma ótima companhia para rebater o papel de uma esposa em seu lar.

— Se isso significar que não serei persuadida a pensar de maneira igual a senhora...

— Delilah!

— Alguns rapazes apreciam uma jovem de ideias tão precisas. Ao mesmo tempo que tais pensamentos são prescritos como uma maldição, em alguns poucos casos, são uma benção. Rezarei a Deusa para que este seja o seu caso, querida.

— Fico muito grata por isso, senhora. — Austina tomou as palavras de Delilah, que afundou no estofado, em silêncio. Se sentia tonta e apenas desejava que toda aquela conversa tivesse o seu aguardado fim, para que pudesse organizar as ideias.

Os trâmites ocorreram sem a interferência de Delilah que, cansada de lutar, deixou que a sua mãe tomasse as rédeas da situação. Em todo o interrogatório, por que era dessa forma que Delilah julgava o processo de inscrição, a jovem sentia-se como uma das iguarias que eram vendidas na feira livre. Cada uma das perguntas feita por Lady Lefrance deixava-a nauseada, a colocando como nada além de uma cordeira prestes a ser laçada. Apertando os punhos, Delilah recusava-se a deixar que sua vida fosse decidida por outra pessoa que não fosse ela própria. Ela só não sabia como dizer isso para a mulher ao seu lado, que via naquele Instituto a oportunidade para a filha ascender.

Devidamente matriculada, Delilah já poderia chamar aquela dependência de lar. Despedindo-se de sua mãe, a jovem segurou as lágrimas, que desceriam em vão, escutou as observações de Austina, prometeu e escutou desejos alçados aos céus. Finalizada a despedida, Delilah deixou a mulher de mãos entrelaçadas para trás, pronta para se mesclar as paredes imponentes de seu novo lar.

— Lady Lefrance. — A menina chamou, seguindo a mulher de passos firmes. — Se importa de me levar até aos meus aposentos? Sinto-me indisposta.

— Uma mudança tão radical deixa os ânimos juvenis desajustados, eu compreendo. A levarei até o seu quarto.

Zoeh cumpriu o que disse, encaminhando a menina para o seu lugar de descanso. Portando suas malas e um desejo crescente de voltar para o seu verdadeiro lar, Delilah agradeceu à mulher que seria conhecida como a sua tutora, e assim que esta se ausentou, fechando a porta atrás de si, a jovem suspirou, sentindo um aroma desconhecido de um ambiente que não era seu.

— Ainda não sei como, mas tenho que sair daqui. Não posso ficar por tanto tempo e acabar... casada.

— Desculpa, milady, atrapalho? — Atrás de si, uma jovem em vestes de criada anunciava a sua presença, e Delilah estava tão esgotada que não ouviu o clique da porta, se assustando.

Delilah analisou a jovem em questão. Com as mãos à frente do corpo, a jovem parcialmente curvada olhava para baixo, esperando por ordens.

Ela não deixou de reparar em suas mãos. Cheias de incontáveis calos, ásperas e de aparência ressecada, a jovem possuía nas mãos os anos de trabalho pesado. Suspirando, Delilah estava prestes a dizer que queria ficar sozinha, quando a jovem retornou a falar.

— Peço perdão pela minha falta de decoro! Me chamo Rosa Dupevere e fui encaminhada para servir a milady. Posso ser útil em alguma coisa?

Delilah pensou, pensou e pensou. Não poderia mandar Rosa embora e a levar para o caminho de uma bronca severa, então, que a jovem ficasse em sua companhia. No entanto, não do jeito que ela esperava, fato transparecido em sua expressão com as próximas palavras de Delilah, que sorria, saindo do amargo da situação.

— Sim, pode. Pode se sentar e me contar a sua história?

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