Capítulo 5 - Saraiva

Estava voltando para casa, as ruas de Bercone eram estreitas e geralmente perigosas, eu me mantinha atenta, não era comum ver Venandis por ali, mas como minha mãe costumava dizer, antes estar pronto e não precisar usar magia, que não estar e precisar.

Magia não era como um rio que nunca seca, nós precisávamos meditar, reunir magia, então quando necessário, usar. Pâmela era louca, nunca entenderia a razão pela qual a feiticeira ainda permanecia no reino humano.

Os humanos nos caçavam desde que o deus do fogo incendiou toda Ordal, mas eles nunca acreditaram. Preferem pensar que nós os matamos, eu não vi a destruição, mas foi há quase vinte anos, pouco depois, enquanto os novis ajudavam através de sua magia, a reconstruir os reinos, curar os humanos feridos, tudo teve início.

O maldito rei Walys ordenou que os maiores estudiosos dos novis fossem reunidos em uma de suas fortalezas, lá eles começaram a pesquisar formas de nos combater, os novis mais velhos trabalhavam na reconstrução dos reinos, distraídos demais para se ater ao perigo ao qual estavam expostos.

Os primeiros Venandis foram homens e mulheres revoltados conosco, alguns ouso dizer que invejosos. Os feiticeiros, orcs, elfos e as criaturas das florestas, conseguiam coisas que os humanos não fariam em seus mais remotos sonhos.

As diferenças nos separaram, o medo do diferente, fez com que eles se voltassem contra nós. Abri a porta da pequena habitação que dividia com Pâmela, ela estava em frente a um caldeirão, cozinhando algo que tinha um cheiro delicioso.

— Por favor me diga que isto é o nosso jantar e não mais um feitiço. — Pedi.

A feiticeira riu enquanto mexia o conteúdo e provava um pouco.

— Saraiva, estou cansada demais para até mesmo acender uma vela com magia. Então sim, este é o nosso jantar.

— O que fez o dia todo?

— O que mais eu faria? Curei humanos que não conseguiram cura com os seus semelhantes. — A encarei preocupada.

— Você não tem medo de que algum desses humanos a denuncie? Feiticeiros são valiosíssimos. — Afirmei.

— Quão entediante seria minha vida sem um pouco de adrenalina? — A mulher riu. — E mais, sem mim aqui, quem cozinharia para você? Como cozinheira você é a feiticeira perfeita.

Eu ri da verdade por trás daquelas palavras, retirei o manto e as luvas, meus cabelos prateados estavam trançados, desfazendo-se do penteado com o qual passei o dia inteiro.

— Como foi seu dia? — Ela perguntou.

— A lady a quem sirvo simplesmente resolveu que quer estudar sobre os novis. — Bufei frustrada.

Pâmela me ofereceu uma caneca, eu não sabia qual a bebida que estava ali, a feiticeira além de um excelente talento para curandeira também tinha talento para bebidas. Ela conseguia maravilhas e eu aprendi há muito enquanto estudava, a não questionar o conteúdo dos trabalhos de meus semelhantes, nós feiticeiros costumávamos usar coisas em nossos trabalhos que assombrariam os humanos.

Após beber quase metade da caneca, Pâmela me encarou preocupada.

— Não pode continuar lá se ela começar a estudar. — Alertou, declarando o óbvio.

— Eu sei. — Bebi o resto do conteúdo antes de sentir a alegria que só as bebidas de Pâmela me proporcionavam.

Minha amiga serviu duas tigelas de cozido e sentou-se à minha frente para comer, peguei uma colher e enchendo-a com o conteúdo do prato, levei-o ao nariz e cheirei.

— Não seja tão absurda! — Ordenou rindo.

— Minha querida amiga, eu não confiaria nem em comer algo que minha mãe preparou antes de saber exatamente o conteúdo. — Pâmela engasgou-se com o ensopado.

— Sua mãe é uma feiticeira habilidosa, é realmente difícil confiar completamente.

Há algum tempo eu não a via, imaginei o que Mariana estaria fazendo naquele momento, aquela feiticeira me ensinara muito, me treinara para ser imbatível e passar despercebida, eu precisava morar em Bercone, então precisava ser vista como humana.

A aparência de um feiticeiro nunca é facilmente disfarçada, somos diferentes demais dos humanos, os cabelos com cores incomuns, assim como nossos olhos. Eram a nossa principal marca, além da marca de feiticeiro, que pode estar em qualquer parte do corpo.

Nós comemos enquanto Pâmela narrava o estado pútrido da perna do paciente do dia, ela estava quase me fazendo vomitar toda bebida e o pouco ensopado que estavam em meu estômago, eu não queria ouvir, contudo, sabia que ela não me deixaria em paz se eu reclamasse.

— O que você tem? — Ela me perguntou, ergui os olhos.

— Estou com uma sensação ruim. — Alertei, olhei pela pequena janela, o tempo fechara-se, logo choveria.

— Alguma coisa com as barreiras?

— Não... Ao menos ainda não, mas sempre que essa sensação vem, é um mau sinal.

— Você é louca. — Pâmela sussurrou. — Você foi testada para vidência e todos sabem que este é um dom que Deborah não te deu. Apenas coma, acho que você bebeu demais.

Encarei a feiticeira, me perguntando se Pâmela estava tentando convencer-me ou se estava o fazendo consigo mesma. Assenti sem querer levar adiante aquela discussão e continuei a comer do ensopado.

— Às vezes, eu queria não ser ligada as barreiras, não queria ter de sentir quando tem problemas. Dez feiticeiras foram responsáveis por elas contando comigo, por que eu tenho que ficar com a pior parte do trabalho?

— Está exagerando, cada feiticeira que participou daquele ritual, para construir as barreiras, têm uma missão igual senão pior que a sua.

— Todas vivem em Arendia. — Falei.

— Não gosta de viver aqui comigo?

— Não comece. — Pedi. — Sabe que sinto falta da minha mãe.

— Eu sei... Mas tenhamos fé, que logo não precisaremos mais nos preocupar com os Venandi. Em breve poderemos viver em paz.

— Sua fé me admira.

— E a sua incredulidade me deixa espantada. A destruição de um povo é a sua própria incredulidade, minha jovem amiga.

Uma vertigem me tomou a visão, segurei a borda da mesa, tentando manter-me firme, sem que minha mente vagasse, era difícil trazer-me de volta quando isso acontecia. Minha mãe era a única que conseguia.

— O que foi? — Ouvi a voz preocupada de Pâmela.

— A barreira... — Murmurei conforme minha visão voltava a se ajustar.

— Qual delas? — Ela começou a elevar sua voz.

Meus olhos encontraram os dela, não havia qualquer resposta nos meus, pois eu não sabia e nem tinha como saber. Eu apenas sentia.

— Preciso conversar com a minha mãe. — Avisei.

Corri para o meu quarto e retirei o lençol que cobria meu espelho, fazendo o ritual, logo eu conseguia ver Mariana sentada em uma mesa de reuniões.

— MÃE! — Chamei com a voz grave.

— Saraiva? — Ela questionou enquanto olhava para o espelho perto da sala, as feiticeiras me encararam através do vidro.

— Há algo errado com uma das barreiras. Preparem-se para o feitiço de reconstrução. — Avisei.

— Qual das barreiras? — Questionou uma das anciãs.

— Eu não sei... Estou indo para o Deserto da Morte, assim que verificar a barreira dos orcs, estarei indo a Belizath, nos encontramos quando eu chegar em Arendia. — Avisei.

— E se o problema for apenas no Deserto da Morte? Não seria a primeira vez que os orcs causam problemas.

— As barreiras têm uma sintonia magica, se uma delas ruir, todas irão! — Minha mãe explicou. — Faça o que precisa fazer, mas tome cuidado. — Alertou-me.

— Eu sempre tomo, aviso quando chegar ao Deserto, estejam prontas para o feitiço. — Pedi.

Encerrando a comunicação com minha mãe, voltei ao meu armário, reunindo alguns pertences, logo eu precisaria partir, não havia muito a fazer antes disso, Pâmela já estava acostumada a lidar com a minha ausência, ela até mesmo mandava ao meu trabalho notícias de que eu estava doente.

Caminhei para fora da casa e fui até o quintal dos fundos, apanhando o único cavalo. Minha amiga sempre se virava sem ele e eu nem imaginava como fazia.

— Tome cuidado, lembre-se que para chegar ao Deserto da Morte, você tem que passar por Hunter City.

— Não tenho como esquecer-me disso. — Avisei.

— Adeus. — Assenti e comecei a cavalgar rápido.

Era difícil cavalgar pelas ruas de Bercone, a cidade era um caos de bares, pessoas bêbadas e bordeis. Assim que eu atravessei a área pobre da cidade a cavalgada tornou-se mais simples.

Minha pressa, junto a impaciência de viajar, sempre me fazia imaginar como lidar com o rei orc. Eu odiava aquele ser, o monstro era terrivelmente desonesto, os orcs sempre causavam problemas a barreira, sempre acusavam outros povos, matavam humanos inocentes sem razão além do seu próprio prazer.

Ele nunca escondeu seu desprezo por mim, bem como por qualquer outra criatura que pisasse em suas terras. Por muitos anos questionei-me a razão pela qual as feiticeiras e os elfos concordaram em proteger os orcs, nenhuma das raças tinha qualquer apreço por eles. Sempre causaram batalhas desnecessárias e mesmo com todos os problemas ainda o faziam.

Contudo entendia naquele instante, os humanos eram os inimigos, eles já nos odiavam por sermos diferentes, nós não precisávamos também colocar os orcs contra nós. O meu acordo com eles, os mantinha longe de qualquer outro novi e limitava seus ataques aos humanos, o que dava a nossos inimigos uma ocupação e menos ódio direcionado a nós.

Afastando os problemas de minha mente, continuei a cavalgar, mesmo com a chuva encharcando minhas roupas e a lama atrasando os passos do cavalo. O manto não me aquecia e eu sentia o calor deixando o meu corpo um pouco mais a cada segundo.

Repensei diversas vezes que aquilo era necessário, um pequeno sacrifício para proteger todos os que abriram mão de tanto, todos que lutaram muito para recomeçar longe dos humanos. Para que ao menos Ordal fosse um pequeno pedaço do que Deborah quis que fosse.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top