Cap 92. Apenas amigos
Acordei cerca de cinco horas após ter me jogado na cama sem nenhuma intenção de dormir. Mas, talvez, ainda estivesse dormindo, se o vento frio vindo de fora não me tivesse congelado ao cair da noite. Atraída pela luminosidade externa da mansão e pelo barulho do mar, cheguei até a varanda, para espiar a maré alta e escura quebrar suas ondas revoltas nas pedras coladas ao deque. De volta ao quarto, acendi o abajur ao lado da cama e coloquei a mochila sobre a escrivaninha. Meio perdida e preguiçosa pós-despertar, corri as mãos pelos braços arrepiados e decidi que um banho quente antes de deixar o quarto me faria muito bem. Nada como sentir-me renovada antes de voltar a encarar Taylor e sua frieza, com a qual ele tinha se revestido desde que batera à minha porta no West Wind pela manhã.
Após o banho, vesti o meu conjunto esportivo de plush verde-água e, depois de borrifar perfume e arrumar meu cabelo em um rabo de cavalo, calcei os chinelos e desci.
— Ah! Você está aí! — exclamei ao encontrar Taylor no pátio, depois de rodar pelos cômodos da casa que ainda não conhecida muito bem.
— Aqui. — Ele se ajeitou no sofá em "U", que devia ter uns dez lugares, sentando-se direito e erguendo o braço para acenar.
Abaixei-me para lhe dar um beijo na bochecha e sentei-me junto a ele, colocando sobre o meu colo a sua caderneta e a caneta que estavam sobre o estofado.
— Escrevendo? — Abri a caderneta na página marcada com a fita de tecido.
— Tentando. — Taylor, com muito tato, tirou seu pertence de minhas mãos, colocando-o do outro lado. — Como foi o descanso? Gostou da cama?
— Nossa, e como! Apaguei. Acho que nunca dormi em um colchão tão bom. — Olhei em volta, reparando melhor naquele pátio externo arborizado. Na frente do sofá duas poltronas com descansos para os pés compunham o espaço, e, logo atrás, uma mesa oval com seis cadeiras. Do outro lado, logo abaixo da casa de hóspedes, uma banheira de hidromassagem. — Que cantinho agradável... Ficou por aqui esse tempo todo?
— Dei um mergulho no mar, fiz um lanche, tomei um banho e vim para cá, usar o tempo para compor. Mas, como disse, estou na tentativa. Ainda não saiu nada muito bom.
— Posso ver? — pedi, na cara dura, mesmo desconfiada de que a resposta seria negativa. — Aposto que está ótimo, como tudo que faz, e que você está sendo muito crítico.
— Não estou sendo muito crítico... Apenas prefiro mostrar quando estiver pronto.
Suas músicas eram a confissão do que continha sua alma, seus pensamentos e sentimentos mais obscuros. Ficara claro que não apenas a letra não estava pronta; ele é quem não se sentia preparado para se abrir. Levantei as duas mãos na altura do rosto, rendendo-me e sorrindo, sem graça.
— Tudo bem, eu espero. — Depois de um tempo ouvindo a sinfonia dos insetos e as ondas do mar quebrando ao longe, achei que já havia esperado o suficiente. Impulsionada pela minha curiosidade, questionei-o: — O que você quer tanto esconder?
— Uh? — Franziu o rosto para mim, notavelmente confuso.
Minha abordagem poderia ter sido menos direta e em um momento mais oportuno, mas já não aguentava mais ver Taylor tão distante e pesado daquele jeito. Talvez uma girada na corda atrás de suas costas, como um boneco que precisa de estímulo, fizesse-o falar.
— O que você escreveu aí que não quer me mostrar? — Estiquei o rosto na direção da caderneta. — O que você esconde aí dentro de sua cabeça e de seu coração? Sou sua amiga, Tay, e quero que saiba que estou disposta a lhe ouvir. — Segurei sua mão, apoiada sobre a perna. — Foi muito bom poder contar com seus ouvidos e carinho quando precisei desabafar sobre o Nathan, ainda que muito estranho falar dele justamente para você... Foi bom ter alguém lá por mim, sabe?
— Ah, não foi nada. — Deu de ombros. — Estou e estarei sempre aqui por você. Mesmo quando tudo em volta for caos.
— Também estou aqui por você. Faço questão de deixar isso bem claro, porque não quero que se afogue em seu caos sozinho. Estou lhe esticando minha mão, pronta para ouvir e opinar sobre qualquer assunto. Posso muito bem deixar os meus problemas de lado e usar esse espacinho para cuidar dos seus.
— Eu acho que não... Desta vez terei que resolver sozinho, e não tem nenhum problema nisso. Aproveite os próximos dias para cuidar de você.
— Hum. — Mordi a parte interna das bochechas. — Posso tentar aproveitar e cuidar de mim, mas, no final das contas, não conseguirei ser indiferente a você... Nem à maneira estranha como está se comportando.
— Maneira estranha? — Ele pareceu pensar, virando ligeiramente a cabeça. — Hum. Talvez eu esteja um pouco introspectivo.
— Um pouco?
— Bastante. — Riu, parecendo um pouco sem graça, soltando o ar no final. — Mas não quero que isso afete ninguém, muito menos você. Foi pensando nisso que programei vir para cá desacompanhado.
— Eu posso ir embora — rebati instantaneamente, ofendida, ainda que consciente de que eu tinha me oferecido para viajar com ele.
— Não, Belle... Não foi isso que quis dizer.
— Foi exatamente isso que quis dizer. — Puxei minha mão que permanecera sobre a dele. — Eu não devia ter vindo.
— Não é isso. É que... eu já cansei de criar problemas para você. E se a maneira estranha como estou me comportando causa caraminholas em sua cabeça, isso não é nada bom. Não veja como algo ruim eu optar por deixá-la de fora da minha bagunça. Sei que você já tem muita coisa com que lidar e eu só quero protegê-la.
— Bem... Não insistirei mais. — Levantei-me, um pouco chateada com o fato de ele não querer se abrir comigo. Sim, eu tinha muito com o que lidar, porém, fazer com que Taylor se sentisse melhor poderia muito bem ser adicionado à minha lista. — Vou preparar alguma coisa para a gente jantar.
— Pode deixar isso comigo. Farei uma pizza pré-pronta no forno à lenha. — Apontou, com um movimento de cabeça, para a cozinha gourmet do pátio.
— Você poderia me deixar fazer alguma coisa? — Reclamei, com as mãos na cintura, acentuando a minha revolta somente para implicar. — Se não sirvo para o ajudar com seus problemas, ao menos me deixe matar sua fome. Vou preparar a pizza.
— Okay. — Ele sorriu diante do meu chilique. — Faça a nossa pizza. Eu abrirei o vinho.
*****
Durante os vinte minutos que passei na cozinha, esperando a pizza ficar pronta e pensando no quanto desafiadora seria aquela semana, Taylor manteve-se do lado de fora. Ele entrou apenas quando lhe avisei, da porta que dava para o pátio, que o jantar estava servido.
— Escolhi o vinho — falei, quando ele passou por mim na porta, dirigindo-se para a cozinha.
— Ah, foi mal, eu disse que faria isso — desculpou-se, enquanto puxava a cadeira da mesa de jantar para se sentar. — Você está chateada comigo?
— O que acha? — Puxei a cadeira ao seu lado e eu mesma respondi a pergunta: — Um pouco. Não pela garrafa de vinho, mas pelo resto. Mas... tudo bem. Falei que não iria mais insistir para saber os seu segredos e não vou.
Peguei uma fatia da pizza previamente cortada e coloquei em meu prato, servindo outra para ele em seguida. Taylor se encarregou de servir o vinho.
— Teremos seis dias inteiros para, com calma, conversarmos sobre as nossas questões. — Ele apoiou a garrafa sobre a mesa e olhou para mim. — Não pretendo lhe deixar de fora de nada, mas quero esperar o momento certo. Você acabou de sofrer um baque, eu gostaria que digerisse a sua confusão primeiro.
— Não sei quanto tempo levarei para digerir o que aconteceu. Eu e Nathan estávamos separados, mas, para mim, vê-lo com Gigi foi uma traição. Se ele não tivesse me prometido nada, se não tivesse feito aquele discursinho de que me amava, pedindo para que eu o esperasse, ainda assim eu teria ficado chateada... Mas, com o coração cheio de expectativas, foi mil vezes pior.
— E o que pretende fazer?
— Esperar o tempo passar, seja lá quanto for; tentar esquecer, "deixar o vento levar tudo embora" — citei a música que ficara em minha cabeça mais cedo. — Não tenho um plano.
— Ligue para ele. Deixe o ruivo se explicar. Ainda acho que podem se entender.
— De novo isso, Taylor? — Soltei os talheres sobre o prato. — Não vou ligar; nem sei o número de cabeça. Por favor, não insista. Finalmente chegou a hora de eu cuidar de mim.
— Gostaria de poder cuidar de você também... — Taylor confidenciou-me, em uma voz fraca, segurando o meu punho e acariciando o meu antebraço com o polegar. Havia certo pesar em seu tom.
— Você cuida. Cuidou ontem, logo após todo estresse; hoje, quando aceitou me trazer para cá; e agora, do seu jeito torto, empurrando-me de volta para o Nathan, também está tentando fazer isso. Mas, olhe, não adianta; não vou ligar para ele. — Livrei-me da mão que me acariciava ao mexer o braço para pegar os talheres. — Agora vamos comer que pizza fria é muito ruim.
— Não mais do que a minha frieza... Eu sei. — Taylor me deu uma olhadela e depois se concentrou em pegar seus talheres para cortar um pedaço. — Me perdoe por agir assim com você... Estranho. Prometo tentar melhorar.
— Esse seu jeito distante tem a ver, em parte, com aquele beijo que me deu hoje cedo? Porque se tem, bem, não precisa se comportar assim... Não fiquei chateada, nem nada, entendi que foi um impulso de despedida.
Dei um gole no vinho para ver se ajudava a desacelerar o meu coração, após perguntar aquilo de modo direto. O porquê do beijo roubado tinha passado em branco desde que acontecera, mas achei melhor esclarecer.
— É... foi um impulso... errado. — Taylor concordou. — Então já que pedi desculpas pela frieza, perdoe-me pelo beijo também. Foi realmente um beijo de despedida.
— Aqui estamos nós! — Com o estômago dando voltas, sorri, para ver se melhorava o clima. — Não foi uma despedida. Você não se livrou de mim e nem eu de você.
— Acho que, de maneira afetiva, não tem como nos livrarmos um do outro. Nós já tentamos. — Taylor deu um gole curto em seu vinho. — Mas estou mais do que conformado de que não dá para ficarmos juntos como um casal. Não tem mais jeito. Nós dois sabemos disso.
Meneei a cabeça, pensativa, e Taylor virou o rosto para mim, estreitando os olhos. Depois de respirar fundo, aproveitando a onda de honestidade rolando, ele disse:
— Foi mal se pareci insensível ao negar que viesse comigo nesta viagem. Um dos motivos pelo qual hesitei, foi por saber que passaria cada segundo tentando frear o impulso de beijá-la novamente.
Olhei para os lábios estreitos de Taylor, congelados após aquelas últimas palavras, e ondas quebrando no meu estômago levaram-me a crer que eu teria que frear o mesmo impulso. Decidira-me, antes de toda confusão envolvendo Nathan e Gigi, que não dava mais para mim e Taylor como um casal, portanto não mudaria o que planejara. Nem mesmo com o fogo que queimava minha cabeça, descendo pelo restante do corpo, enquanto seus olhos penetrantes me devoravam.
— Amigos! — falei, espontaneamente, colocando mais um pedaço de pizza na boca.
— Uhum. É na base da amizade que nosso envolvimento continuará. E não é de todo ruim... É bom saber que sobrou alguma coisa.
— Alguma coisa boa — completei. — É... É muito bom saber.
Perdi-me no tanto de informação que trocamos naqueles últimos minutos. Em tão pouco tempo, reafirmamos o que havíamos conversado no dia anterior, deixando mais funda a vala que cavamos para impedir que cruzássemos os nossos limites. Não teve brinde selando amizade, nem outro beijo de despedida, mas um acordo visual, profundo e triste, feito em silêncio, de que era aquilo mesmo: apenas amigos.
.......
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