Cap 65. Wishes
Apesar da conversa pesada e reveladora que tivemos após o noivado, depois de eu assegurar a Nathan que daria um jeito de mandar Taylor embora para sempre, nós dois acabamos a noite da maneira que mais gostávamos; enroscados na cama, nos amando até ficar exaustos e cair no sono.
No dia seguinte, Nathan saiu para o consultório e eu fiquei em casa. Para tentar evitar remoer a problemática Taylor durante todo tempo livre que eu teria durante o dia, a primeira coisa que fiz foi rasgar a Boom Beat e jogá-la no lixo, e a segunda foi riscar a bolacha do CD, que acabou indo para o mesmo lixo da revista. Aproveitei para bloquear o número de Taylor no meu celular e assim evitar que ele entrasse em contato. Senti-me um pouco mais leve ao tomar essa atitude, com minha consciência bem menos pesada, e depois do meu exercício de desapego, aproveitei para curtir o sol ameno de quase primavera na área da piscina com a senhora Nancy.
— Bom dia, norinha princesa e futura top model. Dormiu bem? Foram deitar tarde... — Pelo seu risinho, tive quase certeza de que ela tinha escutado, de novo, nossos gemidos na varanda. Que vergonha!
— Tive uma ótima noite, sim, sogrinha. — Entrei na onda dela, respondendo enquanto me recostava na espreguiçadeira ao seu lado. — Como você mesma disse; seu filho é o melhor homem do mundo, tem direito a tudo de melhor. — Esse era o meu jeito de dizer que Nathan merecia o melhor de mim, incluindo o orifício traseiro, que eu havia dado para ele pela segunda vez.
— Edward merece mesmo, e estou certa de que você é o que ele sempre sonhou. Ah, aquele brilho no olhar preenche o meu coração. É tão bom vê-lo realizado. — Ela retirou os óculos escuros e virou o rosto para mim. — Que joia linda ele deu a você, não é mesmo? Deixe-me ver de novo.
Estendi orgulhosa a minha mão para ela, sem me tocar de que a cor roxa dos dentes marcados, sobre as cicatrizes em processo de cura da mordida anterior, chamaria mais atenção do que o anel de diamantes.
— Ui! Meu Deus! O que houve aqui, minha querida? — Sua expressão era um misto de nojo com pavor. — Ah, meu Deus... Não me diga que foi... Não. Não foi o meu filho, não pode ser. Foi ele quem fez isso?
— Não, claro que não. — Puxei a minha mão de volta para junto de mim. — Nathan jamais me machucaria.
— Mas isso não estava aí ontem à noite. Eu vi quando Edward lhe entregou o anel. Pode me dizer, querida, eu preciso saber se ele a estiver machucando. Isso é muito grave.
— Eu o entregaria se tivesse sido ele, mas não foi.
— Às vezes as coisas podem ficar fora de controle, você sabe... na cama. Um tapinha aqui, uma mordidinha ali... Mas nada justifica quase arrancar pedaço, como um animal.
— A culpa é minha, senhora Nancy. Fui eu mesma que me mordi, num momento de descontrole. Ninguém reparou antes porque tive o cuidado de cobrir com maquiagem. Hoje eu esqueci. Mas... Podemos não falar sobre isso? Já estou cuidando dos ferimentos, passando uma pomada, e logo as marcas vão sumir.
— Minha querida, você é tão bonita, não faça mais isso com você. — Nancy deve ter compreendido o que se passava, lançando para mim um olhar de pena.
— A senhora não queria ver o anel?
Depois da interrupção, Nancy respeitou o meu pedido e voltou a falar da joia maravilhosa e valiosíssima que o seu filho havia me dado. Estiquei mais uma vez a mão direita para ela, que a segurou com delicadeza, para analisar a peça à luz do dia.
— Edward deu sorte; nem sempre as joalherias tem um anel desses, e no tamanho certo, para pronta entrega. Na maioria das vezes é necessário encomendar e pode demorar bastante. E, nossa, ele conseguiu um Cartier. Olhe só como brilha!
— Vocês colocaram tanta pressão que o coitado correu para me presentear com um no dia seguinte. — Eu ri, para amenizar a crítica. — Seu filho me pegou de surpresa, eu realmente não estava esperando; não achei que fosse acontecer, até porque eu disse a ele que não precisava. Mas a verdade é que representou muito pra mim. Vejo o quanto ele se importa em cada detalhe, em cada atitude, e sinto-me amada todos os segundos.
— É assim que ele é. Acostume-se com o tanto que será mimada. Ed não é diferente de Simon, que mesmo depois de tanto tempo ainda me surpreende com romance quase todos os dias.
— Não vai ser difícil me acostumar, mas às vezes acho que não mereço tudo isso.
— Não diga uma bobagem dessas. Não duvide do seu valor. Você é o que é, e tem o que é para ter, nem mais nem menos. Seja feliz. — Nancy me deu uma ligeira bronca. — E vamos aproveitar para falar sobre a cerimônia de casamento. Agora que já tem o anel, podemos começar a planejar.
— Nathan e eu não pensamos em uma data ainda, continuamos na mesma, e também não conversamos sobre o tipo de celebração que queremos, então não sei se devo começar a planejar. A opinião dele é muito importante.
— No casamento anterior ele não se envolveu nadinha com os preparativos da cerimônia, nem da festa. A família da Giorgina que resolveu tudo. Ah, querida, foi tão frustrante eu não poder opinar em nada.
— Veja pelo lado bom; como o casamento não chegou a acontecer, você foi poupada de ver o seu esforço sendo desperdiçado. — Destilei um pouquinho de veneno por ela ter metido Gigi no meio da nossa conversa.
— Verdade. Eu teria sentido bem mais pesar se estivesse à frente de tudo. Mas agora é diferente; uma nova era, uma nova oportunidade. E eu não vou ficar feliz se tiver que passar por isso só assistindo. Por favor, deixe que no casamento de vocês dois eu tenha essa liberdade. Eu sei que Edward não vai colocar empecilho.
A tradição mandava que os pais da noiva pagassem pela festa de casamento, por isso mesmo a família Robins deve ter cuidado de tudo sem interferência. Para a sorte de Nancy, que estava louca para meter a mão na massa e assumir o controle do segundo casório do filho, os meus pais estavam fora da jogada. José Luiz e Ana Ferreira não tinham se envolvido nem nos preparativos do meu primeiro casamento, que eles sabiam que ia rolar, imagine nesse que eles nem sonhavam com a possibilidade. Lembrar que minha família podia ser considerada inexistente e que eu estava sozinha, comprimiu o meu peito.
— Fique à vontade para fazer o que a senhora quiser — concordei, enquanto refletia que a minha sogra era o mais próximo que eu teria de uma mãe no meu casamento. — Estou aberta para ideias e até aceito aquela sua proposta de nos casarmos em Malibu. — Se eu estava disposta a deixar Taylor realmente para trás, não teria nada demais me casar em uma mansão na mesma praia do casamento anterior. Seria até bom para ter lembranças positivas daquele lugar. — Nathan disse que vai trocar o plantão de amanhã no hospital, vai passar para o horário da noite, para poder ir cedo comigo até a Wishes. Se a senhora tiver disponibilidade, poderia ir com a gente e me mostrar a mansão da família em algum momento.
— Ótima ideia! Você vai ver que lugar lindo. A nossa casa é enorme, bem maior do que esta aqui, no alto de uma falésia e bem em frente à praia. Nosso jardim com piscina tem uma vista maravilhosa. Estou tão animada! — Ela comemorou com um sorriso no rosto. — Obrigada por me deixar participar dos preparativos, querida. Você já é como uma filha para mim.
— Obrigada a você, senhora Nancy, eu vou mesmo precisar de ajuda. — Fechei os olhos, emocionada por ter o apoio dos pais de Nathan, e fiquei me perguntando se não seria o momento de deixar o orgulho de lado e tentar uma reaproximação com os meus.
*****
Além de todo o meu problema com Taylor, o assunto "péssimo relacionamento com os pais", certamente, em algum momento, seria pauta na minha sessão de terapia, a qual eu não estava nem um pouco preparada para enfrentar. Fui roendo as unhas de Beverly Hills até Malibu na manhã seguinte, sentindo dor de barriga, cada vez mais forte, à medida que nos aproximávamos da clínica.
— Não fique assim tão ansiosa — aconselhou-me Nathan ao embicar o carro na entrada da Wishes. — Não encare essa experiência como uma consulta, mas como uma conversa, como se estivesse batendo papo com uma amiga com quem se sente confiante para se abrir.
— O problema é que não é uma amiga, e não me sinto nem um pouco confiante. — Continuei roendo as unhas, enquanto observava o caminho arborizado que nos levaria até o estacionamento.
— Você ainda nem foi apresentada à terapeuta e já está tirando conclusões. A doutora Miwa é excelente profissional, uma das psicólogas mais conceituadas da Califórnia. Você terá o melhor tratamento com uma pessoa superacessível. Seja aberta e tudo dará certo.
Nathan estacionou o BMW perto da imponente construção principal, e o carro de seu pai, que veio atrás da gente durante todo o percurso, parou ao nosso lado.
— Ah, como é bom respirar esse ar! — Nancy levantou os braços e o rosto para o céu, alongando-se ao sair do carro. — O cheirinho gostoso do mar e todo esse verde em volta, que agradável! Estou quase vindo passar férias aqui.
Invejei minha sogra, toda relaxada, enquanto eu tentava juntar as pernas — o que não foi possível por causa das muletas — para evitar que o meu intestino me pregasse uma peça.
Não cheguei a ficar muito tempo em pé naquela situação desconfortável, logo um enfermeiro, devidamente identificado com o uniforme turquesa da clínica, aproximou-se e me ajudou a me sentar em uma cadeira de rodas. Nathan já tinha deixado de sobreaviso que precisaria de uma assim que chegasse, e, pelo visto, eficiência não era problema ali. Depois de entregar as muletas para o seu funcionário, meu noivo assumiu a direção da cadeira e saiu me empurrando por uma rampa em direção ao prédio principal.
— Vou mostrar a você o interior da clínica e depois a levarei para conhecer todo o resto. Você vai entender por que minha mãe disse que vai tirar férias aqui.
Por dentro, a construção de estilo francês parecia um hotel de luxo; com grandes salões com lareiras e sofás confortáveis, tapetes provençais e lustres de cristal. Alguns ambientes menores, que serviam de escritórios, tinham as paredes revestidas de madeira e móveis rústicos. Cheguei a entrar em alguns dos quartos que se encontravam desocupados e, pelo amor de Deus, eram até melhores do que os da mansão dos Smiths em Beverly Hills. Não podia nem imaginar quanto custava um tratamento ali.
Enquanto passava de um cômodo ao outro sendo apresentada aos funcionários, todos impecavelmente arrumados em seus uniformes, eu comecei a entender por que, provavelmente, nenhum paciente devia ficar ressentido ao ser internado na Wishes. Até eu já estava começando a pensar nessa possibilidade. Ri sozinha quando me dei conta do que estava imaginando; também não era para tanto. Mas, realmente, o lugar era magnífico, um SPA cinco estrelas que nem de longe parecia um hospício. Bem, podiam falar o que quisessem e chamar por nomes mais bonitos, como clínica de reabilitação ou centro de tratamento, mas em sua essência era um hospício.
A propriedade era bem maior do que eu imaginava. Somente quando chegamos ao balcão do segundo andar e observei o terreno do alto é que tive real noção da extensão daquele lugar.
— Ao todo a Wishes ocupa mais de vinte mil metros quadrados e é uma das maiores clínicas do país. Somos uma das maiores não só no tamanho, mas também na excelência do atendimento — contou-me Nathan, todo orgulhoso.
Depois de passarmos alguns minutos contemplando a vista do oceano e das montanhas, que me transmitiu tranquilidade instantânea tamanha beleza, Nathan apontou lá de cima os espaços abertos que me levaria para conhecer em seguida.
— Além do entretenimento interno para os pacientes em programas de reabilitação, como biblioteca, sala de cinema e musculação, nós temos um local dedicado à equoterapia — explicou-me meu noivo, enquanto me guiava por um caminho em direção a um estábulo, ao lado de um redondel de piso de areia.
— É incrível, Nathan!
— E isso não é tudo. Temos também animais de pequeno porte, pomar, horta... Mantemos os pacientes ocupados de diversas formas, e as atividades fazem parte do tratamento. Por exemplo; o cuidado, a dedicação e a paciência, qualidades necessárias para executar os trabalhos na horta, são usadas para ensinar lições que os pacientes poderão levar para o seu dia a dia, como maneiras de gerir a raiva e a ansiedade.
— Talvez eu deva começar a plantar umas cenourinhas então — brinquei, arrancando uma gargalhada do meu noivo.
Depois da visita àquela área, Nathan me levou para conhecer a piscina — usada para relaxamento e também para exercícios aquáticos —, a quadra de tênis e a polivalente. Terminamos o nosso passeio, parando para descansar, em um carramanchão redondo todo feito de pedra. Trepadeiras entrelaçavam-se, subindo pelos arcos de estilo romano, e quando olhei em volta nos vi cercados por um lindo e grandioso jardim de lírios de cores variadas que mais parecia uma pintura de Monet.
— Meu Deus, Nathan, que lugar maravilhoso!
— Eu sabia que ia gostar daqui.
— Tanto que até esqueci o propósito de ter vindo à Wishes.
— Mas não pode esquecer não, senhorita Isabelle — Nathan me repreendeu, de brincadeira, sentou-se em dos bancos internos que circundavam o carramanchão e puxou a cadeira de rodas para perto dele. — Daqui a pouco a doutora Miwa chegará para a sua consulta.
— Ah, ela ainda não está na clínica? Chegamos tão cedo... — Nem acreditei quando Nathan me tirou da cama às cinco da manhã. E agora, sabendo que a tal psicóloga sequer tinha chegado, tive vontade de estrangulá-lo. — Poxa, príncipe, custava ter me deixado dormir um pouquinho mais?
Nathan soltou um risinho e me deu um beijo rápido nos lábios.
— Linda, a doutora Miwa já está na clínica. Aliás, ela é sempre uma das primeiras a chegar. Só estamos esperando que venha até aqui para a sua consulta.
— Aqui? Aqui nesse lugar? No meio das flores? — O cheiro forte dos lírios de repente me deixou nauseada.
— Por que todo esse espanto? O dia está lindo e temos espaço de sobra ao ar livre. Sempre que possível fazemos as consultas em locais abertos, junto à natureza. Escute os pássaros... — Ele ergueu o dedo e se calou para que escutássemos o canto das andorinhas. — Não é bem mais relaxante do que o ruído do ar-condicionado?
Eu nunca tinha ouvido falar de sessões de terapia nessas condições, mas apesar do estranhamento, concordei que seria bem menos estressante ficar por ali. Não ter quatro paredes me sufocando provavelmente tornaria a consulta menos intimidadora.
*****
A tal doutora Miwa chegou uns cinco minutos depois ao local onde estávamos e Nathan me apresentou à mulher de corpo frágil, cabelos negros na altura dos ombros e uma simpatia que era bem acima do normal. Nunca que eu abriria um sorriso tão largo e espontâneo como o dela, durante o trabalho, àquela hora da manhã.
— Muito prazer, senhorita Isabelle, sou a doutora Miwa Saito. — Minha nova "amiga" estendeu a mão para mim e retribuí o cumprimento com um automático "o prazer é todo meu".
Antes de nos deixar a sós, Nathan me deu um último beijo e disse que um enfermeiro viria me buscar dali à uma hora para me levar de volta a prédio principal. Era uma grande bosta ter que depender de alguém para empurrar aquela cadeira de rodas pra cima e pra baixo. Era uma grande bosta ter que ficar presa a ela. E ponto.
— Me sinto uma inútil. — Foi a primeira coisa que resmunguei na presença de Miwa, enquanto, sozinha, eu tentava deixar a cadeira de rodas para me sentar em um dos bancos de frente para ela. — Muito inteligente da minha parte não ter pedido ajuda a Nathan para sair dessa droga antes de ele ir embora. Minha incapacidade de fazer algo certo é impressionante. Impressionante!
Consegui, depois de algum esforço, sentar-me onde queria, sob o olhar atento da terapeuta. Ela não teceu comentário sobre o meu desabafo, e como eu não fazia a menor ideia do que dizer ou de como me comportar, continuei resmungando:
— Essa perna... Bosta de perna! Não aguento mais esse peso, essa prisão. Não consigo fazer nada direito. Sabe o que é nada direito? E justamente porque não faço nada direito, nunca, é que torci o pé. Bem feito pra mim. Eu mereço isso aqui.
Parei subitamente a minha reclamação, incomodada comigo mesma e com os olhos de Miwa ainda fixos em mim. Era óbvio que ela me analisava a cada palavra, e eu não estava gostando daquilo.
Ficar calada é melhor, Isabelle. Ficar calada é melhor... Repeti mentalmente, tentando ganhar tempo.
Eu não costumava reclamar tanto assim no meu dia a dia; ia acabar passando a impressão errada. E se eu tentasse me corrigir e falasse "olhe, não sou assim normalmente", com certeza sua primeira impressão sobre mim ficaria ainda pior. Eu seria aquela que "não faz nada direito" e ainda tenta disfarçar a merda depois. Ficar calada, ficar calada... Mantra. Puxei o ar e o soltei em seguida, rapidamente, pesado.
Calada.
— Por que se sente dessa forma? — Miwa cruzou as pernas e deixou a mini prancheta que segurava apoiada sobre elas.
— Dessa forma como? — Não entendi qual era o ponto.
— Primeiro disse que é "incapaz de fazer algo certo", e em seguida afirmou que "não consegue fazer nada direito". Se essa aparente revolta vem das consequências do pé torcido, leve em conta que você está, momentaneamente, debilitada; não precisa ser tão crítica e exigente consigo mesma.
— Não é só o momento, não é só por causa dessa perna manca. Não faço escolhas certas de maneira geral. — Rodei o indicador no ar. Eu podia apostar que tinha acabado de dar mais munição para ela fazer anotações sobre a minha autocrítica. Lá estava a doutora Miwa me secando, pedindo com os seus olhos puxadinhos para que eu me abrisse mais. E claro que a idiota fez exatamente o que ela queria. — Ainda usando o exemplo da perna: se eu tivesse bebido menos, ou não tivesse bebido; ou que tivesse bebido, enchido a cara mesmo, mas tivesse ido direto pra casa; estaria ótima agora. Teria evitado essa merda aqui — apontei para a bota — e outra ainda pior. Foi efeito dominó naquele dia. Começou naquele dia e continua até hoje... e até sei lá quando! Dominó de um milhão de peças, deve ser. Até derrubar tudo, talvez demore, mas é certo que o peteleco inicial vai detonar a fila toda. E isso é por que... por que... Bem, é o que eu falei antes e torno a repetir, sendo bem clara: eu não sei fazer nada certo.
— O que é o certo na sua percepção?
Olhei em volta, passei pelo rosto da terapeuta, mirei a parede atrás dela e fiquei refletindo sobre a pergunta. Quando me dei conta já tinha me transportado para o inseto que passava por ali, carregando uma folha aparentemente pesada demais para ele.
— Será que não está sendo muito dura com você mesma, se culpando pelas suas escolhas? — Miwa me fez voltar a atenção para o que discutíamos. — Autocompaixão é muito importante, Isabelle. É fundamental não se pautar pelo que é certo para os outros, mas pelo que é certo para você.
Ai. Meu. Deus. Aquilo estava sendo bem mais difícil do que pensei que seria.
— É assim que a primeira sessão começa? — Soltei o peso dos ombros e o ar mais uma vez. — Pensei que fosse encarar questões mais básicas no início.
— Como gostaria de começar, Isabelle? Quer me contar um pouco sobre você, ou me falar sobre esse efeito dominó que se referiu ainda há pouco? Gostaria de entender.
— Honestamente? Não sei como gostaria de começar. Só lhe questionei sobre o início dessa sessão porque não sei responder o que é "certo na minha percepção". Não assim sem ter um bom tempo para refletir. Talvez nem se eu tivesse tempo. É uma pergunta muito difícil.
— Nós temos bastante tempo — ela olhou para o relógio de pulso —, podemos usá-lo para essa reflexão.
— Estou confusa e não acho essa questão relevante. Além de estar cedo demais para raciocinar; sou uma pessoa noturna — falei, sem receio de demonstrar a minha impaciência. — Podemos deixar essa filosofia sobre certo e errado para outra hora?
— Podemos. Ou podemos abordá-la de outro jeito.
— De que outro jeito? — perguntei e logo me arrependi.
— Podemos falar de uma maneira mais concreta sobre as suas más decisões, às quais você se referiu logo que começamos.
— Eu passo. — Tinha noção de que não estava colaborando e achei que pudesse estar irritando a doutora Miwa, mas a expressão serena do seu rosto manteve-se a mesma de sempre.
— Então vamos fazer assim: por que você buscou ajuda?
— Eu não busquei. Digamos que Nathan foi quem buscou por mim. — Dei outro longo suspiro. Que coisa chata!
— Se você está aqui, foi por que concordou com o que ele sugeriu. Não é verdade? Deve haver alguma situação específica a ser trabalhada, ou então algum comportamento que deseja mudar...
— Um pouco de cada. Bastante de cada. — Ri de nervoso, depois de me corrigir. — Situações, comportamentos... O pacote completo. Vou dar trabalho, tenho noção de que está tudo uma bagunça.
— Como se sente nesse momento?
— Pressionada. — Fui sincera. — Sairia correndo, se pudesse. Aliás, essa é minha especialidade. Mas, como pode ver — estiquei a perna engessada em cima do banco —, não vou a lugar algum.
— Sente-se pressionada, certo. Essa pressão vem desse nosso contato, do atendimento em si, ou de alguma outra pressão externa?
— Disso aqui. — Apontei de mim para ela. — E também de coisas externas... e internas. Vem de todos os lados, um bombardeio. E, nos últimos dias, com bastante frequência.
A doutora Miwa continuou me olhando, sem falar nada. Já que eu tinha deixado bem claro que a pressão vinha, também, da consulta, talvez ela tivesse decidido não me fazer mais perguntas.
Nathan havia dito que o canto dos pássaros me ajudaria a relaxar, mas naquele silêncio entre nós duas, o piu-piu-piu sobressaía de uma maneira irritante. Até eles me obrigavam a dizer alguma coisa.
— Sou praticamente uma panela de pressão, com água além do limite e prestes a explodir. Já deixou panela de pressão explodir? Não exatamente explodir, explodir... Quando ela está muito cheia e a borracha um pouco frouxa, assim que o pino apita, começa a vazar pelas bordas. Já aconteceu com você? Faz uma tremenda de uma sujeirada; o conteúdo voa longe, não sobra uma parede branca, só aquele troço escorrendo pelos azulejos... Geralmente feijão, para dar bastante trabalho na hora de limpar. Eu não tô nem um pouco a fim de explodir, ou de vazar, que seja, nem de limpar a sujeira. — Percebi que começara de maneira calma e terminara com raiva na voz. Meu rosto queimando e as veias temporais saltadas resultaram em uma dor de cabeça imedita. Argh! A simpatia daquela japonesinha fofa não ia ser suficiente para me fazer ser simpática com ela.
— Estou aqui para lhe ajudar com isso: para não deixá-la explodir, nem vazar, nem ter que limpar a sujeira. Mas... preciso que seja mais clara. Essa pressão que você sente, externa e interna, é proveniente de quê?
— Ahhhh, chega! — gritei, de saco cheio daquilo tão rápido. Virei o meu rosto para as flores e fiquei com o olhar perdido nelas, morrendo de vergonha por ter me exaltado com alguém que mal conhecia. — Desculpe. Não estou pronta para isso.
— É compreensível que não esteja pronta para encarar certas coisas, mas se está aqui, um passo foi dado em direção a esse enfrentamento. Com tempo e paciência conseguiremos.
Ela era muito otimista.
Ainda olhando para o jardim, acabei desabando e chorando. Eu sabia que precisava me esforçar para falar sobre os meus problemas, os mais profundos e dolorosos, mas não estava com a menor vontade. Miwa me deixou chorar pelo tempo que achei necessário, interrompendo-me apenas para me entregar um pacote de lenços de papel.
— Eu vou me casar. Com o doutor Nathan — revelei quando finalmente consegui me acalmar, mexendo no meu anel de noivado. Muito discretamente ela me desejou "parabéns", ao qual agradeci antes de prosseguir. — Não é que o casamento em si seja uma pressão, mas me sinto pressionada a deixar tudo nos seus devidos lugares antes de me casar.
— O que quer dizer com "tudo nos seus devidos lugares"?
Desta vez me perdi nas flores do vestido estampado da doutora Miwa, parcialmente coberto pelo seu jaleco branco com a logo da clínica e o seu nome bordados no bolso superior. Achei que evitar os seus olhos me manteria um pouco mais distante e segura.
— Nathan é o melhor homem pra mim, então preciso ser a melhor mulher para ele. Ele diz que sou a melhor, a mãe dele diz que sou a melhor, no entanto não me sinto assim.
— Se o seu noivo afirma que é a melhor para ele, mais uma vez me parece que a sua autocrítica exarcebada está tomando a frente no seu julgamento. Por que não se sente a melhor para ele?
— Tenho coisas para ajustar, e não são poucas.
— Coisas?...
— O que conversamos aqui é... confidencial?
— Absolutamente. A menos que as flores tenham ouvidos e bocas, nada sairá daqui.
— Estou muito feliz porque vou me casar. Sou apaixonada pelo meu noivo. Mas... — Eu olhei para Miwa, que sequer mudou a sua expressão, esperando que eu concluísse o meu pensamento. — Bem... talvez eu esteja sim, apesar de feliz, sentido-me pressionada com o casamento. É uma coisa que eu quero, quero muito, mas que eu não estava esperando que fosse acontecer tão rápido... E... — Minha visão tornou a embaçar com o retorno das lágrimas. — Olhe, não quero voltar atrás, Nathan é o cara certo pra mim, mas, sei lá... Às vezes fico achando que vai dar tudo errado, que eu vou fazer tudo errado. Porque sou toda errada...
Assoei o nariz e me encolhi no banco, recolhendo as pernas e me abraçando a elas. Antes de me encontrar diante daquela mulher, sendo induzida a falar, eu sequer tinha reparado o quanto aquela questão do pedido de casamento afoito de Nathan estava mal resolvida dentro de mim.
— Voltamos ao ponto do início desta nossa conversa. — Miwa anotou algumas considerações em uma ficha. — Conte-me por que você tem a sensação de que tudo vai dar errado, de que você fará tudo errado. De onde vem esta crença de que você é toda errada?...
— Dos meus pais, do meu ex, Taylor, de todas as pessoas importantes — aqui eu incluía Mirana também — que de alguma forma só souberam me criticar ao invés de me compreender.
Miwa fez mais anotações.
— Seu noivo, ele faz com que se sinta errada? Você me disse que para ele "você é a melhor".
— Nathan é maravilhoso. Um dos poucos, no conjunto dos importantes pra mim, que foi capaz de me aceitar como sou. O problema é que ele é compreensivo demais... e não sei se mereço toda essa compreensão. Nem consigo entender por que ele quer para a vida dele uma pessoa com tantos problemas.
— Talvez você esteja vendo mais problemas do que realmente existem. Entenda, Isabelle; todos nós enfrentamos adversidades, a diferença está no modo que lidamos com elas. Problemas tomam a forma e a proporção da importância que damos a eles.
— Primeiramente, não estou vendo em mim mais problemas do que realmente existem. Tenho um baita de um problema; ele é real, tem nome, sobrenome e endereço. E mesmo que eu não esteja o procurando, para tornar minha vida ainda mais difícil, ele vem a mim de diversas formas e o tempo todo; seja nos meus pensamentos, por telefonemas, SMS, correspondências ou o caramba a quatro. Sabe a história do dominó? Pois é. Eu vou enlouquecer a qualquer instante, possivelmente muito breve. Se é que já não enlouqueci. Se os problemas tomam a forma e proporção que damos a eles, o meu é loiro, alto e pode ser chamado de diabo, ou, se preferir, de ex-noivo. — Respirei. Ufa!
Acho que por essa ela não esperava. Nem que fosse surgir um elemento físico como problema nem que eu fosse me abrir.
— Pelo que pude entender; você está incomodada com o fato de seu ex-noivo estar mantendo, ou tentando manter contato...
— Lógico que estou! — eu a interrompi, respondendo energicamente. — Já disse isso pra ele, já pedi para que ficasse longe, mas ele insiste. Eu preciso dele longe. Preciso! Entende?
Miwa escreveu mais algumas coisas na ficha.
— Na sua fala, você disse que seu ex-noivo "vem a você de diversas formas" e que uma delas é "nos seus pensamentos". Que tipos de pensamentos?
Como assim "que tipos de pensamentos?" Aonde aquela mulher estava a fim de chegar? Fechei o rosto, irritada, mais irritada do que já estava, na verdade. Miwa ficou me encarando, como se buscasse nos menores movimentos dos meus músculos faciais a informação de que precisava, pois já devia ter percebido que eu não estava com a menor vontade de responder.
— Lembro-me da confusão que foi o nosso fim, e tudo que veio depois... — rendi-me, começando a desenrolar aquela história que me fazia tão mal, e mais uma vez foi impossível controlar as minhas lágrimas. — Lembro-me dos tempos bons também. Não sou uma pedra. Não tem como ser. E é claro que me sinto culpada por isso. Poxa, eu vou me casar... Não é justo. É hora de criar lembranças novas, não voltar às antigas. Tenho noção disso, mas não é algo que consigo controlar. Acaba sendo mais forte do que eu. E fico nessa mistura de lembranças boas, lembranças ruins... culpa. — Eu olhei para a minha mão direita; o anel, as marcas roxas, a cicatriz, a porra da tatuagem que tinha sido feita para me lembrar de me manter firme. Aquela bagunça adornando minha pele era um retrato de mim como um todo.
Eu não tinha mais muito tempo para falar, e soube disso quando vi o enfermeiro se aproximando do carramanchão para me buscar, mas ele parou de caminhar relativamente distante de onde estávamos, então continuei falando, porque finalmente me dei conta de que precisava daquilo.
— Gostaria de estalar os dedos e fazer essa merda toda desaparecer; as lembranças, a dor, o próprio, para eu ter meu caminho livre para me casar sem sombras, sem medos... mas não tenho como estalar os dedos e "plim". — Respirei fundo. — Eu e Nathan ainda não marcamos uma data, mas se eu não resolver essa coisa do meu passado rapidamente, é capaz de o meu noivo estalar os dedos para me fazer desaparecer. Quem vai fazer "plim" é ele. Toda compreensão tem um limite.
— Acredito que tudo pode se resolver com uma conversa sincera. Você já se abriu com o seu noivo sobre essa questão que lhe atormenta?
— Já. Nathan sabe de tudo, e ele me disse que tenho que me esforçar se quiser que as coisas deem certo entre nós dois. Quer saber? Foi por isso que vim aqui. Quero que dê certo. O que eu preciso fazer, além de colocar uns pinos da cabeça no lugar, é afastar o outro, meu ex, de uma vez por todas. Mas eu não sei como! Preciso que me ajude com isso, que me diga o que fazer.
— Isabelle, as respostas que precisa estão dentro de você. Eu poderei apenas ajudá-la a encontrar essas respostas, mas sem fazer escolhas por você. — Ela juntou as fichas e colocou a caneta no bolso.
— É que... — suspirei, resignada — eu sou péssima com escolhas.
— Você precisa ser menos dura consigo mesma, olhar para você com generosidade e se permitir errar. Todo mundo erra. Nem todos se recriminam. Não viva a sua vida para agradar aqueles que não sabem compreendê-la, porque talvez eles nunca compreendam. Não viva para agradar ninguém a não ser você mesma. Se esperar dos outros aprovação, seja para o que for, a chance de se frustrar é imensa. Você é que tem que se compreender e se aceitar; aceitar as suas escolhas... sem culpa. E lembrando, sempre, que perfeição não existe.
— Parece tão fácil com você falando, mas colocar em prática é outra história.
— Nós conseguimos estabelecer uma comunicação e avançar na nossa conversa. Teremos muita coisa para trabalhar daqui para frente, mas com sua dedicação e confiança, em você mesma e em mim, conseguiremos. Nossa próxima consulta será na quinta que vem, neste mesmo horário. Até lá eu gostaria que fizesse um exercício em frente ao espelho, conversando com você mesma. Quero que coloque para fora o que pensa sobre si própria e escute atentamente o que tem a dizer sobre você. Gostaria que focasse nas suas qualidades e que terminasse o exercício dizendo para o seu "eu" o quanto você o ama.
Da última vez que falara comigo mesma ao encarar meu reflexo, espatifei o espelho com as minhas próprias mãos. Não foi exatamente um diálogo sobre amor-próprio que me levou àquele surto, mas eu não ia correr o risco de passar pela mesma coisa de novo.
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[ Nota ]
→ As fotos que usei para criar a clínica Wishes podem ser vistas no meu Instagram (caasitaylorfic).
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